1. Do ativismo tático às práticas da gambiarra
Conheci Ricardo Rosas, em 2002, na primeira reunião do Projeto Mídia Tática
Brasil (MTB), num pequeno apartamento do Edifício Copan, no centro de São Paulo. Até
então, o MTB era um zum-zum-zum na lista do Projeto Metá:Fora. Graças à organização
de Giseli Vasconcelos, Tatiana Wells e Ricardo, as conversas estavam se tornando uma
realidade.
Muitos coletivos foram convidados para a realização do MTB que tratava de
contracultura, ativismo, cultura cibernética e Internet. A mídia tática surgia não só para
subverter a mídia tradicional negando-a, mas para fazer uma recombinação da linguagem
que essa mídia impunha.
O projeto Rizoma.net foi um dos marcos do trabalho de Rosas que, sem dúvida,
fez alavancar a mídia tática no Brasil, disponibilizando um acervo de artigos sobre
ativismo, cibercultura e intervenção urbana. Esse site, do qual Rosas era o editor,
buscava reformular conceitos, dar nova luz a palavras que de tão usadas acabam por
perder muito de seu sentido original. Para ele, dizer “esquizofonia” em vez de “música”
não era uma simples intenção poética, porque a poesia não poderia de maneira alguma
estar excluída. Segundo Rosas, o objetivo era muito mais “engendrar novos ângulos
sobre as coisas tratadas do que se reduzir a uma definição meramente didática. Daí
igualmente a variedade caleidoscópica dos textos tratando de um mesmo assunto nas
seções/rizomas. Não se reduzir a uma só visão, virar os ângulos de observação, descobrir
novas percepções. Fazer pensar”.1
Mas além de fazer pensar, o Rizoma.net teve a ousadia de estabelecer uma
relação entre as ideias que eram catapultadas pelo ativismo da gringolândia com as
recombinações tupiniquins. Seriam novas percepções para um novo tempo? Talvez.
Nessa mesma época, muitos movimentos afloraram, sendo o do software livre a ponta do
iceberg, cuja revolução estava na base da pirâmide de gelo. Esse momento é muito bem
explicado pela ética hacker. A conversação da rede é muito mais do que apenas
discussão e bate-papo. A colaboração incrementa de fato as inteligências latentes. A
informação passou a ser livre. As conversas da contracultura que aconteciam nas vias
1Disponível em http://issuu.com/rizoma.net/docs/rizoma
2. paralelas da academia começaram a flertar com as práticas da Internet.
Também em 2002 acontece a explosão dos blogs. O Rizoma.net, assim como
tantos outros sites que aglutinavam conteúdos, dividiu com milhares de blogs as
conversas da contracultura. Os blogs tornaram-se um fenômeno por trazer a reboque uma
verdadeira horda trocando informações e links. Um blog sozinho não é nada, mas blogs e
projetos pessoais linkados entre si formam uma rede caótica. Um reflexo da diversidade e
da multiplicidade de vozes. Parâmetros difundidos no velho sistema não cabem nessa
nova equação. Rosas acompanhava essas transformações e o Rizoma.net permanece
como um marco histórico desses novos tempos.
Somos todos hackers, teoricamente open source e militantes de um processo
enredado. Buscamos atalhos para remixar o futuro. Somos piratas por baixar música no
Torrents. Ou será que grande parte da população on-line pode ser considerada fora da
lei? Questionar a indústria fonográfica faz parte de um agenciamento importante. A ética
hacker explica o software livre. Se não explica a necessidade que as pessoas têm de
trocar músicas, explica, no entanto, a ocupação do MySpace como espaço onde as
bandas mostram seu trabalho. É o fim da mediação da estrutura de distribuição de
músicas; uma sequela da revolução não televisionada em que criamos uma tecnologia
livre, ocupando o espaço das informações. Assim, o conhecimento também tende a ser
livre, porque se descola e se abre multiplicando as possibilidades para novas criações.
Em Truquenologia, Rosas analisa o contexto da sociedade em que uma tecnologia
se desenvolve ou se reconfigura, o que pode ser absolutamente determinante no modo
como ali se estabelecerá. Ele não pretende formular uma teoria unificada dessa criação
cultural espontânea - a gambiarra tecnológica (seja por parte das camadas populares,
seja por parte de artistas e ativistas) - mas fornece elementos para que tal teoria possa
ser pesquisada e aprofundada. Quem sabe, as práticas de gambiarra já não ganharam
status de ciência?
Os dicionários nos mostram que gambiarra é um substantivo feminino que se refere
a puxar um fio comprido para fazer uma extensão elétrica com uma lâmpada na
extremidade ou um tipo de serviço elétrico mal feito para se obter energia elétrica de
maneira ilegal. No linguajar popular, gambiarra remete ao famoso “jeitinho brasileiro” do
improviso como uma arte de fazer as coisas. A reexistência do “faça você mesmo”, sem
3. todo o ferramental, sem os argumentos apropriados, mas com o conhecimento acumulado
pelas gerações. Fazer para modificar o mundo. Um contraponto ao empreendedor
selvagem. Fazer para transformar aquilo que era inútil num movimento ascendente de
criatividade.
A esse respeito, há uma frase bem sugestiva do escritor e roteirista Willian Gibson:
“a rua encontra seus próprios usos para as coisas". A gambiarra habita o paradoxo que
nos apresenta. Por um lado uma sociedade da escassez, onde o conhecimento é próprio
e, o produto, é propriedade. Por outro, uma sociedade da abundância, onde o
conhecimento quer ser livre (uma metáfora que não diz da vontade do conhecimento e
sim, da necessidade das pessoas compartilharem o conhecimento). Pensar em rede é
compreender o entre. O meio do caminho. O copo está meio cheio ou meio vazio? É o
otimismo de encontrar uma ferramenta que ajude naquilo que você mesmo pode fazer.
Ou “ter novas visões sobre coisas antigas” (ou o que seja) e “não esconder certo
anseio, meio utópico até, de mudar as coisas, as regras do jogo”, disse certa vez Rosas,
“Impossível? Vai saber...” ou, como os situacionistas disseram: "As futuras revoluções
deverão inventar elas mesmas suas próprias linguagens".
Hernani Dimantas
julho 2010