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- Capítulo X –


    A VISITA DOS OFICIAIS E AS CALCINHAS NAS PRAÇAS


          No início da década de 1950, a prefeitura era
governada por Sebastião Gomes de Andrade. Um de seus
filhos, José Mário de Andrade, acadêmico de direito,
movimentava muito a vida social da cidade. Fundou, na
cidade, num Centro Social que, além de atividades
esportivas e culturais, oferecia cursos de corte e costura,
bordado e arte-culinária.
           José Mário, quando estava matriculado no Centro
de Preparação de Oficiais da Reserva – CPOR de Recife,
convidou sua turma do quartel para uma visita a Amaraji. Foi
um domingo de muita movimentação na pequena cidade.
Os jovens passearam pela cidade e interagiram com a
juventude local, de modo especial, com as moçoilas
solteiras, que nunca tinham deparado com tantos mancebos
bem apessoados de uma só vez. O público feminino foi ao
delírio.
        Dona Maria Alice, a esposa do prefeito e mãe do
jovem Zé Mário, reuniu um grupo de amigas para ajuda-la a
preparar em sua residência, um lauto banquete para
recepcionar os jovens oficiais.
À tarde, houve uma partida de futebol entre os visitantes e o
time da cidade que tinha o reforço de dois jogadores vindos
da usina Bonfim. O jogo foi muito animado e Amaraji venceu
os oficiais por 2x1. O primeiro gol foi marcado com um chute
do meio de campo por “Gogó Inglês”, jogador da usina
Bonfim e o segundo, por outro jogador. Gol de bicicleta. A
torcida foi ao delírio.
         Os oficiais do CPOR namoraram muitas moçoilas da
cidade. Só se via os casais passeando rua acima rua abaixo.
Parecia até que cupido havia se abancado sobre o pavilhão
e atirado flechas em todas as direções.
         O ápice da festa aconteceu a partir das 20 horas
na Rádio Educadora, local onde eram realizados os grandes
bailes. A orquestra banda acadêmica da Usina Pedroza foi
contratada para a tocada daquela noite.
        Em torno de sete e trinta da noite, começaram a
chegar as jovens da cidade num verdadeiro desfile de
modelos copiados dos, de penteados tirados da revista
manequim e exalando diferentes fragrâncias pelo ar: sorrisos
de granada, marajoara, royal briar, etc. Algumas até
ostentavam alguma joia emprestada da mãe.
        Os jovens oficiais, aos poucos iam saindo do hotel e
da casa do prefeito e se dirigindo ao local do baile.
Aline e suas amigas, de domingueiras novas, já passeavam
pelo pavilhão e pela frente da rádio educadora, todas
ansiosas pelo início do baile. Nenhum delas ia poder
participar da festa, pois o juiz da cidade proibia a entrada de
menores de dezoito anos em bailes. O máximo que
poderiam fazer ficar no “sereno”, ou seja, dar uma olhadinha
pelas janelas do clube, local que geralmente ficava cheios
de olheiros.
Ás vinte horas, o maestro levantou a batuta e a Jazz Band
Acadêmica tocou os acordes iniciais e enveredou pelos
ritmos caribenhos, muito em voga na época. A primeira
música foi o mambo nº 5. A animação foi se implantando no
salão e os visitantes da capital, todos muito à vontade,
começaram a convidar as moças para a primeira dança.
Algumas delas, já veteranas dos bailes davam verdadeiro
show. Alguns cavaleiros, bastante avançados para a época,
enlaçavam as damas pela cintura fina, rostos colados,
rodopiavam eroticamente pelo salão. Algumas damas
“davam corte” nos cavaleiros, alegando que não sabiam
dançar ou que o pai não deixava e passaram a noite
tomando chá de parede, uma vez que não havia cadeiras
para todos. Havia mais cavaleiros que damas e as que
dançavam bem eram disputadas pelos dançarinos.
         Do lado de fora da rádio educadora, a turma do
sereno, boquiaberta, olhos arregalados, mal tinha palavras
para conter o espanto. Nunca tinham visto uma dança tão
indecente daquelas. Dona Zefinha, a parteira, tinha saído do
velório de seu Gonçalo Bastos, resolveu subir os degraus do
clube para dar uma olhada, quase desmaiou com o que viu.
         - Santo Cristo de Ipojuca, meu Padim Ciço do
Juazêro, é o fim do mundo. Na rua do Fuá, as mulé da vida
brinca com mai decença. E a puliça num vê isso não, é?
Também, festa de rico, né! E saiu rápida se persignando.
        Seu Tota, o dono da banca de bicho, estava de
boca aberta de tanto espanto e, dirigindo-se a seu Amaro
do Bar do Beco, falou indignado:
         - Os pais dessas moças não devem ter vergonha
nem brio. Como é que deixam suas filhas vir
desacompanhadas para uma zona dessas. Nunca que ia
deixar as minhas aparecerem por aqui. Olha aquela de
vestido azul e “degote” grande. O macho chega imprensar
ela na parede. E o delegado tá ali conversando e nem liga.
Mas é uma falta de vergonha mesmo.
         Dona Benedita da Conceição vinha descendo da
igreja com os dois filhos pequenos. Subiu os degraus da rádio
e quando avistou a dança, voltou-se e gritou para os filhos:
- Fiquem aí, meninos, vocês são inocentes, não
podem ver uma derrota dessas! Minha Nossa Senhora! E
dando meia volta, desceu os degraus apressada.
         Já era quase onze da noite, quando alguns pares
começaram a sair discretamente do salão. A turma do
sereno nem prestava atenção. Na rua já meio deserta, casais
abraçadinhos passeavam, buscando sempre os lugares
menos iluminados.
         Aos poucos o salão de baile foi ficando mais vazio e
o pessoal do sereno foi abandonando seus postos. Afinal o
dia seguinte era dia de trabalho. Quase duas da manhã, a
banda tocou os últimos acordes e o baile terminou. Os que
ainda estavam no salão aplaudiram e pediram bis, mas era
mesmo o final da festa.
        Os casais de namorados passearam e aproveitaram
bem a brisa da noite. Muitas jovens foram levadas de volta
para suas casas pela madrugada.
         No dia seguinte às oito da manhã, os jovens
estavam reunidos no pavilhão para iniciar o retorno pra
Recife. Foram muitas as despedidas, as promessas de amor,
de troca de correspondência ou de um retorno breve a
Amaraji. As meninas choravam e logo eles foram se
acomodando nos automóveis e a partida começou.
        Nem bem o último carro havia partido, um vigia
noturno da cidade chegou correndo com uma vareta na
mão e uma peça de algodão pendurada.
          - Mas o que é isso, seu Olegário, perguntou o
jardineiro que começava a regar as plantas da praça.
        - Não tá vendo não? É uma calça de mulher.
- Oxente, homem de Deus, mas o que é que o
senhor tá fazendo com essa peça nesse pedaço de
madeira?
        - Eu encontrei pendurada num pé de pau lá da
Praça Sertaneja. Ainda tem umas duas lá.
         - E a multidão começou a olhar pela Praça do
Pavilhão, quando alguém gritou:
        - Tem mais duas ali naquela árvore do lado da loja
de Alaíde. E foi um corre-corre. A notícia logo se espalhou. As
moças que estavam no pavilhão desapareceram.
         No grupo escolar, as oito em ponto, a sineta tocou
e os alunos, em polvorosa com a novidade, entraram em
suas salas. Ninguém se concentrava e o cochichado era
geral.
         - Mas que saliência é essa de vocês? Perguntou a
professora Rita. Mando já chamar Nely para ela dar um jeito
nisso.
         Sabe o que é, Dona Rita, acharam umas caçola de
mulé penduradas nas plantas da praça. Não é mentira não,
eu vi quando o vigia chegou com uma delas, explicou Tião.
        A essa altura, a professora Ria, bastante corada e
constrangida, retirou-se da classe e foi chamar a diretora,
dona Nely Gomes de Sá. Esta chegou munida de uma
sombrinha e uma palmatória e, aos gritos, foi especulando;
         - Quem é o moleque sem vergonha que está
conversando estas pornografias na sala? Apareça logo, caso
contrário, a classe toda vai ficar de castigo até às quatro da
tarde.
Nesse momento, dona Maria do Carmo entrou
esbaforida na classe e falou em voz baixa ao ouvido da
diretora, que saiu sem terminar de anunciar a punição.
       Acontece que em todas as turmas estava correndo
a mesma notícia e os alunos estavam todos muito agitados.
        Lá no fundo da classe, Biuzinha comentava:
         - Ainda bem que eu não faço parte da sociedade
chique, senão já estavam dizendo que a calça era minha.
Deve ser de uma dessas aí que estavam no baile. Há! Há! Há!
vejo gente santinha. Quando eu, brincando, falei que ia fugir
com o palhaço do circo, todo mundo me criticou. Enquanto
fazia seus comentários olhava, desafiadoramente, para as
outras meninas da turma. Não é de nenhuma de vocês,
não?
        E Aline, muito exaltada, gritou lá da frente:
         - Olha aqui, sua atrevida, nós não somos de “sua
laia” não. Nós somos de família e a gente nem tem idade
para entrar em bailes. Se você não parar com essas
insinuações, vou falar com mamãe pra prestar queixa de
você ao tenente Sabino na delegacia.
       - Vote, precisa isso tudo, menina, eu só tô
comentando.
        Dona Rita voltou para a classe e, com dificuldade,
conseguiu prosseguir a aula.
         A diretora, dona Nely, ainda entrou de classe em
classe para passar uma tarefa extra que deveria ser entregue
no dia seguinte. Todos, sem exceção, deveriam escrever
cem vezes a frase: “Nunca mais trarei notícias pornográficas
ou de boatos que correm pelas ruas da cidade para dentro
de minha sala de aula”.
- Os justos pagarão pelos pecadores, comentou a
diretora enquanto escrevia a frase do castigo no quadro. E ai
daqueles que não trouxerem a tarefa.
         Na cidade, o restante do dia e durante a semana o
assunto não foi outro. No bilhar, na padaria, nas vendas e até
na porta da igreja, o assunto era as calças encontradas. De
quem seriam as peças?
         Algumas das namoradas deixadas pelos oficiais na
cidade, ainda escreveram cartas para os amados, mas a
correspondência voltou. O endereço estava incorreto.
Outras ficaram, um longo tempo, esperando pela visita do
amado ou por alguma notícia, mas nunca houve nenhuma
comunicação. Com o passar do tempo, os namoros e
promessas daquela noite foram esquecidos e as calcinhas
também.
- Capítulo 9 -


