1) O documento descreve a Comissão da Verdade criada pela Lei 12.528/11 para investigar violações de direitos humanos durante o regime militar no Brasil (1964-1985).
2) Detalha alguns objetivos da Operação Condor, como a coordenação entre ditaduras sul-americanas para sequestrar e assassinar opositores políticos em outros países.
3) Pede a abertura de inquéritos sobre a morte de políticos brasileiros como Jango, JK e Lacerda, suspeitando de envolvimento da Operação Condor, e m
Resultado do concurso para professor em Pernambuco
Texto representação comissão da verdade
1.
EXCELENTÍSSIMO SENHOR PROCURADOR GERAL DA REPÚBLICA
Representantes:
1) INSTITUTO MIGUEL ARRAES – IMA, associação de direito
privado sem fins lucrativos, inscrita no CNPJ/MF sob o nº.
09.302.972/000144, com sede na cidade do Recife, Estado de
Pernambuco, neste ato representado pelo seu presidente e
advogado;
2) ANTÔNIO RICARDO ACCIOLY CAMPOS, brasileiro, divorciado,
advogado, presidente do Instituto Miguel Arraes – IMA, inscrito
na OAB/PE sob o nº. 12.310, portador do título eleitoral nº.
0034.3241.0868, com endereço profissional à Rua do Chacon, nº.
335, Casa Forte, Recife, Pernambuco, CEP: 52061400.
Objeto:
Abertura de inquéritos e/ou ajuizamento de medidas judiciais em
desfavor dos sobreviventes participantes da Operação Condor no Brasil,
responsáveis por vitimar diversas lideranças políticas.
Feito:
REPRESENTAÇÃO PARA ABERTURA DE INQUÉRITO OU
INVESTIGAÇÃO.
1
2.
SUMÁRIO
1. A Comissão da Verdade: Lei 12.528/11...................................07
2. Objetivos da representação e os contornos da Operação Condor 10
2.1. Objetivos da representação ....................................... 10
2.2. Os contornos da Operação Condor .............................. 10
2.2.1. Operação Condor: Necessidade de Investigação
Ditaduras Entrelaçadas ............................................11
2.2.2. Depoimento do Governador Miguel Arraes .... ....13
3. As Misteriosas Mortes de Jango, JK e Lacerda ..........................25
3.1. A morte de Jango ..................................................... 25
3.2. A morte de JK .......................................................... 27
3.3. A morte de Lacerda .................................................. 33
3.4. A morte de Emmanuel Bezerra dos Santos ................... 39
3.5. A morte de David Capristano ....... .............................. 42
3.6. A morte de Joaquim Pires Cerveira .............................. 45
3.7 Caso Edmur Péricles Camargo ......................................51
5. O Sequestro dos Uruguaios: Comprovação da real existência da
Operação Condor no Brasil..........................................................53
6. A Matriz VerdeAmarela da Operação Condor ...........................54
7. Justiça Espanhola .................................................................63
8. Justiça Italiana .....................................................................67
9. Decisões Judiciais das Justiças da Argentina e do Chile...............69
9.1. Argentina ................................................................ 69
9.2. Chile ....................................................................... 70
2
6.
1. A COMISSÃO DA VERDADE:
LEI 12.528/11
Após décadas de protestos e intensos colóquios acerca das malsinações
ocorridas no ainda recente período ditatorial brasileiro, foi instituída a
Lei 12.528, em 18 de novembro de 2011. A referida lei deu existência a
Comissão da Verdade, cuja maior finalidade é, nos termos da própria
legislação em comento,
Art. 1º. .[...] examinar e esclarecer as graves
violações de direitos humanos praticadas no
período fixado no art. 8o
do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias (de 1946 até a data de
promulgação da atual Constituição), a fim de
efetivar o direito à memória e à verdade
histórica e promover a reconciliação
nacional. (Adaptado) (Grifos nossos)
Portanto, no espaço de tempo acima delimitado (de 1946 até a data de
promulgação da atual Constituição), está incluído o regime de ditadura
militar brasileiro (19641985), cujas práticas de violações de direitos
humanos hão de ser apuradas.
Consistem em objetivos da Comissão Nacional da Verdade, dentre
outros, definidos no art. 3º da lei 12.528/11 , determinar os órgãos e 1
1
Art. 3o
. São objetivos da Comissão Nacional da Verdade:
I esclarecer os fatos e as circunstâncias dos casos de graves violações de
direitos humanos mencionados no caput do art. 1o
;
6
7.
entidades responsáveis pelas práticas de violação de direitos humanos
e elucidar as mortes e desaparecimentos àquela época, mesmo que
realizados fora do âmbito nacional (a título de exemplo, no caso do
expresidente Jango, cuja morte ocorreu no exterior, quando de seu
exílio na Argentina).
Como é sabido, a Comissão em pauta gozou de prazo de 2 (dois) anos
para tecer um relatório minucioso acerca das investigações e
conclusões realizadas. Outrossim, também deveria realizar
recomendações acerca de políticas públicas destinadas a evitar a
violação de direitos humanos, prevenindo tais práticas ao máximo.
Cumpre ressaltar, ainda, que as atividades da Comissão Nacional da
Verdade tiveram o caráter público e qualquer cidadão que desejou
esclarecer alguma circunstância, teve oportunidade de fazêlo,
solicitando informações à Comissão em pauta.
Findo o período estipulado (2 anos), a Comissão foi extinta em caráter
definitivo , bem como os cargos decorrentes de sua existência, através 2
da exoneração dos participantes.
II promover o esclarecimento circunstanciado dos casos de torturas, mortes,
desaparecimentos forçados, ocultação de cadáveres e sua autoria, ainda que
ocorridos no exterior;
III identificar e tornar públicos as estruturas, os locais, as instituições e as
circunstâncias relacionados à prática de violações de direitos humanos mencionadas
no caput do art. 1o
e suas eventuais ramificações nos diversos aparelhos estatais e na
sociedade;
IV encaminhar aos órgãos públicos competentes toda e qualquer informação
obtida que possa auxiliar na localização e identificação de corpos e restos mortais de
desaparecidos políticos, nos termos do art. 1o da Lei no 9.140, de 4 de dezembro de
1995;
V colaborar com todas as instâncias do poder público para apuração de
violação de direitos humanos;
VI recomendar a adoção de medidas e políticas públicas para prevenir violação
de direitos humanos, assegurar sua não repetição e promover a efetiva reconciliação
nacional; e
VII promover, com base nos informes obtidos, a reconstrução da história dos
casos de graves violações de direitos humanos, bem como colaborar para que seja
prestada assistência às vítimas de tais violações.
2
Art. 11. A Comissão Nacional da Verdade terá prazo de 2 (dois) anos, contado da
data de sua instalação, para a conclusão dos trabalhos, devendo apresentar, ao final,
relatório circunstanciado contendo as atividades realizadas, os fatos examinados, as
conclusões e recomendações. (Grifos nossos)
7
8.
Nos dizeres do atual Ministro da Defesa, Celso Amorim, em entrevista
publicada na Revista Istoé de abril/2012:
A Comissão da Verdade é o último capítulo da
transição democrática, um epílogo. Há muito tempo
estão sendo escritas outras coisas novas da fase
democrática, mas ficou essa questão. É uma
necessidade da sociedade em conciliarse consigo
própria conhecendo a verdade . 3
O referido Ministro destacou ainda que a lei 12.528/11 recebeu a
anuência de grande parte do Congresso Nacional, gerando
incredulidade entre aqueles que não acreditavam na possibilidade de
sua aprovação:
Sei que o (deputado) Jair Bolsonaro não votou, mas
os demais deputados aprovaram a comissão. Aliás,
foi uma das poucas leis aprovadas pelo Congresso
com tanto consenso. Não vejo nenhuma razão para
temer uma judicialização. A própria lei que
estabelece a Comissão reitera a Lei da Anistia.
Em suma, essa Comissão foi a grande oportunidade de colocar em
pratos limpos acontecimentos ainda ocultos que em muito
envergonham a memória do País, mas cujo esclarecimento é de
extrema relevância, inclusive a fim de evitar reincidências futuras e
efetivar a reconciliação nacional, assim como em respeito à memória
das vítimas e de seus respectivos familiares.
3
AMORIM, Celso. "A Comissão da Verdade é o epílogo da transição
democrática”. Entrevista publicada na Revista Istoé nº. 2212, Edição de 04 de abril
de 2012.
8
10.
2. OBJETIVOS DA REPRESENTAÇÃO
E OS CONTORNOS DA OPERAÇÃO CONDOR UM ROTEIRO DE
TRABALHO INVESTIGATIVO
2.1. Objetivos da representação
O presente instrumento de representação se destina a incitar este
órgão a propor medida judicial em desfavor dos sobreviventes
precursores e participantes da Operação Condor no Brasil, responsáveis
por vitimar os líderes opositores, de esquerda, para que se faça justiça
àqueles que porventura suportaram os amargos efeitos dela
decorrentes. Tal operação já teve sua existência neste país comprovada
por ocasião dos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade – CNV,
conforme trabalho em anexo.