           VISITA DA INSPETORA ESCOLAR E
     A COMEMORAÇÃO DO DIA SETE DE SETEMBRO


       E a pequena Aline já não tão mini ia chegando
aos doze anos, participando ativamente das atividades e
eventos da província: igreja, escola, pastoril, shows,
sketches, pequenas peças teatrais, etc.
        A essa altura, Maria Andrade já havia
confeccionado um minúsculo corpete para a pré-
adolescente. E ela muito satisfeita, ficava puxando e
ajeitando, com frequência, as duas alças daquela peça
íntima feminina que mais tarde evoluiu para “soutien”.
       A mãe das duas manas era funcionária do Grupo
Escolar Dom Luiz de Brito, única escola pública da
cidade, e lá estudavam também as duas meninas. O
prédio, com dois pavimentos, fora adaptado de uma
antiga cadeia pública e tomara o nome do primeiro
arcebispo a visitar a cidade, Dom Luiz Raimundo da Silva
Brito.
       Os dois maiores acontecimentos anuais da vida
escolar eram a visita da inspetora da Secretaria de
Educação, dona Hilda Brandão, e o desfile do dia da
Independência do Brasil.
       A recepção para dona Hilda Brandão era
preparada com bastante antecedência. Aprendiam-se
trechos de poesias, pequenos discursos, cânticos, etc.
Alunos e professores, vestidos impecavelmente, para
receber e recepcionar a ilustre visitante. As meninas de
blusa branca com o GEDLB bordado no bolso da blusa,
saias de pregas azuis encobrindo, decentemente, os
joelhos. Os meninos com camisas no mesmo estilo das
blusas e calças curtas cobrindo os joelhos. Sapatos pretos
e meias soquetes brancas para todos. No ar odores das
mais variadas fragrâncias: Suspiros de Granada,
Marajoara, Promessa ou Royal Briar, e muitas cabeças
engorduradas de brilhantina Glostora. Algumas garotas
mais crescida,s com as bochechas ligeiramente
embranquecidas de po-de-arroz e uma sombrinha de
rouge naná ou carmim. Havia até quem usasse um
trancelim de ouro da mamãe comprado, a prazo, a
dona Alice do Ouro.
       A festa era no salão grande do Grupo. Prédio
limpo, cadeiras bem enfileiradas e aquela mesa grande
com uma toalha verde de feltro e uma franja de
pompons amarelos. No centro da mesa um arranjo floral
bem caprichado.
       Depois que dona Nely fazia a saudação inicial e
apresentava a inspetora, começava a sessão solene.
Aline, claro, era uma das convocadas para falar em
nome dos alunos. E lá ia a baixinha para frente da
platéia. Farda impecável, as madeixas galegas presas
por uma ligeira, faces ruborizadas e cabeça bem
erguida. Subia num banquinho apropriado para os
oradores mais baixos e começava a oração:
        - Ilma. Sra. professora Hilda Brandão, mui digna
Inspetora da Secretaria de Educação do Estado de
Pernambuco; Ilma. Sra. Nely Gomes de Sá, mui digna
diretora do Grupo Escolar Dom Luiz de Brito; Ilmas. Sras.
Professoras do corpo docente do Grupo....... etc.
- “Que criancinha interessante”, comentava a
inspetora.
       - De quem ela é filha, Nely?
        - “De Dapaz, nossa funcionária”, respondia a
diretora.
       - Quantos anos ela tem?
       - Já completou doze.
       - Mas ele é tão pequerrucha.
        - “Ora, Hilda, nos menores vidros estão os melhores
perfumes”, respondia com filosofismo a sábia dona Nely
por trás de suas lentes de telescópio.
        E a reunião prosseguia. O calor aumentava, os
alunos começavam a ficar impacientes. Dona Maria do
Carmo a dar psius e psius. Dona Nely ajeitava os
bendegós dos cabelos e passava rabos de olho para os
alunos. Dona Hilda se abanava com o envelope das
provas. Lá nos fundos Amaro Cavalcante fazia uma
careta e puxava de leve os longos cachos de Leleu.
Dona Nely viu e o encarou. Num das filas laterais, Airton
Brito dava um cochilo. De repente, lá nos fundos da sala,
um meio corre-core. Uma aluna que viera do sítio estava
tendo uma oria. Dona Dapaz e Maria do Carmo levaram-
na para a diretoria. Fizeram com ela cheirasse uma
cédula de um cruzeiro e um pouco de álcool, além de
um capucho de algodão queimado e ela foi se
reanimando. A menina que se chamava Ernestina
morava no engenho Sete Ranchos. Havia saído de casa
muito cedo e não tomara café. Depois de um copo de
leite morno ela voltou para a solenidade.
      Aline retornou ainda por duas vezes para
banquinho a fim de declamar uma poesia e apresentar
um sketch com Sônia Brito. Finalmente às 12:45 todos
ficaram de pé para o hino nacional e a reunião foi
encerrada.
        Organizados em fila, os alunos saíam para lanchar
leite com toddy e biscoitos de maizena.
        Passada a emoção da visita de Dona Hilda
Brandão, a inspetora escolar, chegou a Semana da
Pátria. Os ensaios eram realizados no campo de futebol.
Seu Luís Soldado dividia e organizava os pelotões e, com
o auxílio de um apito ensinava o “ordinário, marche”,
“alto”, “descansar”, “meia volta, volver”, “fora de forma”,
etc. Era uma bagunça organizada. Os menores dos
últimos pelotões a conversar e brincar, as professoras
corriam de um lado para outro tentando acalmar a
garotada e dona Nely, como sempre, passando olhares
severos para os mais brincalhões.
        À frente do grupo a “meia banda marcial”
composta de um surdo e um caixa, além de uma
corneta. Depois de dar várias voltas pelo campo, lá pelas
onze e meia a gente escutava o “atenção, alto” e, por
fim, o “fora de forma”. A gritaria era grande, os alunos
saindo em debandada em direção ao grupo para pegar
o material escolar e voltar pra casa. O cansaço e a fome
estavam matando a todos. Dona Nely, já rouca de tanto
gritar e tentando botar ordem, desistiu e exclamou:
         - Deixa estar, amanhã eu acerto as contas com
vocês!
       Chega afinal o dia sete. Às seis e meia, já havia
muitos alunos postados na porta da escola. Foram
chegando os professores, o restante dos estudantes,
todos impecavelmente vestidos, e logo foram sendo
organizados os pelotões. A ordem era a seguinte: a meia
banda à frente, a bandeira do Brasil com duas alunas ao
lado e um pelotão de meninos maiores. Depois a
bandeira de Pernambuco, com dois meninos ao lado e
um pelotão das meninas maiores. Depois ia alternando
pelotões de meninos e meninas de acordo com o
tamanho. Sete horas em ponto e todos a postos. Seu Luiz
Soldado ainda correndo de um lado para outro, dava as
últimas explicações sobre os comandos.
      - Lá vem Dona Nely, comentou um aluno.
       E a diretora que morava próximo à escola parou
em frente aos alunos já formados e comentou irritada:
      - Mas o que é isto ao lado do lábaro nacional?
São dois espantalhos? Quem mandou vocês se colocares
aí?
      Biuzinha e Sebastiana, uma aluna que morava no
engenho Guarani, haviam se colocado ao lado da
bandeira do Brasil que era carregada por Rominho Ferraz.
      - Mas dona Nely, nós vai ser guarda-bandeira.
Respondeu Biuzinha. A senhora todo ano só bota as rica.
       - Deixe de ser atrevida, moleca, onde estão os
seus sapatos? De alpercatas, meias brancas e a blusa
toda amassada desse jeito no desfile? Saiam daí as duas
e vão para o final do último pelotão das meninas
grandes. Devia deixar você presa na diretoria, sua
desaforada! Tem muita graça, organizar um desfile bonito
como esse e colocar na frente, ao lado da bandeira
nacional, dois papa-figos!
      - Ô, Nieta, traga Aline e Neném de seu Belmiro
para serem as guarda-bandeiras. Não foi isso que eu
combinei?
      Após um prolongado apito de seu Luiz, a corneta
dá o comando e o desfile, saindo da frente do grupo
escolar, começa a marchar. Quando chegaram em
frente à prefeitura já se encontravam perfiladas lá as
escolas municipais e o Externato Cônego Aníbal Santos
da professora Lourdes Barbosa. O prefeito e os
vereadores, o juiz da comarca e o vigário da paróquia,
além de outras autoridades, todos posicionados no
interior do paço municipal. Após a abertura da
solenidade pelo prefeito, dona Nely assumiu a
apresentação da “hora de arte”. Discursos, cânticos,
poesias em homenagem à pátria, etc. Aline, segurando a
ponta da bandeira, dando piscadelas constantes, olhava
e gesticulava impaciente para a professora Dasdores
Teixeira. Esta, aproximou-se lentamente e perguntou
baixinho:
      - O que é, Aline, está sentindo alguma coisa?
      - O que? Nada disso, vai terminar a cerimônia e
eu não declamo minha poesia. Fui cortada da cerimônia,
foi?
       - Ai meu Deus, vou olhar no programa. E Dasdores
aproximando-se de dona Nely, falou alguma coisa em
seu ouvido. A diretora olhou o papel da programação e
reclamou alto:
       - É verdade, esqueceram de colocar o nome
dela, no próximo ano vejam se programam a solenidade
com mais competência. E tomando o microfone, falou:
      - Senhores e senhoras, por um imperdoável lapso
de nossos professores não foi colocado no programa o
nome de uma de nossas estudantes que deveria se
apresentar nesta solenidade. Quero pedir desculpar e
aproveitar para chamar a aluna Aline que vai apresentar
uma poesia de Olavo Bilac.
- E lá se foi Aline para a porta da prefeitura fazer
sua performance.
      - Vou recitar A Pátria, de Olavo Bilac, exclamou a
menina em voz alta. E iniciou:
       Ama, com fé e orgulho, a terra em que nasceste!
       Criança! não verás nenhum país como este!
       Olha que céu! que mar! que rios! que floresta!
       A Natureza, aqui, perpetuamente em festa,
       É um seio de mãe a transbordar carinhos.
       Vê que vida há no chão! vê que vida há nos . . .

       Terminada a apresentação, desceu das escadas
sob os aplausos dos presente e, rindo e piscando de
alegria, retomou o seu lugar ao lado da bandeira.
     No final do pelotão         das   meninas,   Biuzinha
comentava enraivecida:
       - Tem gente que nasce com uma estrela na testa,
mas essa daí parece que nasceu com o céu todo. Nunca
vi uma pessoa tão c . . . . . de sorte. Ela tem que tá em
tudo nessa escola, na igreja. Vote!
       - Ora, Biuzinha, comentou Nevinha, você nunca
vai ser parecida com ela. Não estuda, não aprende
nada, só pensa em fugir com o palhaço do circo e, no
dia que nem hoje, se apresenta num desmantelo desses.
Que é que você pensa da vida’’?
     - Não me abuse, Nevinha, dou-lhe já uma
mãozada pra você deixar de ser intrometida.
       Finda a solenidade, o desfile continuou pelas
praças e ruas da cidade. O tempo estava meio nublado
e quando a escola passava pela frente do mercado
desabou aquele aguaceiro. Foi um corre-corre. Alunos se
abrigando na igreja, ou se encostando nas paredes do
mercado público. Passada a chuva, seu Luiz iniciou o
“apitaço” para reunir novamente os alunos. Ninguém
sabia mais o lugar coreto. Dona Nely mandou que
fizessem a volta pela praça e retornassem ao grupo de
qualquer maneira. Os alunos não marchavam estavam
quase trotando de ladeira abaixo. Por fim chegaram ao
prédio da escola. Foi servida uma merenda especial para
todos. Bolos, bolachas e guaraná e gasosa enviadas pelo
prefeito.
       Dona Rita, uma das professoras, reclamava:
        - Olha o estado em que ficou minha saia de linho.
Toda amarrotada e molhada. Quando tirou um
espelhinho da bolsa e se olhou, ficou horrorizada. Meu
Deus, o baton e o rouge borraram meu rosto todo. E
tratou logo de limpar um lenço.
       - E meu vestido de seda, exclamou a professora
Bernadete, todo sujo de lama e molhado. Vai dar o maior
trabalha pra dona Santa lavar e engomar.
       - Dona Nely de nada reclamava, mas estava toda
molhada da chuva e os “bendengós” de seu penteados
arriados na testa.
       - Lá num canto do salão, a aluna Ceça dos Santos
estava em prantos. Na correria, perdera o cordão de
ouro que a mãe havia lhe emprestado. Dona Dasdores
aproximou-se e falou:
       - Não se preocupe Ceça, a gente coloca um
anúncio na Rádio Educadora. Quem achar entrega em
sua casa.
       Mas a menina não se conformava. Afinal a mãe
ainda estava pagando as prestações do cordão de ouro.
- Dona Nely bastante estressada, chamou a
zeladora Maria do Carmo e disse:
       - Avise a Severina Biuzinha que no próximo dia de
aula ela só entra no grupo, acompanhada da mãe.
       E assim terminou o desfile do dia sete. Os alunos
foram deixando a escola e a diretora ainda ficou dando
as ordens sobre a limpeza do prédio, sem falar que ainda
reuniu os professores para reclamar de detalhes da
organização do desfile e da hora de arte.
- Capítulo 8 -