2.2. Os contornos da Operação Condor
No livro As Garras do Condor, Nilson Mariano assim define tal
operação:
“As ditaduras militares que subjugaram o Cone Sul, nas
décadas de 1970 e 1980, planejaram uma organização
terrorista, secreta e multinacional para caçar adversários
políticos. Era a Operação Condor, a aliança que interligou os
aparatos repressivos da Argentina, do Chile, do Uruguai, do
Paraguai, da Bolívia e do Brasil. Agindo além das fronteiras,
os sócios, do condor tinham permissão para prender,
torturar, matar e ocultar cadáveres. Promoveram uma
guerra de extermínio, sob patrocínio dos Estados.”
“Com a Operação Condor as ditaduras derrubaram as
fronteiras geográficas e políticas, aboliram tratados de
10
11.
proteção a refugiados e desrespeitaram regras de direito
internacional. O horror passou a circular sem passaporte.
Nas incursões alémfronteiras, não foram apanhados
somente guerrilheiros e militantes marxistas – os alvos
imediatos, mas também expresidentes, ministros,
parlamentares, generais legalistas, sindicalistas,
estudantes, intelectuais. Enfim, todos que ousassem
discordar.”
Segundo o Secretário de Direitos Humanos da Argentina, Eduardo
Duhalde, indagado acerca da expectativa sobre os segredos que a
Comissão Nacional da Verdade, cuja lei foi sancionada em novembro de
2011, traria à tona, “mais do que manter sua caixapreta fechada,
o Brasil foi o fiador da Condor, porque a Operação não poderia
ter existido sem a vontade política do País hegemônico da
região” . 4
2.2.1. A Operação Condor:
Necessidade de investigação – ditaduras entrelaçadas
No livro O Beijo da Morte, de Carlos Heitor Cony e Anna Lee há a
seguinte cronologia de fatos:
” 28 de setembro de 1975
Ofício confidencial do general Manuel Contreras, chefe do DINA (serviço
secreto do governo chileno) ao general João Baptista Figueiredo, então
chefe do SNI (serviço secreto do governo brasileiro), dando conta da
mudança da política norteamericana em relação às ditaduras militares
do Brasil, Chile, Argentina e Uruguai. Com a chegada de Jimmy Carter
4
AQUINO, WILSON. In: Ditaduras Entrelaçadas: documentos comprovam que a
participação de autoridades brasileiras na Operação Condor foi fundamental para a
aliança dos governos totalitários da América Latina. Revista Istoé, Edição de 30 de
novembro de 2011.
11
12.
à Casa Branca, seria retirado o apoio de Washington aos regimes
totalitários do Cone Sul. O general Contreras cita nominalmente
Orlando Letelier, exministro de Salvador Allende, e Juscelino
Kubistchek, expresidente do Brasil, como lideranças que poderiam ser
reabilitadas e criar problemas às ditaduras da região.
7 de agosto de 1976
Por volta das 18 horas deste sábado, core a notícias de que Juscelino
Kubitschek teria morrido num acidente de carro na estrada que liga
Luziânia a Brasília. JK iria fazer realmente este deslocamento, mas à
última hora, preferiu ficar em sua fazendinha, em Luzitânia. À noite,
recebe jornalistas e equipes de TV que procuram confirmar a notícia.
22 de agosto de 1976
Às 18h15, morre Juscelino Kubitschek num acidente de carro no km
143 da Rio–São Paulo. Nos dias anteriores, JK escondera de seus
parentes e amigos mais próximos esta viagem ao Rio, quando
almoçaria, no dia seguinte, com o advogado e exministro português
Adriano Moreira, que cuidava de um processo movido pelo governo
oriundo da Revolução dos Cravos, em Portugal, no qual estavam
citados a empresária portuguesa Fernanda Pires de Melo, o
exembaixador Hugo Gouthier e o próprio JK. Chegando ao Rio no final
da tarde daquele domingo, ele dormiria com Lúcia Pedroso no
apartamento dela, em Ipanema, sendo absurdo o insinuado encontro
de alguns minutos dos dois num hotel da RioSão Paulo.
21 de setembro de 1976
Morre, em Washignton, Orlando Letelier, quando uma bomba explodiu
em seu carro. O atentado foi investigado pela polícia norteamericana,
que culpou agentes do DINA e, em especial, o general Contreras, que
atualmente cumpre pena de prisão perpétua no Chile.
12
13.
6 de dezembro de 1976
Depois de receber numerosos avisos para que não dormisse duas
noites no mesmo lugar, o expresidente João Goulart morre na
Argentina, na cidade de Mercedes, próxima à fronteira com o Rio
Grande do Sul. Ele continuava exilado pelo regime militar brasileiro,
mas disposto a retornar brevemente a São Borja, sua cidade natal.
21 de maio de 1977
Após internarse na Clínica São Vicente, sem diagnóstico preciso, mas
com suspeita de septicemia, morre Carlos Lacerda, exgovernador da
Guanabara, que juntamente com Kubitschek e Jango havia criado a
Frente Ampla, que seria a alternativa civil para o retorno do Brasil à
democracia. Uma enfermeira portuguesa, que trabalhara para a Pide
(polícia salazarista), comenta que já vira casos assim, de morte
precipitada por medicamentos no soro hospitalar.
21 de agosto de 1982
O juiz Juan Espinoza, do tribunal argentino de Curuzu Cuatiá, pede a
exumação do corpo de João Goulart, devido a suspeitas de que ele teria
sido assassinado ao tomar remédios que foram trocados por pessoas
próximas a ele. Mais tarde, outro pedido de exumação também não foi
atendido.“
2.2.2. Depoimento do Governador Miguel Arraes
Transcrevemos a seguir trecho do relatório final contendo o depoimento
do Governador Miguel Arraes na Comissão sobre a morte de Jango no 5
Congresso Nacional Brasileiro, juntando também o áudio com o
depoimento:
5
Relatório final (Série Ação Parlamentar; n. 243). Brasília: Câmara dos
Deputados, Coordenação de Publicações, 2004, p. 5359.
13
14.
“Além de informações concretas sobre a forma como obteve
conhecimento antecipado a respeito do processo de eliminação de
lideranças políticas em curso na América do Sul, o Governador Miguel
Arraes trouxe a esta Comissão a perspectiva de um agente político
relevante, que acompanhava os acontecimentos de uma posição muito
distinta da maioria de nossos entrevistados, exilado que estava na
Argélia. Mais uma razão para reproduzirmos na íntegra seu
depoimento, de maneira a registrar oficialmente sua visão dos
acontecimentos.
As considerações iniciais do ilustre depoente ilustram amplamente a
realidade política do mundo na época em que faleceu o exPresidente,
João Goulart.
Devo dizer que eu estava distante, na Argélia, e que
certos fatos específicos me escapam, porque eu não tive
contato, como o Neiva, Brizola e outros, com as pessoas que
assistiram diretamente ao caso. Entretanto, vou citar alguns
fatos que chegaram ao meu conhecimento naquele período.
Eu estava exilado na Argélia. O asilo político me foi
concedido pelo Governador argelino. Nós éramos alguns
poucos que tínhamos esse asilo. Havia muitos refugiados:
cerca de oito mil refugiados políticos em Argel, de todos os
países, da Europa até a Indonésia. Havia gente de todo o
lado. E os argelinos tinham especial cuidado com toda essa
gente que estava lá refugiada, longe de seus países e,
particularmente, com aqueles a quem tinham dado asilo
político, porque se consideravam responsáveis por essas
pessoas que o Governo tinha levado oficialmente para lá.
E alguns fatos também faziam com que eles exercessem
vigilância ou acompanhassem, não para saber da nossa vida,
mas para dar a segurança que fosse possível às pessoas que
14
15.
estavam sob a responsabilidade do Governo argelino. E eles
tinham tido casos concretos de assassinatos políticos, como o
do General Humberto Delgado, assassinado na fronteira de
Portugal com a Espanha, que estava lá na Argélia, saiu de lá
contra a opinião deles, aliás.
Há um assassinato de Ber Baka, líder marroquino muito
conhecido, que também tinha a proteção da Argélia, que foi
seqüestrado e assassinado em Paris. E assim outros casos
desse tipo que faziam com que eles tivessem esse cuidado, o
cuidado não só na Argélia, porque não tinha perigo por lá.
Basta dizer que fiquei na Argélia por 14 anos. Nunca ninguém
me pediu um documento na rua ou em canto nenhum. Só nos
hotéis e no aeroporto, porque é obrigado. Nunca ninguém me
pediu documento. Nós tínhamos toda liberdade lá.