         O ANIVERSÁRIO DO FILHO DO COLETOR


       Naquele domingo as manas Aline e Ana Maria
iriam a uma festa de aniversário de Carlos Alberto, filho
de seu Lídio Leal do Barros, o coletor federal na cidade.
Entre outras pessoas da cidade, dona Noêmia, a mãe do
garoto havia convidado seus colegas de classe do grupo
escolar. As duas irmãs e outras amigas convidadas para a
festa estavam bastante animadas, apesar de que o
aniversariante que estudava no D. Luís de Brito não era
muito entrosado com nenhuma delas. Fazia pouco
tempo que o coletor fora transferido para Amaraji.
      Maria Andrade estava costurando uma blusa
nova para Aline e pediu pra que ela fosse ao comércio
comprar alguns aviamentos para a costura.
        - Ô Aline, vá à loja de Geva e peça a Ivete ou
Ivanise que mande um retroz branco, dois metros e meio
de bico e meio metro de galão. Quero aprontar esta
blusa com a manga de coco para você ir ao aniversário
domingo. Se não encontrar lá, passe em Alcides ou João
Barbosa.
        E lá subiu Aline, caminhando lentamente pela rua.
Ela levava consigo um pequeno porta-níquel e estava
disposta a fazer uma verdadeira farra com todas as
guloseimas que tinha vontade de comer. Ia gastar uma
parte do dinheirinho que ganhara de presente de sua
Madrinha Lita. Dessa vez não ia ter ninguém por perto pra
dizer o que engorda ou não engorda e o que faz mal ou
não. Enquanto ia caminhando em direção o comércio,
cantarolava, baixinho, a música do comercial do
“fimatosan”.
      “Fimatosan, quando você crescer,
      Devolve o seu apetite,
      Afastando a bronquite,
      Fimatosan, sabor não tem,
      É o amigo que lhe convém.
      Fim... ma... to... san.

        E a menina passou em dona Toinha, mãe de
Maria José e Santinha, e comprou um pirulito. Antes de
começar a chupá-lo, retirou cuidadosamente o papel de
seda, limpou bem o pirulito e, meio receosa, começou a
dar umas lambidinhas. Mania de limpeza era com ela
mesma. Parou na sorveteria de Deja e lá se foi um picolé
de coco. Antes da esquina do bilhar, parou na vendinha
de seu Eudóxio e comprou uma daquelas broas
chamada de mata-fome. Ah, que delícia...
        Seguindo pelo comércio, a menina já muito
curiosa a respeito do que estava acontecendo pelo
mundo, parou na loja de Zé Mário de Lucy, deu boa
tarde ao casal, e começou a dar uma folheada na
revista O Cruzeiro.
      - Vai levar a revista, Aline? Perguntava Zé Mário.
      - Não, só estou dando uma olhadinha nas noticias
da morte do presidente Getúlio Vargas.
      - Pode olhar à vontade!
      - Mas essa menina é muito viva, não é Lucy?
     - E então, Zé Mário, no mínimo vai ser uma doutora
quando crescer (perdão), quando ficar mais adulta.
E a menina continuava a viagem pela praça
principal da cidade, na época chamada de Barão de
Lucena.
        Na loja de dona Geva foi atendida por Ivete
Victor. Depois de escolher os bicos, especular os preços e
fazer muitas perguntas pediu pra ela embrulhar a
mercadoria. Na volta pra casa, lembrou-se de dar uma
passadinha ainda na farmácia de Dr. Bandeira.
         - Boa tarde, dona Valda, a senhora vai bem?
         - Boa tarde, Aline, vou bem. E a mamãe e Ana
Maria?
      - Todos com saúde, obrigada! A senhora tem
cachete pra dor de cabeça?
      - Tenho sim, vai       levar   instantina,   veramon,
coramina ou melhoral?
       - “Vou levar um envelope de instantina. Sim
também vou levar um vidro de colubiasol para maninha
pincelar a garganta. Bote na conta, tá certo?” Até logo,
dona Valda! Lembranças a Márcio e Márcia”.
         E a menina começou a descer a rua principal.
Depois da esquina do bilhar, ela atravessou a rua e foi
dar uma olhada nos cartazes do cinema. Antes de
atravessar a rua, avistou o vendedor de cavaco japonês
e, é claro, só faltava aquela “iguaria” pra completar sua
farra gastronômica daquela tarde. Comprou logo dois. E
dirigiu-se ao cinema para olhar os cartazes.
      - Eita, exclamou baixinho, A Vida de Santa Maria
Gorete. Dr. Jorge estava reprisando o filme. Vou dizer a
Maninha, ela vai adorar assistir de novo.
Em frente à prefeitura encontrou dona Sabina de
Andrade e as duas trocaram algumas palavras sobre
assuntos sacros. Dona Sabina estava apressada, pois ia
enfeitar o altar do Coração de Jesus. Era a presidente do
Apostolado.
       Mais adiante passou em frente à casa de Carlos
Alberto, o aniversariante do próximo domingo, sentado
no degrau do portão. Doida para puxar conversa com o
garoto especular sobre a festa, perguntou:
      - Você entendeu o assunto do ponto de geografia
que dona Bernadete explicou ontem?
       - Entendi, sim, respondeu o garoto.
       - E a coleção de borboletas de seu pai, tem
muitos tipos novo? Sim, que horas vai começar a festa de
seu aniversário? Vem muita gente de Recife?
      O garoto, porém, não estava a fim de muita
conversa e mal respondia as perguntas.
       Por último, na esquina da praça do velho coreto,
estava seu Corocochô sentado em sua cadeira de rodas
na calçada.
       - Como vai, seu Corocochô? Muitos hóspedes no
hotel? Dona Rita viajou ou está no quarto?
       Perguntas respondidas, a baixinha decidiu retornar
ao solar. Eram quase seis horas, quando ela chegou em
casa com as encomendas.
       Maria Andrade já havia estado na sua casa três
vezes em busca das encomendas e, por último, sentou-se
na cadeira de balanço abanando a saia.
     - Pronto, chegou a menina! Oh, Aline, fosse
comprar as encomendas na loja de Geva ou lá em
Caracituba? Já tava todo mundo preocupado com tua
demora. Essa menina conversa demais Dapaz. Vou indo
senão a blusa não vai ficar pronta na hora.
      Hora da ceia. Mamãe, Aline e Maninha sentadas
à mesa e Mery servindo a refeição.
      - Ô, Mery, coloque o abafador sobre o bule,
senão o café vai ficar frio, reclamou Aline.
      - Que é isso dentro da sopa? perguntou Ana.
      - Claro que       é   verdura   picada,   maninha,
respondeu Aline.
      - Quero não, continuou Ana.
        - Que cavilação é essa, maninha? Você está
muito luxenta, implicou Aline.
      - Vocês duas parem de arengar, reclamou Dapaz.
        - Cuidado, Mery, o abano está pegando fogo,
gritou Aline.
      - E as três correram para o terraço da cozinha
para apagar o pequeno incêndio.
      Agora foi a vez de Aline reclamar do leite.
      - Ô, Mery, quanta nata é essa dentro do leite?
Não sabe que eu odeio nata?”
      Aí Dapaz irritou-se e falou:
       - Vocês duas ai, deixem de galizias! Acabem de
cear e vão para a sala escutar o Programa da Vovozinha
de Alcides Teixeira. Hoje tem sorteio de máquina de
costura.”
No sábado foram à missa e voltaram logo pra
casa. Afinal tinham de preparar as roupas e sapatos para
a festa de aniversário. Era uma expectativa geral. O
presente Dapaz comprara na loja de seu Jorge da
Borboleta. Uma caixa de sabonetes “Dorly”.
       Duas da tarde as pequenas já estavam saindo do
banho e vestindo as roupas novas. E os sapatos? Mery
havia levado para Seu João Engraxate e ela ainda não
trouxera. O nervosismo já estava tomando conta de
todos quando bateram à porta. Era um garoto trazendo
os sapatos impecavelmente polidos. Alívio geral!
       Eu levo o presente, adiantou-se Aline. O nome das
duas está no cartão, comentou Dapaz. E lá se foram as
duas encontras outras colegas que estavam no Pavilhão.
Cada uma que elogiasse mais a roupa da outra. Uma
delas estava com o relógio de pulso da mãe
emprestado. A curiosidade era geral. Ninguém nunca
havia entrado na casa do coletor antes.
        Às quatro em ponto elas dirigiram-se a casa de
Carlos Alberto que ficava logo na esquina da rua. O
dono da casa estava no terraço e veio recebê-las com
muita simpatia.
        - Entrem crianças, fiquem à vontade! Elas logo
procuraram o aniversariante para entregar os presentes.
A mãe de Carlos Alberto levou um grupo delas para o
quarto do menino pra mostrar os presentes e os
brinquedos dele. Nossa, era coisa demais. Ele havia
recebido uma bicicleta, carros de cordas, livros de
estória, meias, perfumes e sabonetes.
        Foram chegando os outros convidados da
cidade, além de alguns parentes que tinham vindo de
Recife. Seu Lídio colecionava borboletas e foi mostrar aos
convidados os quadros cheios delas dispostos pelas
paredes de seu escritório. Os pequenos convidados
ficaram abismados. Que coincidência, “a borboleta”
admirando uma coleção de lepidópteros. E ela foi logo
pra frente do grupo conversar com o coletor. Este
respondia a todas as indagações com calma e
paciência.
       De lá dos fundos da sala, Biuzinha,        bem
desinteressada, comentava em voz baixa:
       - Que besteira, espetar um bocado de borboleta
num quadro! Mas gente rica tem cada patim. Que graça
tem isso? Vou encher as paredes da casa de mãe com
um bocado de mariposa espetada num alfinete.
Mariposa é o que mais tem lá quando nós acende os
acoviteiro.
        Aline olhava pra trás procurando a origem
daquele sussurro. E é claro, avistou logo a colega de
classe, Biuzinha, comandando o mau gosto.
       - Essa daí não tem jeito mesmo, quanto mais
freqüenta a escola, mais fica ignorante! Ela não quer
estudar de forma alguma. Já falou mais de uma vez que
só está aguardando o circo chegar à cidade, pra fugir
com o palhaço. Deixa pra lá, vou fazer a cama dela com
a professora Bernadete na próxima segunda.
       Mas a festa não parava. Uns brincavam de roda
no terraço, outros de anel, e alguns procuravam
conversar com os adultos, entre estes, a “borboleta”,
claro.
      Hora do lanche. Cantaram o parabéns e dona
Noêmia junto com alguns parentes da capital
começaram a distribuir os pratinhos com os doces,
salgados e o bolo do aniversário. Bandejas com copos de
guaraná e gasosa passavam por entre os convidados.
Num recanto da sala, Severina que já havia derramado
um copo de guaraná no chão e molhado a barra de seu
vestido, reclamava.
        - Oxente, é só esse tico de comer, é? Eu nem
almocei direito pensando nesse lanche e agora e só
ganho isso. Se eu soubesse nem tinha vindo pra essa
pinóia. Gente rica sé tem farrambamba. Encera a casa,
enche de jarro de flor, aprega borboleta nas parede e na
hora de dá de comer é só um tico desse. Vote! Nem
valeu a pena o copo de galalite que eu trouxe de
presente pra ele. Vou já pra casa pedir pra mãe fazer um
pirão de ovo pra mim. Tô com tanta fome que chega tá
me dando uma gastura.
       E Severina, sem se despedir de ninguém, levantou-
se da sala e foi embora. Os colegas ficaram abismados
com a falta de estilo da menina. Quando ela ia passando
pela porta de entrada esbarrou em Conceição e todos
notaram alguns docinhos caindo do bolso de seu vestido.
      - Mas    o   que   é   isso,   Severina?   Perguntou
Conceição.
       - Uns docinhos da festa que eu peguei. O que é
que tem? Tem doce demais e eu tenho certeza que vai
sobrar um tuia. Oxe! Os meninos lá de casa vão lamber os
beiços de alegria. Sai da frente que eu já tô indo.
       - As colegas que notaram a cena ficaram
vermelhas de vergonha e muito constrangidas. Mas, fazer
o quê?
       - Quase seis da noite. Aos poucos, os convidados
iam se retirando. Aline, Ana e as amigas mais próximas
despediram-se dos anfitriões e do aniversariante e
deixaram a festa. Caminharam para o pavilhão onde
ficaram comentando a festa, a atitude de Severina, etc.
Quando estavam nos comentários finais, chegou Zé Tião
um colega delas que morava no engenho Bondade e
que também estava na festa com o pacote de presente
na mão.
      - Te esquecesse de entregar o presente, Zé Tião?
Perguntou alguém.
       - Não, eu nem levei presente. Tinha uns quatro
sabonete igual a esse lá na cama. Eu peguei um pra
mim. O que é que tem? Pra que um corpo só com tanto
sabonete? Lá em casa nos usa sabão em barra pra
tomar banho. Agora vou ficar cheiroso com esse. E cala a
boca, vocês! Tião saiu correndo de ladeira abaixo em
direção à estrada do engenho.
       - As meninas ficaram chocadas. E se a dona da
casa tivesse percebido? E se ela tivesse contado os
presentes? Que vergonha! Alguém tinha de fazer alguma
coisa, mas o quê?
       - É no que dá, quando a gente se junta com
mundiça, comentou alguém do grupo. Outra dessas,
nunca mais. Eu mesma não sou nenhuma soçaite, mas
da próxima vez, se eu descobrir Severina vai estar
presente, fico fora.
       E como não havia nada que pudessem fazer
naquele momento, resolveram voltar pra suas casas.
Naquela noite ainda tinham um compromisso. O filme da
Vida de Santa Maria Gorete ninguém podia perder.
Quem já havia assistido, ia vê-lo novamente e quem não
o tinha visto ainda, esta era a oportunidade. Em ambos
os casos, a história era tão comovente que todas iriam
derramar rios de lágrimas de emoção.
- Capítulo 7 -