Então, eles nos davam certas indicações para as viagens
que fazíamos, porque haviam acontecido esses casos e eles
nos preveniam que nós não deveríamos sair para outros
lugares sem ter contato com a Embaixada, sem contato com
alguém de confiança. E eles indicavam, quando era o caso, as
pessoas de confiança a quem podíamos recorrer nesses
países.
Então, nós também tínhamos dificuldades. Era preciso
às vezes recorrer à Embaixada. Por exemplo, eu estive
proibido de entrar na França durante muitos anos. Era
proibido oficialmente entrar na França por decreto do Ministro
do Interior francês. Tenho esse documento comigo. Não podia
entrar, não obstante eu tinha que entrar, porque eu tinha
família lá. Eu tinha que entrar. Então, eu sabia como entrar
na França, mas, uma vez lá, era preciso ter condições de
apelar para alguém se houvesse qualquer coisa.
Na Itália, não havia problema, mas havia setores na
polícia italiana – que haviam sido contactados pelo Comissário
15
16.
Fleury – que abordavam os brasileiros e tomavamlhe os
passaportes. Eu mesmo presenciei casos como o do Carlos
Sá. Carlos Sá foi membro do Tribunal do Trabalho de São
Paulo, era exilado. Ele estava lá; quando ia sair do hotel o
abordou, tomou o passaporte e deu 48 horas para deixar o
país. Como ele poderia deixar o país em 48 horas sem
documento, sem coisa nenhuma?
Nós falamos com um senador italiano, e o senador falou
com o primeiroministro, e o primeiroministro mandou uma
pessoa resolver o caso. Mas havia todos os complicadores que
exigiam essas informações etc.
E nós, portanto, tínhamos pessoas na Argélia a quem
podíamos recorrer para nos informar ou elas próprias nos
chamavam para dar as informações que consideravam
necessárias para a nossa vida no exterior.
A principal pessoa encarregada em buscar essas
informações, porque existiam outras, o chefe desses serviços,
era o Coronel Sulleiman Hoffmann. Era assessor para
assuntos internacionais do Presidente Boumedienne. De vez
em quando, eu o via, falava com ele, davame muito com ele.
Certo dia ele me telefona e diz que quer falar comigo. Eu fui
lá. Ele me disse: “Arraes, amanhã e depois de amanhã, se
amanhã não chegarem as pessoas, você espera até depois de
amanhã. Você não sai de casa, espera em casa. Três pessoas
vão lhe procurar”. Eu disse: “Pois não, está certo. Fico em
casa”.
E fiquei efetivamente em casa, e apareceram as
três pessoas. As três pessoas exigiram muito cuidado
na conversa, isto é, eles não queriam em casa ninguém
que não fosse da família, não queriam testemunhas.
Iam falar comigo. E me disseram o seguinte: “Nós
estamos vindo do Cone Sul da América Latina”. Não
16
17.
disseram de onde. “Houve uma reunião da extrema
direita para apreciar a questão de uma possível
abertura”. Já se começava a falar, porque isso está
ligado aqueles àqueles anos da Guerra do Vietnã.
A Guerra do Vietnã estava sendo perdida. E todas
as análises indicavam que, na medida em que a guerra
fosse perdida, os Estados Unidos não poderiam ficar
com o mundo militarizado debaixo das botas de
soldado. Teria de ser dada uma solução intermediária
qualquer, fosse de transição ou de qualquer outro tipo.
Então, já se debatia essa questão, e os militares sabiam
disso. Eles viram que essa era uma tendência que não
mais seria revertida, porque, como falei, era impossível
este mundo todo ficar com os militares mandando
eternamente. Teria de haver um paradeiro para isso. Já
era negativo esse fato na opinião pública internacional.
Naquela fase, algumas figuras da Europa haviam
se manifestado contra a Guerra da Vietnã, e havia
protestos cada vez maiores, inclusive nos Estados
Unidos. Uma das pessoas que em primeiro lugar
realizou um ato que teve uma grande repercussão foi
Olof Palme, primeiroministro sueco, do Partido
Socialista da Suécia, que reuniu 10 mil pessoas na
praça pública para se opor à Guerra do Vietnã.
Portanto, essa opinião que se formava fazia com
que a direita receasse uma mudança, uma
transformação. Essa reunião examinava isso e estudava
providências e precauções a serem tomadas para evitar
que pessoas importantes que estavam presas e
exiladas, em diferentes países, pudessem chegar e
empalmar a opinião pública no caso de uma eleição, de
uma mudança brusca da situação política. Nessa
17
18.
reunião, eles já haviam condenado à morte as pessoas
que estivessem nessa situação e que atendessem a
esse critério.
Assim, eles me pediram que transmitisse essa
informação a pessoas de outros países, pessoas que
estivesses mais ou menos nessa situação. Enfim, que
transmitisse a informação a alguém de confiança para
que cada um fizesse o trabalho dentro das suas áreas
de exilado.
Eu perguntei por que elas, essas pessoas, pediam
isso logo para mim. Eles me disseram: “Primeiro, por
causa da referência que nos foi dada pelo Coronel
Hoffmann; segundo, porque analisando os nomes,
verificamos que o senhor é quem está em melhores
condições de realizar este trabalho, pela sua condição
de exilado aqui na Argélia. O senhor pode se deslocar
para alguns lugares, porque nós não podemos contactar
todo mundo. Não podemos contactar, porque nós não
podemos aparecer em canto algum. Nós estamos aqui
falando com o senhor excepcionalmente, porque é uma
questão decisiva e importante. Assim, o senhor vai ter
esta missão”.
Dessa forma, eu procurei realizar a missão. Fui à
Europa, procurei alguns exilados chilenos e pessoas de
outros países para comunicar essa notícia que me
tinham dado. Não se passou um mês desse
acontecimento, foram assassinados Gutiérrez e
Michelino, dois uruguaios, e uma sucessão de
assassinatos se seguiu nos diferentes países da
América Latina. Todos sabem, e aqui a Comissão pode
até listar, que foi a partir dessa oportunidade que
18
19.
mataram o General Prats, mataram o Letelier, mataram
não sei quem... Tudo isso no espaço de algum tempo.
Então, vejam, qualquer pessoa sabe que as três
pessoas mais importantes no caso da abertura no Brasil
era Juscelino Kubitschek, João Goulart e Carlos
Lacerda. Eram essas pessoas que podiam aparecer
como condutores de uma frente nacional para refazer o
País. Portanto, se os senhores pegam essas três
pessoas e juntam com o critério que me foi comunicado
naquela oportunidade, só podemos dizer que eles
tinham sido condenados à morte. Como é que eles
morreram? É outro fato. Mas que a condenação havia,
havia.
Um outro fato é uma conversa que tive com o
Carlos Castello Branco. Ele passou pela Europa depois
da morte de Juscelino Kubitschek. Eu estive com ele em
Paris por apenas um dia. Ele me procurou e estivemos
juntos por um dia. Contei a ele essa história, e ele me
disse que tinha procurado indagar as circunstâncias da
morte de Juscelino. Circunstâncias que ninguém até
hoje explicou, ninguém sabe delas efetivamente.
Sabese que ele morreu em um desastre na via Dutra.
Juscelino, que foi o homem que mais voou neste
País, morre em um desastre de automóvel, em uma
viagem que ele jamais faria de carro – de São Paulo
para o Rio de Janeiro. Por que Juscelino saiu de carro?
Ele mandou buscar o seu motorista – são detalhes que
me informaram – no Rio de Janeiro, sendo que ele
estava em São Paulo. O Sr. Adolfo Bloch deixava um
carro á disposição de Juscelino, e ele tinha um
motorista de confiança. Então, Juscelino manda buscar
o seu motorista, que também morreu no acidente, para
19
20.
fazer essa viagem. E o motorista foi do Rio para São
Paulo para fazer a viagem do expresidente.
Pois bem. O Castello dizia que o inquérito tinha
procurado lançar a culpa para o ônibus, mas que as
perícias que fizeram – depois ninguém fez mais perícia,
nem quis saber de nada, nem aprofundaram as
investigações – tinham descartado o ônibus. Não podia
ser o ônibus. A tinta que estava no carro de Juscelino
era preta. O carro que bateu e desequilibrou o carro de
Juscelino teria sido um carro de cor preta, pois a tinta
estava lá. Mas que esse tal carro preto tinha sido visto
por testemunhas. Então, o Castello Branco lançava
muitas questões em cima da morte de Juscelino
Kubitschek.