            UM DOMINGO MUITO ANIMADO:
              A MISSA, A FEIRA E O CIRCO.


       Pela manhã, logo às oito horas, Aline e Maninha já
estavam paramentadas de branco, com as fitas
amarelas da associação, o Adoremus e o Cecília nas
mãos para comparecer à missa da Cruzada Eucarística.
No bolso, a notinha de cinco mil reis, pois era dia de
reunião da santa associação.
       - Vamos, Maninha, vê se anda mais depressa.
Padre José vai terminar reclamando, irritou-se a menina.
       Chegando à igreja, ocuparam os assentos da
frente na fileira de bancas reservada para os membros
da cruzada e como a garota já era apóstolo, isto é, usou
um assento ainda mais privilegiado. Além desse
destaque, Aline usava uma fita mais larga com desenhos
de das armas do Vaticano encrustados nela e colocada
em diagonal. Os poucos que usavam aquele tipo de fita
eram mais graduados dentro da associação de crianças
e jovens.
       A igreja estava repleta de fiéis. Algumas senhoras
de engenho e outras damas da elite ocupavam seus
geniflexórios particulares que ficavam entre os bancos e
as colunas do templo. Os homens se aglomeravam na
área de entrada da sacristia e no lado oposto. Seu José
Fiel nunca dispensou a fita vermelha do Sagrado
Coração.
A missa, celebrada em latim, transcorria em ritmo
de piedade cristã, sob um silêncio profundo e no rigor
total da liturgia. O cura de origem teutônica, aspecto
sisudo e voz grave, dominava a platéia de fiéis através de
suas grossas lentes. Ai de quem se atrevesse a cochichar
ou tirar a atenção de algum fiel do andamento da
cerimônia. O reverendo fitava o perturbador por algumas
dezenas de segundos e o constrangimento era geral. E se
a perturbação, por menor que fosse, continuasse, aí sim,
vinham os gritos seguidos da expulsão do(a) indesejável
do templo.
       Numa ocasião, em meados do outono, em plena
missa das nove horas do domingo, caiu uma forte
chuvada e algumas dezenas de pessoas, homens em sua
maioria, que conversavam no Pé-do-Santo, correram
para dentro da igreja e ficaram acotovelados na entrada
principal, abrigando-se dos respingos. O reverendo,
notando a movimentação vira-se para trás e grita para
os recém-chegados:
         - “Isto aqui não é um guarda-chuva, é uma igreja.
Retirem-se imediatamente”. Aguardou que os biguzeiros
se retirassem e continuou a cerimônia.
        A criançada participava da comunhão e depois
de uma hora de culto ouvia-se o “Ite, missa est”, que
significava o final da cerimonia.
        O padre retornava para a sacristia e voltava
dentro de poucos minutos para presidir a reunião. Aline
lia a ata e anotava os assuntos do dia para serem
colocados no próximo relatório. Cantava-se, rezava-se e,
aos poucos, o pessoal ia ficando com fome. Uma hora
depois os cura abençoava os pequenos cruzados e
retirava-se da reunião. Os participantes iam saindo das
bancas em fila ordenada, flexionavam o joelho direito e
retiravam-se da igreja.
        Depois de cumprida a obrigação, voltavam para
casa para o café da manhã e logo corriam para a feira.
Era uma alegria geral. Passear de banco em banco
apreciando as mercadorias e as novidades. Tomavam
gelada de morango, caldo de cana com pão doce em
seu Otávio; passavam por seu Pontual para verem as
pessoas serem “curadas de cobra”; havia outro que
aplicada choque de bateria elétrica com alguma
finalidade terapêutica, etc.
        Experimentavam os óculos de grau, ou se
deleitavam cheirando as diversas fragrâncias utilizadas
nas vaselinas para cabelos. Bom mesmo eram as
novidades da capital: pulseiras de alumínio dourado, de
galalite, ligeiras largas para segurar os cabelos,
diademas, brincos, etc. Os trocados que cada um levava
eram mesmo gastos com as saborosas cocadas, cavacos
japonês, pitombas, ingás, chupetas de açúcar e pirulitos.
Aline não se conformava se não degustasse um daqueles
inusitados pãezinhos doces que tinham um formato de
jacaré. A feira se estendia até às 13:00 h do domingo.
       Uma ocasião, quando passavam nas imediações
do banco de dona Maria Morais, Aline queixou-se da
lente dos óculos. Segundo ela, estavam ficando fracas.
Lourdes Alves que acompanhava o grupo logo achou
uma solução.
      - Vem cá, Aline, experimenta um desses óculos do
banco de dona Maria.
       - Tá abiscoitada é, meu caso tem que ser em
Recife e com Dr. Altino Ventura.
Na volta ainda ficavam um tempo sentadas no
“pavilhão”, apreciando os cabriolets que chegavam ou
voltavam para os engenhos, carregando os senhores e
senhoras de engenho que tinham vindo para a missa
dominical e a feira.
       Uma delas comentou empolgada:
       - Olha o rapaz que vai dirigindo o cabriolet como
é simpático, Aline!
      - Pronto, menina aquilo é somente o boleeiro, o
dono do engenho é o que vai no assento traseiro.
        Era um verdadeiro desfile de charretes e
cabriolets. Seu Eugênio e Dona Julieta de Animoso, seu
Raul e dona Lourdes de Riachão do Sul, dona Laura e os
filhos, proprietários do engenho Refrigério, seu Antônio
Cadete, de Amaraji d´Água, seu Horácio Esteves e dona
Conceição de Raiz de Dentro, seu Amaro Ferreira e dona
Nely de Guloso, entre outros.
       Era pouco mais de meio-dia quando todas
decidiram retornar as suas casas para o almoço. Afinal o
circo estava na cidade e à noite todo mundo iria assistir a
função.
       A tarde passou rápido. Jantaram cedinho e às
sete horas as garotas acompanhadas de algum adulto
começaram a se encontrar na praça do coreto. Ia ser
uma grande apresentação. Estariam se apresentando no
circo nada mais nada menos que a loura Suely Monteiro,
famosa rumbeira e artista circense, a cantora romântica,
Conchita Moreno e o famoso trapezista Wilson Wayne.
Era um delírio.
       O circo era armado no pátio em frente ao
cemitério. Tinha somente meia coberta na parte em que
se apresentariam os artistas. E do lado de fora em frente
à minúscula bilheteria lá se postava a turminha na fila
para a compra dos ingressos: Aline, Maninha, Denise
segurando a pequena Leda pela mão, Lourdes e José
Alves, e um grupo de amigos.
        Ingressos comprados todos se dirigiram para a
geral do circo, chamada carinhosamente de “poleiro”.
Os vendedores de confeitos, chicletes, amendoim e
cavaco japonês disputavam os fregueses. De repente a
bandinha do circo começa a tocar e o apresentador
aparece em frente às cortinas anunciando o início da
função. Mágicos, macacos amestrados, trapezista,
equilibrista e, é claro, os engraçados palhaços.
Finalmente o mais esperado da noite.
        Senhores e senhoras, o circo Arcoiris Dourado tem
a prazer de apresentar, vinda diretamente de Rio de
Janeiro, a grande cantora Conchita Moreno. Aplausos
estrondosos. Abria-se a cortina e aparecia a cantora
trajando um longo preto tomara-que-caia com corte nas
laterais da saia e latejolas brilhantes sobre colo.
Maquiagem carregada e cabelos penteados com um
coque no estilo ninho de passarinho brilhante de laquê. O
pequeno conjunto dava um solo e sua voz maviosa
elevava-se ao ar:
       “Ai mouraria, da velha rua da palma,
       onde eu um dia, deixei presa a minha alma,
       sabor que o vento,
       como um lamento trouxe comigo
       E que ainda agora, a toda a hora trago comigo

       E as vozes femininas faziam coro com a cantora
na hora do refrão:
       “Ai, mouraria, dos roxinois dos beirais
       Dos vestidos cor de rosa
Dos serões tradicionais

        Finda a apresentação, aplausos, vaias e gritinhos
histéricos. Os vendedores de gulozeimas acotovelavam-
se pelas tábuas dos poleiros alardeando seus produtos e
disputando seus fregueses.
       - Olha o midubim, torrado e cozinhado. Olha o
confeito, chiclete e o nego bom.
       O grupo de amigas ocupava a parte mais alta
das arquibancadas. Como o dinheiro de todo mundo era
meio curto, se contentavam com um ou outro pacote de
amendoim.
       De repente, Severina, aluna do grupo passa lá em
baixo e grita:
       - Ô Aline, Wilson Wayne quer falar contigo.
       - Quem?
         - O trapezista, mulé. Ele tava perguntando teu
nome. Acho que ele tá querendo tirar umas linhas
contigo. Que é que eu respondo? Ele prometeu uns
ingressos do circo pra tu e tuas amigas. Decide logo,
visse! Tem um bocado de meninas a fim de namorar com
ele.
       - Aceita, Aline, tu namora com ele e a gente vem
junto contigo pro circo, pra gastar os ingressos que tu vai
ganhar, comentou Marilene.
        - Mas é nada, respondeu a baixinha vermelha e
irritada. Fique com ele pra você, sua idiota. Tá pensando
o quê, que eu já estou ficando no caritó, é? Leva ele pra
tua tia Julieta que já é vitalina há muito tempo. Sou muito
nova ainda. Vocês acham mesmo que eu vou me formar
pra andar com o circo, é? Tem muita graça! Vou já
embora pra casa!
      - Calma, Aline, foi só uma brincadeira de Severina.
Você não sabe que ela é meio doida e muito
desbocada!
       E o apresentador continuava:
       - Senhores e senhoras, agora o momento de
suspense. O grande trapezista Wilson Wayne vai voar
sobre a platéia. E ao som da bandinha, o artista subia até
o trapézio e começava sua apresentação. As pessoas
olhavam para cima com um misto de temor e
admiração. Será que ele não ia despencar daquele
balanço?
        E lá de baixo, próximo ao picadeiro, Severina,
rindo, acenava pra Aline e apontava para o trapezista.
       - Eita, menina chata da murrinha, comentou a
baixinha.
       - Esquece, Aline, quanto mais você fica
abofelada, mais ela vai chatear, comentou uma das
meninas do grupo.
      - Nada disso, amanhã vou ter uma conversa com
a mãe dela. Ô racinha!
      Terminada a apresentação, o dono do circo
aparece novamente e anuncia:
       Senhores e senhoras, agora o ponto alto da noite.
Com vocês, diretamente de Cuba, a sensacional, a
maravilhosa, a divina Suely Monteiro, a maior rumbeira de
todos os tempos.
     Os homens acotovelavam-se em torno                do
pequeno palco e aplaudiam loucos de impaciência.
A dançarina apareceu trajando uma sainha curta
de fitinhas coloridas e um sutien também decorado no
mesmo estilo. O conjunto iniciou o ritmo caribenho e a
Suely, remexendo freneticamente os quadris, fazendo
movimentos sensuais com os braços e mãos e piscando
para um e outro dos mais próximos iniciou sua dança:
      Dona Maria a mulher do caroço
      Pegou uma foice pra cortar o meu pescoço (bis)
      Ó, gente, que bichinho é este?
      É a barata! Pega o chinelo e mata. (bis)
      Ai, ai, ai, sendo assim eu não vou lá
      Ai, ai, ai, vocês querem me matar. (bis)

      É show Mariana, é show, é show, Mariana, é show
      Remexedor, remexedor.
      Meninas, vamos embora, pra cima daquilo tudo
      Só vendo o meu chuchu, à turma dos cabeludos
      Refrão ...
      Meninas, vamos embora, pro pé de abacaxi
      Só vendo o meu chuchu,
      prá turma de Amaraji.
      Refrão ...
      Meninas, vamos embora,
      pro pé de abacateiro
      Só vendo o meu chuchu,
      a homem que tem dinheiro.


        Na saída do circo, quando já caminhavam pela
rua do Cemitério, os comentários eram as piadas
picantes dos palhaços, o trapezista e as cantoras.
Lourdes Alves adiantou-se um pouco e começou a
cantar e mexer as cadeiras imitando a Suely Monteiro.
Algumas garotas riam, mas logo uma das mais moralistas
criticou:
- Oh, Lourdes, está esquecida que pertence à
cruzada? Já pensou se o padre sabe que você tá
rumbando pela rua e se comportando que nem uma ...?
      Foi água fria na fervura. Todo mundo se aquietou.
Algumas cruzavam os braços por conta da frieza e da
garoa que caia. Aos poucos o grupo foi se dispersando, e
cada um tomou o seu destino.
- Capítulo 6 -


                  AS SANTAS MISSÕES


        Mês de janeiro. A comunidade católica se
rejubilava com a notícia. Na missa do domingo o vigário
anunciara para muito breve a realização das santas
missões na cidade. O evento teria a presença de nada
mais nada menos que aquele santo missionário que
encantava a todos os verdadeiramente fiéis das plagas
quentes do nordeste.
       Aline chegou em casa toda jubilosa contando a
todos, a notícia. Já estava se imaginando, às três e meia
da madrugada, seguindo aceleradamente o santo
homem pelas ruas do burgo, exibindo com orgulho sua
fita amarela de membro da cruzada eucarística, o livro
do hinário católico na mão, ladeada pelas santas
zeladoras, pelas filhas de Maria e outros beatos, ao som
tarquetraqueante da velha matraca.
       A menina cantava no coro, ajudava nos
batizados, enfeitava os altares da igreja e sempre fazia
parte de todos os eventos da igreja. Certa estava ela.
Com aquela participação constante e permanente,
conseguiria ganhar muitas indulgências e, previdente
como a formiga da fábula, estava fazendo seu pé-de-
meia espiritual para, muito futuramente, assegurar uma
boa “cobertura” em alguma nuvem ampla, com vista
para o mar no andar de cima.
       Afinal chegou o grande dia. A população
católica deslocou-se em procissão até a entrada da
cidade para esperar os missionários. Jovens e senhoras
vestidas sobriamente, sem pintura nenhuma nos rostos
com ramos verdes nas mãos. Membros do apostolado da
oração, da pia união das filhas de Maria e da cruzada
eucarística, enfileiradas solenemente. O sol causticante
fazia com que o pó de arroz das faces angelicais das
jovens puras e das santas beatas se misturasse ao suor
que se lhes escorria rosto abaixo. A espera era longa, mas
a fé superava tudo. De repente o jeep da prefeitura
apareceu e um emissário anunciou que o carro da
comitiva já estava passando pelo engenho Jaguarana.
Um murmúrio meio frenético e quase chegando à beira
do histerismo percorreu a multidão. Havia velhinhas que
beijavam a mão direita e a elevavam para o céu. Outras
se benziam repetidamente. E algumas já puxavam um
lencinho branco de dentro do porta-seios para enxugar o
copioso que estava por vir.
      - Silêncio, meus irmãos, gritava o padre. Silêncio!
Vamos organizar a fila.
       Lá do fundo, dona Zefinha trajando seu
domingueiro azul marinho, com a larga fita de tafetá
vermelho caindo cobre o colo começou a entoar o hino
de santo Amaro.
         - Quem mandou a senhora começar os cânticos,
irritou-se o cura. Não é o hino de santo Amaro, é o hino
das missões. Vinde, pais, e vinde, mães, vinde todos às
missões,...”
       - Mãe, ô mãe, eu quero mijar.
      - Deixa disso, Raminho, é hora de rezar com o
padre e não de ir à casinha, respondeu uma das
acompanhantes da procissão.
- Mas, mãe, eu tô já me mijando, continuou o
garoto.
       - Tá bom, vá ali atrás daquelas bananeiras,
prosseguiu a mãe.
       Afinal o momento de glória. O carro               dos
missionários apareceu e começou a ovação.
        - Viva os missionários! Viva! Viva as santas missões!
Viva o Papa! Viva! E a multidão emocionada mais uma
vez: vivaaaa! E na esquina de uma barraca na entrada
do sítio de seu Eudóxio, um velhote que havia tomado
uma meiota, confundido talvez o evento, gritou:
        - Viva Dr. Zé Lopes! E as velhinhas que corriam no
final da fila, sem nem saber direito que santo era aquele,
responderam empolgadas: Viva! O reverendo ainda
encarou meio rancoroso o velhote, mas não havia tempo
para ralhações.
         O carro passou em direção à igreja e o povo
acompanhando em ritmo acelerado, esqueceu-se das
filas, dos hinos, e só se pensava em ver o santo homem
de perto, tocar nele ainda que por um segundo e beijar-
lhe a mão. Entretanto não foi fácil. A prefeitura havia
organizado um cordão de isolamento e os missionários
puderam entrar para a casa paroquial sem serem
importunados.
      Na casa paroquial um rápido lanche e um
descaso.
        Meia hora depois os frades adentravam o altar-
mor e davam início à cerimônia. Cânticos, orações, e o
turíbio fumegante nas mãos do chefe dos coroinhas
espirrando fagulhas pra todos os lados.
Na pauta das pregações, a presença do pecado
mortal, do demônio, da concupiscência, dos maus
pensamentos e todos aqueles itens que se não cumpridos
fervorosamente levam o católico para as profundezas da
fogueira eterna.
        Os conceitos do frade eram sintetizados de forma
taxativa, sem atenuantes e meios termos. Era ser ou não
ser, os mornos não entravam no reio dos céus. Vejamos
alguns deles:
        Namoro – “Só na frente dos pais, com uma pessoa
solteira. Deve ser breve, com casamento à vista”.
        Beijo – “Um beijo dado no rosto da namorada,
como um beijo dado numa parenta, não tem nada
demais. Entretanto, um beijo na boca, um beijo de língua,
isso não, é pecado”.
      Divórcio – “O matrimônio só é quebrado por morte
da esposa ou do esposo. Quem deixa o casamento para
casar com outro no civil, estará no inferno de cabeça
para baixo”.
      Dança – “A dança é um elemento de perdição.
Quando um homem e uma mulher se juntam para
dançar, não pode sair nada de bom disso tudo. Então
sobrevém   os    maus   pensamentos,   os   desejos
pecaminosos, o pecado”.
       Saia curta – “Não usem saia curta. A saia curta
não presta. É uma rede de que se serve o demônio para
pegar os homens. O demônio está enganchado na saia
curta das mulheres. Muitos homens perdem a cabeça por
causa dessas modas exageradas”.
      Concubinato – “Uma pessoa que vive com outra
sem casar, estará no inferno de cabeça para baixo”.
Demônio – “O demônio existe, estão ouvindo? Ele
existe. Numa cidade do sertão, entrei numa casa
abandonada e ele me jogou sete pedras”.
        Inferno – “No inferno só há sofrimento. Lá, o calor é
bilhões de vezes pior que no Nordeste. As labaredas
sobem e queimam sem parar o corpo dos adúlteros, das
prostitutas, dos efeminados, dos criminosos. Lá, é o lugar
onde vive o demônio”.
        Depois de uma pregação com esses conceitos as
filas do confessionário eram quilométricas. Todos queriam
lavar suas almas e receber o perdão do santo homem. A
jovem Aline preferiu se confessar com um frade mais
jovem que, segundo ela, escutava melhor.
       Na praça o comentário era a pregação dos
padres. Crentes, duvidosos ou céticos, cada fiel
externava sua opinião. Uma coisa era certa, o inferno
amedrontava muita gente.
       Aline e Ana mal conseguiram dormir pensando na
procissão da madrugada. E às 3 horas em ponto as duas,
acompanhadas por Neném e Mery, tomaram café e
subiram para a matriz sob um frio de gelar a alma. Cada
uma delas usando um daqueles chales triangulares que
eram enfiados pela cabeça no estilo “poncho”. Às três e
meia em ponto, o frade que já estava posicionado há
bastante tempo começou a caminhar cantando o hino
das missões e tocando a matraca. E os fieis atrás dos
santos missionários, respondendo os hinos:
       Vinde, pais; vinde, mães; vinde, filhos;
       vinde, todos à Missão.
       São dias de misericórdia,
       são dias de consolação.
Ó Jesus, que amais as almas,
       pelo vosso Coração,
       dai que todos com proveito
       freqüentemos a Missão.