Vejam, no meu caso, o que eu posso dizer, diante
dessas informações e sobretudo da comunicação que
me foi feita, nas circunstâncias em que recebi tais
informações, é que havia essa condenação e que
morreram sucessivamente no Brasil Juscelino, Jango e
Lacerda, os homens que haviam sido indicados na
condenação prévia nessa reunião no Cone Sul. Então,
na minha cabeça. Eu não diria que nenhum deles
morreu de morte natural. A suspeita e a dúvida existem
evidentemente. Se esta Comissão puder aprofundar
com fatos e testemunhas, penso que será da maior
importância a apuração de tal procedimento.
Era o que eu podia dizer, Sr. Presidente.
Os debates que se seguiram à exposição inicial permitiram ao expositor
precisar alguns fatos e tecer novas considerações.
20
21.
Registrese, em primeiro lugar, que o depoente evitou falar de lista de
pessoas a serem assassinadas. Deixou claro que seus informantes não
falaram em lista. Eles estabeleceram o critério que havia sido adotado
na reunião. O critério era esse, ou seja, quem tivesse certas condições
ou ameaçasse levantar o País, levantar a população em uma posição
oposta à deles tinha de morrer antes. Ora, nesse processo militar, era
esse um dos objetivos: liquidar não só as grandes lideranças, mas
liquidar as lideranças do País, seja pela prisão, pelo decurso do tempo,
por tudo. Esse era um procedimento traçado por eles.
Em segundo lugar, o depoente pôde precisar a data em que se reuniu
com seus informantes: quinze, vinte dias antes do dia em que foram
assassinados os Srs. Michelini e Gutiérrez.
Em terceiro lugar, o depoente detalhou melhor a situação das pessoas
que lhe transmitiram as informações sobre articulações da extrema
direita para eliminar líderes populares na América do Sul.
... essas pessoas que me procuraram não deram o
nome. Elas estavam credenciadas, quer dizer, eu sabia que
eram pessoas que eu devia escutar, mas eram agentes.
Ninguém pode saber quem são essas pessoas que se
infiltraram para saber dessa reunião do Cone Sul, e
evidentemente eu não tinha nem condições de perguntar. Se
perguntasse, elas podiam até me dar um nome falso, porque
não podiam aparecer. Essas pessoas me procuraram e
explicaram – não sei se fui claro – que me escolhiam, porque
não podiam procurar muita gente e aparecer para exilado
chileno, para exilado daqui...
Eles não podiam, pela função que exerciam, a função
deles era ter a cara escondida, isso é uma coisa lógica. Daí o
fato de terem conseguido essa informação de uma reunião
21
22.
ultrafechada. O coronel, que por sinal faleceu, é o homem do
Governo argelino que disse que essas pessoas iam me
procurar, e efetivamente me procuraram para dizer isso. Era
o Coronel Sulleiman Hoffmann. Esse coronel já é falecido. Era
assessor do Presidente Boumedienne.
Em quarto lugar, o depoente manifestou desconhecimento a respeito
das pessoas que lidavam com o Presidente João Goulart no Uruguai,
com exceção parcial de Cláudio Braga.
Infelizmente, não posso dizer nada a esse respeito.
Conheço o Cláudio Braga, porque ele foi presidente de
sindicatos em Pernambuco. Não tinha muita ligação ou
aproximação com ele, embora me dê com ele. Ele conhecia o
Presidente João Goulart. Eu sei que ele conhecia já de antes,
mas esse relacionamento mais próximo foi coisa do exílio.
Não era um relacionamento que existia antes. Essa é uma
coisa que só o pessoal que morava no Uruguai pode saber.
Em quinto lugar, o depoente voltou a emitir dúvidas sobre a morte de
Juscelino Kubitschek.
A perícia em relação a Juscelino conclui ter sido um
acidente. Acidente foi; porém, foi provocado? A
desestabilização de um carro é uma coisa que, para
pessoas que sabem fazer, não é problema nenhum. É a
coisa mais simples do mundo. Essa dúvida fica. Eu, pelo
menos, duvido disso.
Não estou pondo em dúvida as pessoas que fizeram
os laudos, mas o testemunho que Carlos Castello Branco
me deu foi esse: que testemunhas não foram ouvidas,
gente que não quis depor; há toda essa história. Em meio a
22
23.
uma ditadura, quem iria depor e dizer que ele foi
assassinado? Não é fácil. O que me ficou foi isso. Como
salientou o deputado Miro, sou uma das pessoas, talvez,
que soube antes dos fatos que isso iria acontecer. Ouvi a
sentença que havia sido pronunciada nessa reunião do Cone
Sul e que essa sentença começou a ser executada.
Veja, deputado, não acredito que Deus tivesse sido
escolhido para ser carrasco dos três brasileiros que
morreram em sequência. Se foi de morte natural e se foi
obra de Deus, foi Deus quem executou essa sentença. É
muito estranha a seqüência dessas mortes, quando se liga
a esse fato que relatei.
Em sexto lugar, o depoente distinguiu a repressão no Brasil pela
precisão com que buscou seus alvos.
O que podemos apreciar é o seguinte. As diferenças
de método de um lugar para o outro, a sofisticação da
repressão, a seletividade em cada um dos países. Aqui, no
Brasil, a seletividade foi das mais importantes que já vi.
Aqui existiram os excessos, a tortura, a morte das pessoas,
mas observo que, no geral, aqui as coisas sempre foram
medidas e contadas, tanto quanto podia ser. A estrutura
brasileira não era no estilo Pinochet, que mandava matar no
meio da rua, matava quem era preciso matar. Se formos
estudar isso, será um trabalho muito complicado.
Cabe destacar, ainda, a importante análise política que o depoente
realizou em relação à possível neutralização da investigação pela
impossibilidade de comprovar o assassinato.
23
24.
Na posição que estamos, se negaram a autópsia, não
podemos concluir que alguém matou, que foi assim ou
assado. Mas retirar dúvidas... Só quem quer retirar dúvidas
é a extrema direita. Para nós, ela fica. Ela fica porque nem
prova uma coisa nem outra. Ela fica e tem de ser mantida.
Politicamente é fundamental que seja mantida,
porque as mortes havidas aqui e em outros países mostram
que essa sentença foi efetivamente pronunciada. A morte
de todos esses líderes em outros países é a prova de que a
sentença efetivamente existia.”
O próprio Arraes não revelou, naquela ocasião, ante o seu
temperamento discreto e recatado, que quase foi vítima da Operação
Condor e dos agentes de Fleury, por mais de uma vez, na França,
inclusive iria ao encontro de Ben Barka, quando minutos antes foi
avisado do perigo pelo Serviço Secreto Argelino.
24
25.
3. AS MISTERIOSAS MORTES DE JANGO, JK E LACERDA
3.1. A MORTE DE JANGO
Inconformada com a ausência de esclarecimentos, ao menos,
razoáveis, acerca da morte de João Goulart, a família do expresidente
ingressou com uma ação perante a Procuradoria Geral da República,
solicitando a investigação dos responsáveis pelo seu suposto
assassinato por envenenamento. Jango morreu em 1976, na Argentina,
quando se encontrava exilado; cerca de uma década antes, havia sido
deposto do comando da nação brasileira por intermédio do golpe
ditatorial de 1964.
O pedido da família de Jango chegou ao órgão de controle interno
seguido da gravação de uma entrevista com Mario Neira Barreiro
(exparticipante do serviço de inteligência uruguaio que atualmente se
encontra isolado em uma penitenciária brasileira), tendo sido esta
realizada pelo filho de Jango, João Vicente Goulart. Na entrevista em
lume, Barreiro narra minuciosamente a chamada Operação Escorpião
(que, por sua vez, estaria subordinada à Condor), possivelmente
responsável pelo assassinato de Jango por envenenamento. Os
medicamentos habituais do expresidente, cardiopata, teriam sido
adulterados. Eis o relato de Mario Neira Barreiro a respeito:
“Não me lembro se colocamos no Isordil, no Adelpan ou no
Nifodin. Conseguimos colocar um comprimido nos remédios
importados da França. Ele não poderia ser examinado por 48
horas, aquela substância poderia ser detectada ”. 6
Segundo informações oficiais, a morte de Jango se deu em razão de um
ataque cardíaco, em sua Fazenda localizada na Argentina (cidade de
6
Família denuncia assassinato de João Goulart por envenenamento. Disponível em:
<http://www.apn.org.br/apn/content/view/66/44/>. Acesso em: 06 de dezembro de
2011.
25
26.
Mercedes), na madrugada do dia 6 de dezembro de 1976. À época, o
expresidente possuía apenas 57 anos. Seu corpo foi sepultado sem
sequer ter sido submetido a uma autópsia (pasmem!). Impende
destacar que, há não muito tempo, uma comissão externa da Câmara
dos Deputados passou cerca de 6 anos averiguando a morte de Jango.
João Vicente Goulart, filho de Jango, atestou, remetendo à entrevista
com Barreiro, que:
“[...] surgiram depois informações sobre o serviço secreto do
Itamaraty e a colaboração entre esse serviço e os de outros
países, que dão veracidade ao que ele disse. Essa colaboração
já existia antes da Operação Condor .” 7
Ao realizar essa declaração, o filho de Goulart aludiu à publicação de
documentos relativos ao CIEX – Centro de Informações do Exterior.