       É favor de vossa graça,
       de nossa alma a salvação.
       Ó Jesus misericordioso,
       concedei-nos o perdão!

       Vinde, pais; vinde, mães; vinde, filhos;
       vinde, todos à Missão.
       Vinde, agora, pois é tempo
       de cuidar da salvação!


       As missões foram um sucesso. Foram realizados
muitos batizados, confissões e casamentos. Dezenas de
casais que viviam “amigados” ou “amancebados” como
diziam os missionários, reconciliaram-se coma igreja pelo
casamento. Na época casais amigados não eram bem-
vindos nos missas e outras celebrações da igreja, inclusive
não podiam ser padrinhos nos batizados. Afinal viviam em
pecado. Aline e algumas amigas colecionavam santinhos
e medalhinhas e ficavam, a todo instante, furando a fila
para pedir a algum missionário que abençoasse as
estampas e as medalhas. Haja fé!
       A população católica da pequena cidade,
sempre muito fervorosa, participava ativamente das
atividades da igreja. Os padres e os missionários sempre
eram esperados na estação do trem e, ao termino do
evento religioso, levados de volta por uma multidão de
fiéis.
       Nos meados da década de quarenta, a
professora Lourdes Barbosa adquiriu uma imagem de São
Tarcísio e organizou uma chegada festiva da imagem do
santo, transportado de Recife até Amaraji. A comitiva,
responsável pela imagem chegou de trem e dezenas de
pessoas se deslocaram até a estação para receber o
mártir. Dá pra imaginar o empurra, empurra. A
plataforma da estação era pequena e o número de fiéis
que queriam ver a imagem de perto e tocá-la era
imenso.
       Os pais de Aline e Ana, João Luís e Maria Dapaz,
levaram as duas pequenas para assistir a solenidade.
Cada uma das meninas acompanhadas de suas
bazinhas. Mas nada foi como esperado. Naquele
aglomerado, Ana Maria levou um empurrão que
provocou uma queda e machucou-se. Os pais ficaram
bravos, as duas babás foram repreendidas pelo descuido
e a família retirou-se da festa retornando ao solar.
       Outra chegada festiva de santo ocorreu em 1950
na inauguração da Capela de Santo Amaro construída
pelo prefeito, Dr. Jorge Coelho. A imagem de Santo
Amaro foi trazida da cidade de Sirinhaém onde ele havia
trabalhado como médico e fora nomeado prefeito em
1947. Desta vez o santo veio de carro e a população
esperou a comitiva na entrada da cidade.
        Ocorreu outro fato muito interessante no finalzinho
do século XIX na estação do trem. Minha avó Trifônia
Coelho (Iaiá) estava presente e me relatou este fato que
foi confirmado por várias pessoas da época dela.
       Havia chegado à cidade um missionário para
celebrar um evento de alguns dias na matriz de São José.
Era um frade simples, humilde, e considerado santo por
muitos. Trajava um hábito bastante surrado e sandálias já
descoloridas pelo uso. Celebrou missas, batizou, oficiou
casamentos e, depois de uma semana, voltou para o
convento em Recife.
       Como de tradição muitos fieis pertencentes às
diversas associações formaram um cortejo para levá-lo
até a estação onde ele viajaria de trem.
        Durante todo o trajeto ele se manteve em silêncio.
Enquanto aguardava o trem, ficou passeando pela
plataforma e lendo seu breviário. Os fiéis, achando
estranho aquela atitude do frade, começaram a
cochichar entre si. Foi quando uma senhora do
apostolado aproximou-se e perguntou sutilmente o que
estava acontecendo. Ele parou de andar de um lado
para outro, guardou o livro na bolsa que estava no
banco da plataforma e, de braços cruzados, batendo
delicadamente no chão com a ponta do pé direito e
com um olhar vago para o horizonte, comentou: esta vila
não sabe valorizar um servo do Senhor, não está em
sintonia com as coisas da Santa Igreja. “Este lugar não vai
pra frente nunca”.
       Ninguém nunca soube o que realmente ocorreu
pra constranger o frade durante sua permanência em
Amaraji, mas as palavras dele ficaram na mente de
muitos por gerações.
       Não foi praga, pois homens santos que pregam a
palavra de Deus não se utilizam disso para com seus
desafetos. Seria o frade um sensitivo, teria ele o dom da
premonição?
       O fato é que o município de Amaraji, naquela
época um dos mais promissores do estado, possuía:
sessenta e um engenhos, vários deles banguês os quais,
mesmo em fase de decadência, produziam açúcar,
melaço e cachaça; as usinas União e Indústria, Cabeça
de Negro, Bosque, Bamburral, Aripibu, e, na década de
1920, Liberato Marques; a vila de Primavera a vila de
Cortês com a usina Pedroza. Além disso, políticos fortes
como Dr. Mário Domingues da Silva, deputado e senador
do congresso pernambucano; Dr. Davino dos Santos
Pontual, também deputado e senador e o comendador
José Pereira de Araújo que presidiu o senado do Estado
nos anos de 1916-18. Isso sem contar o usineiro e
advogado Carlos de Lima Cavalcanti, natural de Amaraji,
que foi interventor federal no Estado.
       Nas décadas de 1920-30, a cidade de Amaraji
figurava como o 14º produtor de cana entre os 84
municípios de Pernambuco e entrava nas estatísticas
estaduais de produção de banana, mandioca, algodão
e coco. No município havia duas máquinas
descaroçadeiras de algodão e cerca de 250 casas de
farinha distribuídas pelos engenhos.
        O que aconteceu, afinal? Parece até uma “lenda
urbana”. Conforme já escrevi uma vez, foram-se as
usinas, os engenhos e as casas de farinha, mas ficaram as
matas verdejantes, o rio a correr e “tutta la bona gente”
de lá da província.
       A análise final dos fatos fica a critério de cada um.
- Capítulo 5 -


              A BORBOLETA VAI À ESCOLA


         Nos meados do século passado, na pequena
cidade de Amaraji, havia apenas duas escolas do ensino
primário: o Grupo Escolar Dom Luiz de Brito, pertencente
à Secretaria de Educação do Estado e o Instituto Cônego
Aníbal Santos, escola particular, dirigido pela professora
Lourdes Barbosa. Os jovens da elite e parentes da
Professora Lourdes iniciavam seus estudos naquele
Instituto e as demais crianças, na escola do Estado. O
ensino supletivo também fora introduzido no final dos
anos 40. Funcionava à noite e era destinado
prioritariamente a jovens e adultos que não tinham tido
oportunidade de ter sido alfabetizado na infância.
       O D. Luiz de Brito marcou a vida de todos aqueles
que passaram por suas salas. O prédio, de dois
pavimentos, fora adaptado da antiga cadeia pública do
município no final da década de 1940 e recebeu o nome
do primeiro arcebispo a visitar a cidade. Suas carteiras,
fabricadas    de    sucupira, eram      ortopedicamente
desconfortáveis; um estudante que fosse mais gordinho,
nela se acomodava com bastante dificuldade. Mas já
era uma grande conquista para o setor educacional. Na
parte de trás do prédio, onde se localiza o Fórum
Municipal, havia uma campina verde que era usada
como campo de futebol.
      Dona Maria Nely Gomes de Sá, a primeira diretora
do grupo, etariamente idosa, de idéias pré-jurássicas,
formação acadêmica paleoliticamente dinossáurica e
métodos pedagógicos bem pessoais, devendo ter
nascido em mil novecentos e bauzes bauzes, época em
que o arco-íris era preto e branco.
       Segundo a tradição histórica das más línguas, ela
era prima distante do Noé da arca e teria sido uma
parenta sua muito remota que, após o dilúvio, teria
soltado a pombinha, lá do alto do monte Ararat. Conta-
se também que uma de suas tias em grau muito afastado
e há alguns séculos atrás, fora auxiliar de copeira da
Santa Ceia; a encarregada de lavar as taças.
       Baixinha, gorda, descenturada, voz estridente e
gasguita, trajando sempre saia justa de tecido escuro e
blusa clara sobre corpetes pontiagudos, com dois eternos
bendengós, na época, chamados de “cachorro-quente”
ornando-lhe o penteado. Usava óculos de grau muito
forte numa armação estilo olho de gato. Sua arma
pedagógica mais presente e sempre às mãos, pronta
para ser utilizada, não era a obra de Arnaldo Niskier e sim
uma sombrinha. Pela quantidade de sombrinhas
danificadas nas costas dos alunos “levados da breca”,
acreditava-se que ela as comprava em grosso.
       Seu rigor administrativo extrapolava toda a noção
moderna de recursos humanos. O tratamento dado às
outras mestras era bem glacial e o relacionamento com
as duas funcionárias que auxiliavam na administração,
dona Maria do Carmo e Maria da Paz, mãe de Aline e
Ana, não ficava atrás.
        Só quem estava a salvo de suas sombrinhadas era
Rosinha sua filha. Dona Nely e seu esposo eram, na
época, os únicos que possuíam um veículo na cidade e
desfilavam no automóvel de marca ford pelas ruas da
cidade aos domingos.
A cada dois meses, geralmente num domingo à
tarde, ela visitava seu Ernesto Coelho e dona Iaiá, meus
avós, para tomar um cafezinho, fazer uma oração de
agradecimento e acender uma velinha para a minúscula
imagem de santo Antônio que dona Iaiá havia herdado
de seus avós e que, segundo muitos devotos, concedia
graças àqueles que lhe invocassem. Sendo santo Antônio
o padroeiro dos casamentos, imaginava-se que ela ia
agradecer ao canonizado algo muito especial. Afinal
muitas dezenas de semestres separavam ela de seu
esposo, o servidor municipal José de Assunção.
        As outras mestras da época: Rita de Souza,
Bernadete Silva, Nieta Tabosa, Das Dores Teixeira, Isaura e
Carmita, Mara Vasconcelos e Salete Coelho, formadas
por último, ensinavam no engenho Garra e na antiga
escola rural da cidade. Todas eram um doce de pessoa.
Também Abiacy e Neide Lins, formadas bem jovens
iniciaram-se no magistério no final dos anos 50. O regime
era de ordem, disciplina e assiduidade. Os instrumentos
de tortura: palmatória, caroço de milho e longas horas de
pé ou ajoelhado versus parede na diretoria e a famosa “
sombrinha ” de Dona Nely, que mais se assemelhava ao
coelhinho da Mônica.
       Os livros didáticos: “Vamos Estudar” e “Lili, Lalau e
o Lobo.” Na quinta série, a bíblia: “Admissão ao Ginásio.”
As aulas transcorriam dentro de uma programação
contínua e sempre se tinha algo que fazer. Decorava-se
a tabuada, os pontos de geografia e história, e faziam-se
descrições, tendo como tema figuras e paisagens de um
álbum ilustrado gigante que era colocado sobre um
cavalete na frente dos alunos. Não se tinha outra
alternativa: estudava-se e aprendia-se. Com mil perdões
das “meninas da gre”, a coisa funcionava. Mesmo
pronunciando Vasingtón, quem decorou e aprendeu que
Washington é uma capital, nunca esqueceu.
Outra atividade interessante eram as aulas de trabalhos
manuais. Desenhos, quadros de vidro pintados de preto e
com complementos de papel laminado de um tipo de
chocolate em forma de peixinho em várias cores. Havia
ainda uns quadros de madeira compensada nos quais se
desenhava algum tipo de paisagem e trabalhava o
quadro com uma massa de alvaiade, óleo de linhaça e
pó secante, formando as figuras em alto relevo. Uma vez
seco, pintava-se o trabalho de belas cores. Havia ainda
trabalhos feitos em azulejo branco. Colocava-se o azulejo
sobre a chama de uma vela acesa e quando estava
todo tisnado, desenhava-se alguma figura, retirando o
excesso e tisna preta e deixando o verniz copal escorrer
sobre a silhueta desenhada.
        Os colegas de sala: Aline e Ana Costa Gomes,
Alzerina Silva, Amara (Lala), Amara e Edite Araújo, Amara
Pereira, Antonieta, Aspásio, Francisca e Margarida Carlos,
Carlos Alberto, Carlos Eduardo e Cláudio Leonardo
Vasconcelos, Conceição Silva, Eleusis e Dirceu
Vasconcelos, Enedina (Neném) de seu Delmiro, Heleno
Amaro e Zuleide, Amara Hulda e Vicente Ramos, Ivonete,
Joaquim (Quincas) Fabrício, Luís (Lula) Benigno, Márcio e
Márcia Bandeira de Melo, Maria Celeste, Maria de seu
Saul, Neide, Roberto Barbosa, Rômulo Ferraz, Santo e
João Martins, Sônia e Airton Brito, Sônia e Giselda Santos,
Terezinha, Vilma Brito, Wilton.
       As classes eram multisseriadas. O uniforme era
obrigatório para todos: dos mais carentes, passando
pelos emergentes até os de famílias mais afortunadas.
Para as meninas, saia azul de pregas, blusa branca com
a logomarca da escola no bolso; para os meninos, calça
no joelho, camisa branca com as mesmas letras. Sapatos
pretos e meias brancas para todos.
Não dá para esquecer o final de horário escolar
do Grupo. Dona Maria do Carmo tocava a campainha e
a professora anunciava que a aula estava terminada.
Livros arrumados, alunos de pé, formando fila única em
cada sala de aula.
        Na porta de entrada da escola Dona Nely de
mãos para trás, uma delas segurando seu inseparável
bibelô, a sombrinha, dizia:
      - Pode sair a terceira série! ”
      E os alunos deixavam a sala em fila indiana,
marchando em formas de “cobrinha” pelo hall e
cantando o hino Ardor do Infante de Castro Alves:
      Onde vais tu, esbelto infante
      Com teu fuzil lesto a marchar
      Cadência certa, o peito arfante
      Onde vais tu a pelejar?
      Pra longe eu vou, a Pátria ordena
      Sigo contente o meu tambor,
      Cheio de ardor! Cheio de ardor!
      Pois quando a Pátria nos acena
      Vive-se só da própria dor.