Este último foi um serviço secreto do Itamaraty incumbido de vigiar os
exilados brasileiros desde os anos 60.
O centro de informações em questão foi divulgado no Correio
Braziliense através de reportagens do jornalista Claudio Dantas
Sequeira datadas de julho de 2007. O supracitado jornalista, a
propósito, ganhou diversos prêmios em decorrência das mesmas.
Toda a documentação utilizada por Sequeira para compor a reportagem
atualmente se encontra guardada no Arquivo Nacional. Não obstante
diversos pesquisadores tenham tentado acessar tais materiais, são
impedidos de fazêlo quanto a documentos concernentes a vítimas do
regime militar, já que os mesmos têm acesso restrito apenas aos
respectivos familiares.
7
Idem, ibidem.
26
27.
3.2. A MORTE DE JK
Até os dias atuais, subsiste uma série de dúvidas quanto à morte
do expresidente Juscelino Kubitschek. Suspeitase que a mesma
esteja atrelada à Operação Condor.
O consultor Legislativo Lúcio Reiner, participante de uma
Comissão externa da Câmara dos Deputados destinada a esclarecer as
Circunstâncias políticas quando da morte do expresidente Juscelino
Kubitschek, chegou às seguintes conclusões a respeito, em meados de
Abril/2001:
A investigação das condições em que se deu a morte do
expresidente Juscelino Kubitschek não se esgota com a perícia do
acidente automobilístico em que o estadista faleceu, nem foi essa a
intenção desta Comissão Externa. [...] O principal mérito desta
Comissão é ter desvendado a verdade: a “Operação Condor”
existiu, o Brasil desempenhou parte ativa e o papel do país foi
de importância fulcral. A participação do Brasil nessa onda de
repressão deve ser ressaltada para que as futuras gerações não
desconheçam os perigos que rondam qualquer ruptura de padrões
democráticos na resolução de conflitos políticos. [...]
A morte de Juscelino Kubitschek, em agosto de 1976, quando, o
que pode surpreender, justamente começava vislumbrarse a distensão
do regime ditatorial, constitui excelente oportunidade para a análise do
padrão que seguiram as ditaduras sulamericanas na década de 70.
Juscelino Kubitschek não era um perigoso extremista nem sequer
participara do governo deposto em 1964. Governador de Minas Gerais
27
28.
e presidente da República, sob a legenda do PSD, partido ligado a
interesses de grandes proprietários rurais e da indústria, seu perfil
sempre foi o de agente político democrata e conciliador. No exercício da
presidência, não apenas conseguiu apoios em todos os partidos
políticos relevantes como anistiou aqueles que tentaram, por meios
ilícitos, apeálo do cargo, como os golpistas da pantomima de
Aragarças.
Quando sobreveio o golpe de Estado que derrubou o governo
João Goulart, Juscelino Kubitschek era senador pelo estado de Goiás.
Foi um dos políticos que tentaram acreditar no caráter transitório do
golpe militar, apresentandose como fortíssimo candidato a retornar à
presidência da República nas eleições previstas para 1965, após o que
seria brevíssima intervenção “saneadora” para purgar os elementos
esquerdistas. No entanto, em 3 de junho de 1964, seus direitos
políticos foram cassados pelo primeiro ato institucional do governo de
exceção. Embora determinado a permanecer no Brasil, o que acabou
por conseguir, teve que sair do país mais de uma vez, sob ameaças de
morte, na década de 60.
No ano de 1966, quando se encontrava no exterior, participou
das negociações para a formação da chamada Frente Ampla,
movimento que congregava políticos das mais variadas tendências
adversários até então irreconciliáveis com o intuito de fazer o país
retornar ao caminho da democracia representativa. Os três nomes
mais importantes da Frente eram justamente os líderes mais
destacados dos três maiores partidos políticos extintos pelo
golpe de 64. Eram eles, respectivamente, além de Juscelino,
pelo PSD, João Goulart pelo PTB e Carlos Lacerda pela UDN.
Entre os fatos mais notáveis da história recente do Brasil
está a morte desses três líderes, em curto lapso de tempo,
quando começava a delinearse a abertura política do regime.
28
29.
Desapareceram, muito convenientemente para o regime de
arbítrio, as três maiores alternativas de poder, posto que, em
caso de eleições diretas, com certeza um dos três teria sido
eleito presidente da república.
Em meados da década de 70, a ditadura estava firmemente
implantada no Brasil e se espalhava por todo o sul do continente
americano. Em 1973 houve o golpe no Chile, em 1976 na Argentina, e
no mesmo período o Uruguai, o Equador e o Peru também estavam sob
a férula de regimes militares. [...]
No Brasil, no entanto, começava a ficar claro que o regime não
conseguira conquistar apoio suficiente para uma permanência mais
longa no poder. Apesar das restrições a uma oposição política mais
atuante e de alguns anos de crescimento econômico acelerado, as
urnas mostraram, em 1974, claro repúdio da população ao governo. Só
restavam duas alternativas ao regime: ou o recrudescimento da
repressão, ou a abertura controlada de cima.
Ao mesmo tempo, a coordenação entre órgãos de repressão do
continente, que já existia e se mostrara claramente no golpe de 64,
começa a ganhar alguma formalização, no que veio a ser chamado de
Operação Condor. Esta Comissão Externa conseguiu realizar extensa
pesquisa sobre essa coordenação repressiva, inclusive com visitas ao
Paraguai, ao Chile e aos Estados Unidos, obtendo farta documentação
oficial que não deixa dúvidas sobre a existência e a dimensão da
operação. [...]
É curioso constatar que, no caso do Brasil, por exemplo, o maior
desafio às forças armadas não se originou nas organizações de
esquerda, mas no próprio ministério do exército, culminando com a
crise institucional que provocou a demissão do general Frota. Esse novo
29
30.
contexto tornou ainda mais clara uma das principais preocupações das
ditaduras sulamericanas: fechar o caminho de retorno de antigos
líderes políticos a postos de destaque após eventual afastamento da
ditadura. Para tanto, não foi descartado o recurso à eliminação física
dos adversários, inclusive de adversários exilados em outros países. Os
casos são numerosíssimos e de conhecimento público, como os do
general Torres, presidente deposto da Bolívia, cujo carro explodiu em
Buenos Aires.
Um dos documentos mais importantes desse período mostra
com toda nitidez a posição do expresidente Juscelino
Kubitschek nesse processo. Praticamente não pairam dúvidas
sobre a autenticidade da carta, de 28 de agosto de 1975,
enviada pelo então coronel Manuel Contreras Sepúlveda, diretor
da DINA — Directoría de Inteligencia Nacional, serviço secreto
chileno, ao general João Figueiredo, então chefe do SNI —
Serviço Nacional de Informações, em que o militar chileno
responde a carta do colega brasileiro, de 21 de agosto do mesmo ano.
Essa correspondência traz indicações importantíssimas. Primeiro,
o autor agradece informações recebidas, o que mostra que a
articulação entre os serviços de repressão dos dois países já existia.
Segundo, demonstra receptividade ao plano de coordenação de
esforços, presumivelmente maior que o já existente, para atuar contra
autoridades eclesiásticas e políticas da América Latina e da Europa.
Terceiro, e mais importante para esta pesquisa, afirma compartilhar de
preocupação do general João Figueiredo quanto a possível vitória do
candidato Jimmy Carter nas eleições presidenciais dos Estados Unidos.
A carta cita expressamente dois políticos que seriam beneficiados por
suas boas relações como Partido Democrata estadunidense; o chileno
Orlando Letelier e o brasileiro Juscelino Kubitschek.[...]
30
31.
Os trabalhos desenvolvidos pela Comissão Nacional da Verdade CNV,
portanto, não se fundaram em qualquer morbidez, qualquer intenção
de sustentar suspeitas pouco verossímeis, mas em fatos políticos
comprovados em fontes oficiais só agora liberadas no Chile, Paraguai e
EUA e em depoimentos relevantes. Ademais, como já foi referido,
ainda que se aceite a hipótese de morte por acidente, não se
pode deixar de trazer a público a situação a que estava
submetida uma figura pública como Juscelino Kubitschek [...]
Destarte, em função da documentação obtida e dos depoimentos
colhidos, fica patente a existência de uma conspiração, organizada
pelos órgãos repressivos dos regimes militares da época, para eliminar
fisicamente todo opositor potencial. Máxime aqueles com
possibilidades, mesmo que longínquas de retornar ao poder. Mais
ainda, podese até afirmar que todo político com simpatia
popular era visto como uma ameaça e, portanto, passível de ser
eliminado, pouco importando sua posição no espectro político.
Ou seja, podese concluir que, do ponto de vista político, estava em
andamento uma verdadeira guerra suja contra a democracia. Em
resumo em todo o Sul do continente, existiu uma operação que incluía
entre seus alvos a eliminação física de líderes políticos eminentes no
período anterior à implantação generalizada de ditaduras militares em
nossos países.
O expresidente Kubitschek, além de ser, sem sombra de
dúvidas, uma das pessoas mais preparadas para conquistar
forte apoio popular quando da retomada de eleições diretas
para a presidência da República (situação que já se vislumbrava no
horizonte político brasileiro), fora explicitamente citado em
correspondência entre os chefes dos serviços de inteligência do
Chile e do Brasil como alvo de preocupação, sendo que o outro
31
32.
político citado, o exchanceler chileno Orlando Letelier, foi
executado mediante explosão de seu carro em Washington.
Juntese a isso a circulação, nos meios jornalísticos de Brasília,
de boatos sobre sua possível morte em acidente automobilístico
forjado, dias antes de que o fato viesse realmente a ocorrer,
para que se possa sustentar, com firmeza, que o expresidente
Juscelino Kubitschek era uma das vítimas potenciais da
Operação Condor. [...]
O jornalista recifense Urariano Mota, por sua vez, resume os fatos que
nos possibilitariam concluir pelo assassinato do expresidente Juscelino
Kubitschek em um artigo intitulado “JK: Acidente ou atentado?”:
1. Em 1975, o jornalista Jack Anderson revelou que o general
chileno Manuel Contreras qualificou Kubitschek como uma ameaça, em
uma carta enviada ao ditador João Figueiredo. Bueno. Contreras era
chefe do Serviço de Inteligência do regime do Augusto Pinochet,
responsável pela morte do exchanceler chileno socialista Orlando
Letelier, ocorrida em 1976 em Washington, e atribuída à Operação
Condor.
2. Segundo o cientista político Luiz Roberto da Costa Jr, em
artigo no Observatório da Imprensa, ao mencionar as circunstâncias da
morte de JK: “Não houve choque com o ônibus da Cometa, pois este
estava atrás da Caravan verde. Testemunhas do ônibus que afirmam
ter visto o clarão (‘sol’, como quer a versão oficial) e ouvido a explosão
(‘batida’, como quer a versão oficial) não depuseram. O Opala periciado
em 1996 não corresponde ao Opala do acidente em 1976, o chassi é
diferente”.
3. Na revista Época de 29.3.1999, sob o título de Um tiro na
história: “Depois de 35 anos trabalhando como perito criminal na
32
33.
Polícia Civil de Minas Gerais, o historiador Alberto Carlos Minas está se
aposentando e decidiu fazer uma revelação: ‘Eu vi um buraco de bala
no crânio do motorista Geraldo Ribeiro’. Era Geraldo Ribeiro quem
dirigia o Opala do expresidente Juscelino Kubitschek no dia 22 de
agosto de 1976, quando bateu num ônibus na Via Dutra e ambos
morreram... Segundo Minas, quando o corpo de Geraldo Ribeiro foi
exumado, há pouco menos de três anos, o crânio estava inteiro e tinha
um buraco. ‘De bala’, garante. ‘Depois que vi isso não me deixaram
entrar na sala novamente’”.
4. E mais, do mesmo Carlos Alberto, em uma rápida entrevista:
“As fotos das vítimas sumiram. Em 1996 o processo foi reaberto, mas
jamais poderia ter prescrito. A família do motorista nunca viu o corpo
dele. Eu era o perito do caso e não pude acompanhar de perto a
exumação dos corpos. Quando levantaram a ossada do Geraldo Ribeiro,
vi um buraco de bala no crânio dele... Do tamanho da tampa de uma
caneta, de cerca de 7 milímetros. O crânio estava íntegro e intacto. Eu
o vi inteiro na minha frente, ele não estava esfacelado como depois
apareceu. Podem dizer que eu estava enganado quanto ao buraco,
mas, se eu estiver errado, como eles explicam um objeto metálico
dentro do crânio do Geraldo? Por que o crânio estava fragmentado
depois dos exames?”.
5. Em livro que me foi enviado por Maria de Lourdes Ribeiro, filha
do motorista e amigo de JK, há o laudo número 12.31/96, do IML de
Minas Gerais. Nele se escreve: “... fragmento metálico de forma
cilindrocônica, medindo sete milímetros de comprimento e diâmetro
médio de dois milímetros, revelandose como fragmento de prego
enferrujado e corroído, recolhido do interior do crânio...”.
6. Notese a passagem especiosa e esperta de bala para prego. E
mais: uma coisa é um prego dentro de um crânio, ali depositado “em
33
34.
período posterior à destruição das partes moles, provavelmente através
de forames da base craniana”, nos termos e imaginação do laudo exato
do IML Outra coisa é um buraco no crânio, criado pelo acaso desse
prego de Deus.
[...]
3.3. A MORTE DE LACERDA
Em entrevista publicada na revista Istoé de 04 de junho de 2000,
a amante e a filha de Carlos Lacerda asseguram que o exjornalista foi
assassinado:
AMANTE AFIRMA QUE EXGOVERNADOR FOI ASSASSINADO E
FILHA REFORÇA SUSPEITA DE ATENTADO POLÍTICO
O depoimento da jornalista Maria Cecília de Azevedo Sodré, 46 anos,
tem tudo para provocar um furacão nas investigações sobre o
envolvimento das Forças Armadas nas mortes dos três maiores líderes
políticos do País num intervalo de dez meses: os expresidentes
Juscelino Kubitschek e João Goulart e o exgovernador Carlos Lacerda.
“Mataram Lacerda”, afirma ela. Vinte e três anos após a morte, Maria
Cecília falou pela primeira vez sobre o tórrido romance que manteve
com o líder da extinta UDN nos dois últimos anos de vida do
exgovernador.
Numa entrevista exclusiva a ISTOÉ, a amante de Lacerda
contesta as versões até agora conhecidas, de que ele andava doente e
abatido. Para ela, nada indicava que o líder udenista pudesse morrer a
qualquer momento. “Ele vivia o auge de sua glória, como homem,
pensador e amante.” Oficialmente, Lacerda morreu em 1977, aos 63
anos, de infecção no coração (endocardite bacteriana) um dia depois de
se internar na Clínica São Vicente, no Rio, com desidratação causada
34
35.
por uma gripe. Os indícios de que uma cooperação entre militares da
Argentina, Chile, Paraguai e Brasil – a Operação Condor – foi montada
em 1975 para combater opositores já levaram a Câmara dos
Deputados a abrir investigações sobre as mortes de Jango e JK, ambas
em 1976. A suspeita de assassinato de Lacerda ainda não é
investigada.
A amante não é a única a discordar da maioria da família
Lacerda, conformada com a versão oficial. A também jornalista Cristina
Lacerda, 48 anos, filha do exgovernador, desconfia que ele tenha sido
vítima da mesma operação que teria eliminado JK e João Goulart. Os
três lideravam os maiores partidos extintos pelo golpe de 64 e
morreram quando ainda articulavam o retorno às eleições diretas, após
a frustrada tentativa de montagem da Frente Ampla, de oposição ao
regime militar. Jango seria o candidato do PTB, JK concorreria pelo PSD
e Lacerda pela UDN. “Imagino que tenham localizado o hospital e se
organizado para se infiltrar lá e matar meu pai. Assim como há
suspeitas de que trocaram o remédio de Jango, há a hipótese de que
tivessem acompanhado meu pai durante a doença. Ele era um homem
saudável”, recorda Cristina.
A amante de Lacerda reforça. “Não existia nada que pudesse
fazêlo entrar no hospital e sair morto. O País inteiro sabia que Carlos
continuava atento”, diz Maria Cecília, endossando a tese de
assassinato. Quando morreu, Lacerda mantinha o casamento de 40
anos com Letícia, mãe de Cristina, Sebastião e Sérgio. “Minha única
intenção é esclarecer os fatos. Meu pai se sacrificou muito pelo Brasil”,
desabafa Cristina, que descarta, no entanto, apoiar uma possível
exumação do corpo do pai, classificandoa como violência.
Investigação – Um dos aspectos relevantes da fase final da carreira
de Lacerda, segundo Cristina, foi a relação afetuosa com seus
35
36.
arquiinimigos Jango e JK, aos quais procurou para costurar a Frente
Ampla. Lacerda foi cassado em dezembro de 1968 e esperava
recuperar seus direitos políticos em 1978. Os documentos colecionados
por Cristina evidenciam que Lacerda se reaproximava da esquerda.
Golpista radical em 64, ele fora simpatizante do PCB até os 25 anos.