      É no combate que o infante é forte
      vence o perigo despreza a morte.

       Outras classes iam acompanhando a primeira que
havia iniciado a marcha e, quando o hall estava quase
cheio ela batia duas palmas fortes e dizia:
       - Podem sair! Devagar! Quem correr, eu chamo
de volta.
        A essa altura, a diretora postada no portão de
saída, já estava segurando a sombrinha em estado de
alerta. Não era permitido sequer pular de dois em dois
degraus da longa escada do grupo. De repente, ouve-se
um grito estridente de Dona Nely:
       - Amaro Cavalcante, volte já aqui! Ele apenas
acelerara o passo lá próximo do último degrau. E lá vem
o menino cabisbaixo, cenho franzido, e ainda foi
alcançado de raspão pela sobrinha da diretora ao
caminhar para a diretoria.
       - Ai, dona Nely, doeu!
       - Cale a boca, seu moleque insubordinado e
atrevido, puxe para diretoria e fique de joelhos virado
para a parede. Deve ter saído da diretoria lá pelas duas
horas da tarde.
       A gente esperava com ansiedade as datas
comemorativas do ano escolar: carnaval, semana santa,
São João, Semana da Pátria, dia da árvore, a visita da
inspetora escolar, dona Hilda Brandão e, em dezembro, a
entrega dos resultados das provas finais.
        O dia da pátria era comemorado com muita
alegria e participação da comunidade. Ensaiavam-se
durante muitos dias os passos da marcha, a divisão dos
pelotões, etc. Seu Luís Soldado era o instrutor. A banda
era composta de um surdo, um tarol e uma caixa e uma
corneta que tocava os comandos. Os meninos
disputavam uma vaga na banda, mas quem escolhia era
o instrutor. Os ensaios se realizavam no campo de futebol.
       Aline, muita sabida, mas bastante pequena ainda
ficava num pé e noutro pra saber onde ia ser o seu lugar
no desfile. A bandeira ela não podia carregar. Imagine
um pé de vento mais forte: bandeira e porta-bandeira
iam voar pelos céus da província. Aliás, carregar a
bandeira do Brasil era mesmo que disputar um concurso
de miss. Todos queriam usar luvas brancas pra carregar o
lábaro nacional. Geralmente o escolhido era algum
“peixinho” da diretora ou de alguma professora. Tinha de
ser um aluno alto, garboso e saber marchar, claro. Fazer
o esquerda, direita, esquerda, direita, no ritmo certo.
Havia também uma estudante mais baixa que, de luvas,
marchava à direita do porta-bandeira segurando
delicadamente a ponta da bandeira.
        O desfile saia da frente do grupo e dirigia-se até o
prédio da prefeitura para a solenidade especial de
hasteamento da bandeira, discursos e uma demorada
hora de arte. A borboleta que já havia passado o mês
mexendo com os pauzinhos, conseguiu abrir o desfile,
marchando na frente da bandeira com luvas brancas e
uma faixa auriverde. Sem contar que foi uma das
oradoras na prefeitura e, de quebra, ainda declamou
uma poesia. E, claro, com todos aqueles aplausos, a filha
de J.L. e dona Dapaz, desceu as escadas do Paço
Municipal e dirigiu-se ao seu lugar no desfile com aquele
“oco patriótico”. E o desfile continuou pelas ruas e praças
da cidade até retornar ao ponto de saída. Depois da
solenidade, o lanche patrocinado pela escola e pela
prefeitura municipal. Naquele momento, todo mundo
amava Dom Pedro II, o rio Ipiranga e o brado
retumbante.
       A comemoração do dia da árvore era outra
solenidade muito esperada. Naquela data, professores e
alunos dirigiam-se ao campo de aviação, o campo de
pouso da cidade, para o plantio de árvores. O ambiente
era verde e bucólico; de um lado a mata das Três Bacias,
do outro, as matas da ladeira de Riachão, e, por trás, as
matas de Sete Ranchos e engenhos circunvizinhos.
Cânticos, declamações, discursos e, na volta, aquela
gostosa salada de frutas. Esta música de Arnaldo Barreto
era cantada, tradicionalmente, enquanto as árvores
eram plantadas:
      Cavemos a terra, plantemos nossa árvore,
      Que amiga e bondosa ela aqui nos será!
      Um dia, ao voltarmos pedindo-lhe abrigo,
      ou flores, ou frutos, ou sombras dará!

      O céu generoso nos regue esta planta;
      o Sol de dezembro lhe dê seu calor;
      a terra, que é boa, lhe firme as raízes
      e tenham as folhas frescuras e verdor!

      Plantemos nossa árvore, que a árvore amiga
      seus ramos frondosos aqui abrirá,
      Um dia, ao voltarmos, em busca de flores,
      com as flores, bons frutos e sombra dará

      O céu generoso nos regue esta planta;
      o Sol de dezembro lhe dê seu calor;
      a terra, que é boa, lhe firme as raízes
      e tenham as folhas frescuras e verdor!


       As alunas mais velhas apresentaram sketches,
poesias e cânticos. Professoras também participavam
ativamente. No final da solenidade, a diretora franqueou
a palavra, com a tradicional pergunta: alguém quer fazer
uso da palavra ou apresentar alguma atividade? Não é
preciso dizer que alguém lá de trás, com os cabelos
desalinhados pelo vento forte, o rosto avermelhado com
o calor do sol respondeu quase gritando:
       - Claro que eu quero, dona Nely. Preparei uma
poesia que está na ponta da língua.
- Pronto, lá vai aquela baixinha metida de novo,
reclamou uma menina no meio da turma.
       - Deixa de ser invejosa, Severina, pior é você que
não sabe apresentar nada. Só pensa em encher a
barriga com salada.
       - E apoi, mulé, tô me acabando de fome. Eu nem
tomei café direito pensando na salada de fruta. As tripas
estão quase brigando no meu bucho.
      - Mas você é muito ignorante mesmo, nossa,
como é que pensa em se formar, casar ter filhos e educá-
los?
        - E quem disse que estou pensando em nada
disso, eu vou é fugir com trapezista do circo. Já tá tudo
acertado. E ai de você se contar a mãe, dou-lhe uma
pisa de lascar.
        E Isabel saiu de perto da colega horrorizada com
tanta ignorância e irresponsabilidade.
       A essa altura, Aline já estava posicionada no
pequeno palco improvisado. Dona Nely, já perdendo a
paciência, mandava os alunos calar a boca, os
professores se abanavam com os cadernos, o calor era
escaldante.
       - Pode começar a declamação, Aline, comandou
a diretora que suava às bicas e enxugava o rosto e o
pescoço gorducho com um minúsculo lencinho de linho:
      - Senhores professores, prezados alunos, a poesia
que vou apresentar é da autoria de Raul Aroeira Serrano.
E começou:
A Árvore
       "Criança, a árvore merece
       A nossa estima sincera
       Dá frutos doces no outono
       E flores na primavera.

       Nunca maltrates uma árvore
       A quem tudo nós devemos
       Desde a madeira da porta
       Ao lápis com que escrevemos.

       Na sombra da árvore amiga
       Pensa bem no teu destino
       Pois dela foi feito
       O teu berço pequenino."