Pouco antes de morrer, segundo Cristina, seu pai passava por uma
crise existencial, com altos e baixos, e tomava remédio para
emagrecer. Os problemas de saúde de Lacerda levam seu filho mais
velho, Sebastião, a acreditar na morte por infecção no coração.
Segundo ele, não há indícios que possam confirmar a hipótese de
atentado. “Meu pai estava com a saúde debilitada”, diz ele.
Ao contrário da morte de Lacerda, que nunca foi objeto de
investigação, o acidente que matou JK foi alvo de dois inquéritos
policiais. Na tarde de 22 de agosto de 1976, um domingo, o
expresidente deixou São Paulo e pegou a via Dutra em direção ao Rio
no Opala dirigido por seu motorista particular Geraldo Ribeiro. Por volta
de 18h, na altura do antigo quilômetro 165, em Resende (RJ), o carro
se desgovernou, cruzou a pista e bateu de frente com uma carreta, que
vinha em sentido contrário. Desde então, começaram as controvérsias.
JK teria sido vítima de um atentado ou foi apenas um acidente comum,
como concluiu a polícia em 1976 e 20 anos depois, quando foi reaberto
o inquérito?
Boato – A família nunca acreditou na versão oficial, de que o carro de
JK teria sido abalroado por um ônibus da Viação Cometa, e, por isso,
teria se desgovernado. Das três mortes, a de JK é a mais misteriosa.
Duas semanas antes do acidente, jornais, rádios e tevês haviam
recebido a notícia de que o expresidente havia morrido,
coincidentemente num desastre de carro.” O boato foi na verdade um
balão de ensaio lançado pelos militares linha dura que queriam testar a
reação do País à morte de JK”, afirmou Serafim Jardim, amigo do
expresidente e autor do livro Juscelino Kubitschek.: onde está a
36
37.
verdade? Ao saber dos boatos, JK comentou com Serafim: “Estão
querendo me
matar, mas ainda não conseguiram.”
São inúmeras as falhas da investigação. Um dos fatos mais
intrigantes é o de que os peritos não incluíram nos dois laudos feitos
sobre o acidente as fotos dos corpos de JK e do motorista “por
recomendação de ordem superior”. “Até hoje essas fotos não
apareceram”, acrescentou Serafim. O amigo do expresidente ressalta
ainda que apenas 9 dos 33 passageiros do ônibus foram ouvidos pela
polícia e nenhum disse que o motorista Josias Nunes de Oliveira teria
batido no carro de JK. O juiz Gilson Vitorino, de Resende, também o
inocentou em sentença que consta do processo.
O segundo laudo do acidente foi assinado pelo perito Sérgio de
Souza Leite, que em 1995 foi demitido do Ins tituto de Criminalística
Carlos Éboli, do Rio de Janeiro, após ter sido alvo de denúncias contra
seus laudos no Ministério Público. O perito aposentado Alberto Carlos
Minas, que foi contratado pelos responsáveis pela reabertura do
inquérito, em 1996, rechaçou as perícias feitas na época da morte do
expresidente. “O ônibus não tocou no carro de JK. Se tivesse batido no
Opala, como a versão oficial sustenta, o ônibus teria atropelado o carro
onde estava Juscelino”, concluiu Minas. Permanece no ar a pergunta: O
que fez o carro de JK se desgovernar?
As investigações passaram longe de um fato importantíssimo,
comprovado por ISTOÉ na semana passada. Pouco antes de morrer, JK
parou por cerca de 40 minutos no Hotel Fazenda Villa Forte, em
Resende. O estabelecimento fica a menos de três quilômetros do local
do acidente e seu dono era o brigadeiro Newton Villa Forte, um dos
criadores do serviço secreto das Forças Armadas, embrião do SNI.
Mesmo tendo ido para a reserva em 1949, o oficial foi ativo no golpe de
37
38.
64, servindo de elo entre generais paulistas e mineiros que marcharam
sobre o Rio a partir da Academia Militar das Agulhas Negras, em
Resende. Seria mera coincidência JK morrer minutos depois de deixar o
hotel de um integrante da comunidade de informações, responsável
pelos frequentes atentados contra os opositores do regime militar?
Perseguições – O brigadeiro Villa Forte morreu em 1981, mas seu
filho Gabriel, 46 anos, um dos atuais donos do hotel, lembra de seus
comentários sobre a passagem de Juscelino. “JK parou aqui para tomar
água ou chá e esticar as pernas nas alamedas”, diz Gabriel. Na versão
de seu pai, o brigadeiro reconheceu o expresidente e foi
cumprimentálo. Segundo Gabriel, o hotel abrigou várias reuniões de
oficiais de alta patente do serviço de inteligência, mas naquele dia não
teria havido reunião. “Meu pai estudou com Castello Branco e deu aulas
ao general João Figueiredo. Golbery esteve várias vezes aqui”, afirma.
O episódio surpreendeu Maristela Kubitschek, filha do expresidente.
“Nunca tinha ouvido esta história do hotel. A comissão é que vai poder
investigar”, disse Maristela, referindose à comissão aberta a pedido do
deputado Paulo Octávio (PFLDF), genro de sua irmã Márcia.
A comissão que investiga a morte de Jango foi pedida pelo
deputado Miro Teixeira (PDTRJ). A história oficial conta que o
expresidente morreu de ataque cardíaco em 6 de dezembro de 1976
em sua fazenda na Argentina. As dúvidas sobre o atestado de óbito –
que fala apenas em enfermidad (doença) – atormentam a viúva Maria
Thereza e os filhos João Vicente e Denise. Maria Thereza, 63 anos,
começou a desconfiar de assassinato em 1982, quando surgiram as
primeiras denúncias.
João Vicente, 43 anos, subsecretário de Agricultura do Estado do
Rio, acredita que o maior indício de que seu pai sofria perseguições foi
a “visita” no início de 1976 de três brasileiros desconhecidos ao
38
39.
escritório de exportação onde Jango trabalhava, na avenida Corrientes,
centro de Buenos Aires. “Um comando como este só não levou Wilson
Ferreira Aldunate (candidato à presidência do Uruguai) porque ele fugiu
de pijamas para a embaixada do México”, relata. João Vicente recebeu
uma carta do pai em maio de 1976, alertando para a tensão em que
vivia: “Há dois dias sequestraram do hotel nossos amigos Michellini e
Gutierrez Ruiz (senador e deputado da Frente Ampla uruguaia,
assassinados). Uma monstruosidade que me leva a pensar em meu
futuro na Argentina.”
A família Goulart, que suspeita ter havido envenenamento ou
troca do remédio para o coração, se recusava a permitir a exumação do
corpo, mas mudou de idéia com as notícias sobre a Operação Condor.
João Vicente alega que antes não existia tecnologia capaz de detectar
com precisão a real causa da morte. “Nossa única condição à exumação
é ter certeza de que serão usadas as técnicas mais eficazes”, exige o
filho de Jango. Maria Thereza conta que nunca tinha lido o atestado de
óbito. “Apenas dobrei o papel e o guardei na gaveta. Só soube pelo
noticiário que o médico argentino escreveu apenas enfermidad. Acho
estranhíssimo não haver um diagnóstico correto.”
3.4. A MORTE DE EMANNUEL BEZERRA DOS SANTOS
Líder da Casa do Estudante e importante dirigente do Partido
Comunista Revolucionário (PCR), Emmanuel Bezerra dos Santos logo
chamou a atenção dos militares em sua luta pela democracia. Por isso,
acabou sendo assassinado pelo Coronel de infantaria Cúrcio Neto
(codinome Doutor Fernando) em meados de 1973.
O expreso político e jornalista Rubens Lemos teve a oportunidade de
conhecêlo antes da tragédia e descreve parte da história desse
corajoso militante político:
39
40.
Do alto da escadaria, no saguão de entrada, lá estava ele: EMMANUEL
BEZERRA. Com sua cara tipicamente interiorana, o líder da Casa do
Estudante falava agitado. As palavras fluíam fáceis e convincentes.
EMMANUEL esgrimia palavras como uma espada de fogo num belo e
comovente discurso contra o regime militar que sufocava as liberdades
do povo. Chamava/conclamava os colegas para ao lado do povo
organizado combater a insanidade repressora patrocinada pelos
"donos do Brasil".
Policiais (pouco disfarçados) faziam plantão, dentro e fora do Atheneu.
Os olhos da Ditadura estavam voltados para aquele jovem nascido em
Caiçara.
Não haveria possibilidade de realização do debate para o qual haviam
me convidado os secundaristas. A música era outra; A voz de
EMMANUEL BEZERRA e, ele próprio, encarnando a resistência contra o
arbítrio.
Muitas vezes, mesmo que rapidamente, mantivemos contato.
EMMANUEL sempre se mantinha íntegro. Coragem e determinação à
flor da pele.
Um dia, a repressão iniciou a caçada sistemática ao jovem líder. Ele,
porém, já estava nos becos da clandestinidade. Transformarase num
guerrilheiro. EMMANUEL, O COMBATENTE.
Em 1970, eu também procurado pela Ditadura, vime obrigado a correr
mundo. Escondido no Rio de Janeiro, pude saber notícias de
EMMANUEL: ele passara a ser um dos principais dirigentes do Partido
Comunista Revolucionário (PCR). Durante esse período, nunca cheguei
a me encontrar com ele.
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De volta à penitenciária (Colônia Penal "João Chaves") em Natal RN,
ainda completamente massacrado pelas torturas sofridas no DOI
CODI, em Recife PE, eu sabia, apesar de tudo, que EMMANUEL
BEZERRA fora assassinado, junto com Manoel Lisboa.
A informação, obtida nos porões do DOI CODI, era estarrecedora:
EMMANUEL BEZERRA havia sido poucos dias antes da minha chegada
àquele organismo de terror submetido às mais torpes formas de
violência contra o ser humano. Todas elas comandadas, segundo a
informação pelo então Coronel Cúrcio Neto, codinome Doutro
Fernando.
Alguns detalhes macabros: EMMANUEL BEZERRA, enfrentando o
sadismo dos seus algozes, assumiu uma postura da mais alta
dignidade: sabendo de tudo (ou quase tudo), não disse nada, fazendo
relembrar a memorável figura de Jean Moulin, herói da Resistência
Francesa, conforme André Malraux, em seu livro documento ‘Anti
Memórias".
Ensandecidos, os torturadores (teria sido, segundo me
disseram, o próprio "Doutro Fernando"), cortaram a pele de
EMMANUEL à base de tesoura. Sem qualquer assistência ou
acompanhamento médico, sobreveio a gangrena e,
posteriormente, o "tiro de misericórdia" desfechado pelo
Coronel Cúrcio Neto.
O que faço, agora, é repassar o que me foi contado dentro do "círculo
de ferro" do DOI CODI, por fonte (preso político) que, não me parece,
tenha estado sob qualquer suspeita da esquerda revolucionária.
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O fato: o que restou de EMMANUEL foi localizado em cemitério
clandestino situado a quase 4 mil kms de Recife PE. Em princípio me
causou, no mínimo, estranheza. "Alguém terá mentido?" A reflexão foi
necessária e responsável para o que, hoje, me parece óbvio, em
termos de conclusão: EMMANUEL era dirigente de uma Organização
com profundas raízes (políticos, sociais e ideológicas) Nordestinas.
O grande aparato repressor não poderia facilitar e atuou de forma
profissional: transladase o corpo para uma região, literal e
geograficamente distante e distinta (em termos de valores), e terseá
eliminado ou embaralhado pistas. Uma questão de segurança, de
acordo com a ótica da "comunidade de informação e repressão" então
vigente. Infra estrutura eles sempre tiveram para atingir os objetivos
desejados. Até hoje.
De qualquer maneira, o que sabemos (e sentimos) é que EMMANUEL
BEZERRA foi assassinado brutalmente por um SISTEMA cruel e
desumano.
EMMANUEL BEZERRA morreu como um paladino e paradigma da
liberdade do povo brasileiro. Por isso e para revolta embutida pelos
seus assassinos ele permanece vivo.
3.5. A MORTE DE DAVID CAPRISTANO
O Dirigente do Partido Comunista Brasileiro – PCB David Capistrano da
Costa (19131974) sempre foi atuante na história política de seu País.
Por ter participado do Levante de 1935, perdeu o posto de sargento da
Aeronáutica. Além da expulsão das Forças Armadas em decorrência do
supracitado episódio, foi condenado pelo Estado Novo a nada menos
que 19 (dezenove) anos de prisão.
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Mesmo diante de sua injusta condenação, David não esmaeceu.
Participou da Guerra Civil Espanhola durante a ocupação nazista e
acabou sendo detido pelos alemães em um campo de concentração,
mas conseguiu ser libertado e retornou ao solo brasileiro.
De volta ao território nacional, foi contemplado com o benefício da
anistia em 1945, e dois anos depois ganhou a eleição para Deputado
Estadual em Pernambuco.
No dia 31 de março de 1964, David Capistrano teve um encontro com
Miguel Arraes, objetivando conseguir armas para resistir ao golpe
militar. Segundo Miguel Arraes, em depoimento a respeito:
"David, que tinha participado de outras lutas, achava
que uma resistência armada devia se dar. Eu fiz ver
a ele que tínhamos de medir as coisas de maneira
mais geral, e que nenhuma dessas possibilidades
poderia ser descartada, mas não poderíamos agir
sem uma coordenação qualquer fora do Estado. Eu
tinha sido encarregado por Jango de fazer um
balanço rápido da situação dos outros Estados, para
uma contraposição ao que estava ocorrendo no Sul.
Somente três governadores apoiavam o Governo:
eu, Seixas Dória e Bagder Silveira. Também não
tínhamos preparação, numa situação em que forças
federais e estaduais não era solidárias ao Governo.
Algumas medidas haviam sido tomadas, mas havia
condicionamento para um tipo de ação. Tínhamos
pouca gente na polícia. E o Palácio do Governo era
indefensável, pois só era apto para batalhas do
século XVII. Para resistir, tínhamos que sair. E para
sair, tínhamos que declarar, e já sair numa posição
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de força. Falei com Jango, entre o dia 31 de março e
o 1o de abril, e vi que ele não resistiria. Desde a
crise da legalidade, Jango tinha optado por soluções
negociadas.” 8
À época, David Capristano também atuava na política pernambucana
dirigindo os jornais "A Hora" e "Folha do Povo".
No dia do golpe militar, David escondeuse em uma mata próxima,
consoante explicou a Miguel Arraes algum tempo depois, quando do
exílio. Conseguiu, pois, livrarse da prisão. A mesma sorte, contudo,
não tiveram sua esposa, Maria Augusta, e seu filho mais velho, David
Capistrano da Costa Filho, que ficaram presos durante alguns meses,
negando quaisquer acusações.
Em 1971, o PCB ordenou a ida de David Capristano à Tchecoslováquia,
a fim de protegêlo da repressão ditatorial. Lá, redigia, junto com
outros indivíduos, a chamada Revista Internacional. Um ano depois, em
1972, David se encontraria novamente com Miguel Arraes, que saiu de
seu exílio, na Argélia, para rever o dirigente comunista na
Tchecoslováquia. No tocante a esse encontro, esclareceu
posteriormente Miguel Arraes:
"Notei que David ficava calado, só ouvindo, e pelo
que eu conhecia dele, deduzi que estava contrariado,
discordando. Depois que terminaram as
conversações, saí com David, que foi me mostrar a
cidade de Praga. Ele me disse que discordava das
posições colocadas por Giocondo. Não aceitava o tipo
de contemporização que estava sendo empreendida.
8
MELO, Marcelo Mário de. Ditadura militar. Disponível em:
<http://www.alepe.pe.gov.br/sistemas/perfil/parlamentares/DavidCapistrano/05.html
> Acesso em: 19 de abril de 2012.
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Achava que as condições internacionais, a exemplo
da luta no Vietnam, mostravam que não haveria
recuo das forças conservadoras no mundo. Também
não achava que se deveria precipitar a luta de
qualquer jeito, mas discutir para preparar uma
resistência mais decidida do que a que era feita
naquela oportunidade. Ele adotava, em grande
medida, as críticas de Marighela, embora discordasse
das soluções propostas por ele. Considerava
Marighela precipitado." 9
Em 1974, David Capistrano avisou à família que decidira enfim retornar
ao Brasil. E de fato o fez. Da Tchecoslováquia, chegou à cidade
uruguaia de Paso de Los Libres, fronteira com Uruguaiana, no Rio
Grande do Sul, onde havia sido montado um esquema da travessia
junto a outros militantes do PCB.
Houve dificuldades em passar David para o lado brasileiro, devido à sua
volumosa bagagem, com catorze quilos somente de livros. Alguns dias
depois, chegou a Uruguaiana um enviado do PCB, José Roman, que
transportaria David Capistrano a São Paulo. Partiram no dia 15 de
março de 1973 e nunca mais se soube a seu respeito de ambos,
provocando uma onda de desespero nos familiares respectivos.
Após o desaparecimento de David, foram continuamente
desaparecendo também outros dirigentes do PCB. Devido a esses
misteriosos desaparecimentos, formouse o Grupo de Familiares de
Presos Políticos, que buscava o apoio da sociedade civil, da OAB e de
outros órgãos que pudessem contribuir para o esclarecimento dos
fatos, mas sem muito êxito.
9
MELO, Marcelo Mário de. Exílio e retorno. Disponível em:
<http://www.alepe.pe.gov.br/sistemas/perfil/parlamentares/DavidCapistrano/06.html
> Acesso em: 19 de abril de 2012.
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