       Terminada a apresentação, muitos aplausos,
palmas e alguns apitos e assovios de alguns alunos. Dona
Nely, olhando inquisidoramente para os responsáveis
pelos apitos e assovios, quase que histérica, gritou:
       - Se não acabarem com a baderna e a falta de
educação, eu acabo com a salada e o lanche e ainda
deixo vocês até às três horas na diretoria.
        Santo remédio. Um silêncio sepulcral reinou
durante todo o trajeto, desde o campo, até a escola.
Formou-se a fila da merenda e foi distribuída uma salada
de frutas, biscoitos e bastante ponche de laranja.
       Havia sempre algum estudante meio abusado
que tentava furar a fila ou, simplesmente, se servir mais de
uma vez. Dona Nely, porém, estava de plantão
permanente distribuindo cascudos, puxões de orelhas e
“muxicões” nos mais alvoroçados. Nada lhe escapava.
Lá pelas duas da tarde, os alunos começaram a deixar a
escola. A diretora estava tão absorta em manter a
disciplina no interior do prédio que nem notou a correria
e bagunça de alguns alunos pela escada de saída do
grupo.
        Amaraji, na época, apesar de ser uma minúscula
cidade da zona da mata sul possuía um campo de pouso
para aviões de muito pequeno porte. Era o único da
região. Uma curiosidade a respeito do campo de pouso.
Ele foi construído no início da década de 1950 na gestão
do prefeito Dr. Jorge Coelho da Silveira. No dia da festa
da inauguração, toda a população da cidade dirigiu-se
para o local do evento para ver a descida de um avião
monomotor, na época, chamado de “teco-teco”.
Algumas autoridades da cidade foram convidadas pelo
piloto para um pequeno voo. Dona Toinha Coelho,
esposa do secretário da prefeitura, cheia de euforia,
candidatou-se para um pequeno tour sobre a cidade.
Quando tentou subir na aeronave, pra sua grande
decepção, não conseguiu passar pela porta e quase
que fica presa. Ela era meio “fortinha”. Frustrada, desistiu
e a multidão que presenciou a cena não pode conter o
riso que não foi nem um pouco discreto.
        Aline e suas colegas, pra lá e pra cá, loucas por
um convite pra subir aeronave, mas é claro que aquilo
não era nenhuma canoa ou jaú de parque de diversões.
Só pra os adultos que fossem autoridades. Paciência,
Aline, um dia você cresce, perdão, fica com mais idade
e vai poder fazer tudo isso, voar à vontade.
- Capítulo 4 -


   SÓ DANÇO SE EU FOR MESTRA, EXIGIU ABORBOLETA


        A primeira infância da pequenina Aline, bem
baixinha, cintura roliça, bochechinhas acentuadas e já
usando seus óculos miudinhos no estilo olho de gato, foi
passada no solar da Rua 15 de Novembro, sob os olhares
atentos e cuidadosos da dileta mamãe, da secretaria
Mery, substituta de Ivanise, e dos bons vizinhos: seu
Corocochô, do “hotel estrela única” da esquina; seu
Luizinho, alfaiate, e dona Terezinha; dona Maria do
Carmo; seu Eurico, Corina e Corinto; dona Elvira Fontes e
Maria Andrade (Neném, a guardiã da família); seu
Avelino da padaria; seu Mário Telegrafista, dona Áurea e
Aurinha; seu Zé Goiana e dona Laura; seu Manoel Firmino
chefe do clã dos Amaros e Amaras Silveira; os fervorosos
crentes da Igreja Batista; dona Olindina, Permínia e
Claudionor; dona Toinha e as tias Zezé e Santinha, e
Alaíde Brito da vendinha da esquina.
        O dia a dia na província era mais ou menos
corriqueiro. Pela manhã, as aulas no Grupo Escolar Dom
Luiz de Brito, à tarde, os deveres escolares de casa, cujas
dúvidas eram tiradas com as mestras Bernadete e Rita,
hóspedes do hotel.
         À tardezinha, auxiliadas por Mery, elas se
aprontavam, penteando os cabelos cortados à moda
capelinha, que eram presos por diademas de galalite ou
ligeiras largas, vestidinhos de organdi bordados de crivo
ou ponto de cruz, com faixa de tafetá na cintura e
sapatinhos de pulseira, impecavelmente polidos por seu
João Engraxate.
       Depois de prontas, as duas sentavam-se na
calçada, saboreando os deliciosos pãezinhos da padaria
de seu Alcides, recheados de manteiga e açúcar,
gentilmente preparados pela bondosa Mery. Assim, as
duas manas esperavam o retorno da mamãe, que
passava o dia trabalhando no Grupo Escolar.
       À noite, em frente ao solar, as manas Aline e Ana
e as amigas Denise, Lourdes Alves, Elêusis, Cleide da
Borboleta, Maria Ângela e outras coleguinhas, brincavam
de roda, de pega, de academia, de manja, barra-
bandeira, boca de forno ou de esconder.
      De longe se escutavam os sons das cantorias:
      “Pai Francisco entrou na roda...” ou
      “Samba Lelê, tá doente, tá com a cabeça
lascada.. .” ou
      “Apareceu a Margarida, olê, olê, olâ...”, ou ainda
      “Boca de forno! Forno! Tirando o bolo! Bolo!...”
        Quando não corriam na rua, simplesmente
sentavam-se na calçada, brincando de anel, contando
estórias ou arrepiando-se de medo, ao falar sobre a
“Comadre Florzinha”, o “Pantel” da mata ou o último
capítulo do Mistério do Além.
        Às vezes, comentavam sobre algum estranho que
havia aparecido na rua de mochila nas costas e mal
encarado. Será que não era o “papa-figo” mandado
pelos Amorim da capital para pegar criancinhas e
arrancar-lhes o fígado, paliativo para aquela doença
horrível que fazia suas orelhas crescerem?
Em dias de chuva, reuniam-se em torno de dona
Quinquina, mãe de Maria Andrade, para ouvirem,
atentas, as estórias de Trancoso, narradas pela bondosa
velhinha.
      De vez em quando, em torno das oito horas,
escutava-se a voz de dona Elvira que gritava:
      - Denise, está na hora da novela, venha prá casa!
        Ninguém perdia o horário de “O Direito de
Nascer” e todas suspiravam com Albertinho Limonta e
Isabel Cristina, seus amores e desventuras.
      Em outras ocasiões, era Maria Andrade que
aparecia perguntando:
      - Oh, Aline e Ana, vocês já fizeram o dever de
casa? E a poesia da hora de arte, Aline? Já decorou
toda?
        Quando Aline chegava atrasadas à brincadeira,
significava que estava escutando o Repórter Esso. Mesmo
sem entender tudo ainda, adorava uma notícia.
        Uma ocasião ela atrasou-se uma meia hora. As
outras coleguinhas que já se sentavam na calçada e
iniciavam a brincadeira do anel, estranharam a ausência
da baixinha. De repente lá vem a menina respirando
com dificuldade, erguendo os ombros, com os olhos
marejando. As amigas ficaram preocupadas e Denise
aproximando-se perguntou curiosa:
       - Que é isso, Aline, você está com puxado? Ave
Maria, será que isso pega?
      Aline, enraivecida, respondeu irritada:
     - Deixe de ser lesa! Que puxado, que nada? Estou
com uma crise de asma alérgica.
As outras colegas havia se aproximado e
cercavam, receosas, a pequena enferma. Denise
continuou insistente:
      - É não, isso é puxado. Eu vi o menino de Bau
Amaro lá em Estivas, impando desse mesmo jeito, e era
puxado.
       E a menina foi se irritando mais ainda.
       - Vamos perguntar a mamãe?
        Nesse momento, Maria Andrade ia passando.
Aline, cada vez mais brava, gritou:
       - Oh, Neném, isso que eu tenho não é uma asma
alérgica?
     E Maria Andrade, sem dar muita atenção,
abanando a saia, respondeu:
      - Sei lá, Aline, é uma dessas coisas mesmo. Mas
você devia era estar dentro de casa agasalhada por
causa da frieza. Entre logo, vamos.
       - Oh, Dapaz ...
       Aline vestiu um agasalho e teimosa como ela só,
ainda voltou para a prosa. O assunto da noite foi a briga
do padre.
       O vigário da paróquia de origem holandesa fora
avisado de que dona Serafina, uma viúva muito devota e
membro do apostolado da oração, estava se ultimando.
Decidiu, então, fazer uma visita à enferma para confessá-
la e dar a santa extrema unção. Seus familiares eram
evangélicos. Na porta da residência da enferma foi
barrado pelos parentes da moribunda que não queriam
sua presença. O reverendo muito bravo e muito
revoltado e com a rudez flamenga à flor da pele, não
teve a menor dúvida; saiu empurrando todo mundo que
estava em sua frente, chegou até o quarto da
agonizante e, mui calmamente, fez sua orações. As
meninas comentavam com orgulho a atitude do padre.
       De repente, duas das meninas do grupo
começaram a cochichar e rir o que chamou a atenção
do restante do grupo.
     - Que cochicho é esse? Grande              falta de
educação, reclamou Aline.
         - Você não pode saber, Aline, é muito criança
ainda.
        - Essa não, apartou Ana Maria tomando as dores.
O que? Aline não tem nada de criança, ele é muito
inteligente e sabida.
       - Depois de muita adulação ficaram sabendo que
uma das garotas mais velhas do cochichado havia “sido
moça” recentemente. Foi uma festa, todo mundo queria
saber os mínimos detalhes do acontecimento. Mas nem
todas concordaram com aquele tipo de conversa.
       - Ave Maria, isso é conversa de moça direita,
minha gente. Já pensou se a chefe da cruzada sabe que
vocês estão falando disso? Não quero nem pensar...
       Muitas vezes a brincadeira se estendia até depois
das nove, quando as pequenas infantes começavam a
retornar a seus lares, pois às 22 horas em ponto, Corinto,
encarregado do motor que fornecia energia elétrica
para a cidade, dava o sinal, fazendo as lâmpadas
piscarem três vezes e, em seguida, as luzes eram
desligadas.
      Vinte e duas e trinta, luzes apagadas, grilos e
sapos se orquestrando, a província se entregava aos
braços de Morfeu. Durante a noite, o máximo que podia
acontecer, era alguma moçoila noiva ou comprometida,
ser roubada pelo pretendente, evitando, com essa fuga,
as despesas do casamento.
        E nessa tranqüilidade paradisíaca, o ano
transcorria e chegava o mês de dezembro com seus
festejos natalinos e folclóricos. O pastoril religioso era um
deles. Era um acontecimento que movimentava toda a
comunidade provinciana. Papais e mamães torciam
para que suas filhas pequenas fossem escolhidas para
fazer parte do evento organizado por algumas jovens e
senhoras da comunidade católica. Afinal, tudo tinha de
sair perfeito para as pessoas que participavam e torciam
pelo “encarnado” ou “azul”, comprassem muitos lacinhos
de fita de sua cor preferida para ajudar a vencer o
cordão escolhido, no qual, normalmente dançava uma
de suas filhas. A renda era destinada as obras paroquiais.
         Usando vestidos confeccionados de papel
crepon, saias rodadas, muita areia prateada ornando as
orlas dos babados franzidos e fitas da cor do partido que
enfeitavam a indumentária. Os pandeiros, enfeitados de
fitas das duas cores, ajudavam a marcar o ritmo da
dança. Era uma trabalheira a sua confecção. As
senhoras Belisa Rolin, Sônia Dantas, Salete Coelho e
Dasdores, entre outras, eram as encarregadas do evento
folclórico.
       Rômulo Barbosa, sempre no comando da
animação, fazia a platéia ir ao delírio aos gritos de: azul,
azul, azul, ou encarnado, encarnado, ou o taxativo já
ganhou. Era um verdadeiro leilão de venda de lacinhos,
para a alegria geral das pastorinhas.
      A pequena Aline já chegando aos oito anos foi
convidada para fazer parte do tradicional festejo. Pela
sua estatura “mignon”, e para que se cumprisse a
previsão de seu João Severo no dia de seu nascimento,
ela deveria ficar balançando as asinhas em volta das
pastoras, no papel da borboleta.
        No dia da reunião para escolha das pastoras e do
personagem de cada uma no evento, o papel da
borboleta ficou para ela, claro. Pelo seu tipo, sua altura,
ia ser a borboleta mais qualificada dos últimos tempos.
       Mas, de personalidade forte que tinha, já desde
criança, a menina embirrou, emperrou fez ver que só se
apresentaria se lhe dessem o papel da “mestra”.
Nenhuma das promotoras do pastoril conseguia
convencê-la do contrário. A reunião parou e ninguém
sabia o que fazer.
       Dasdores Teixeira, com muita calma e delicadeza,
tentou convencer a pequena pastorinha:
        - Olhe, Aline, você vai ficar uma gracinha de
borboleta. A saia franzidinha, as asinhas douradas e as
sapatilhas também. Já pensou, Dapaz vai lhe achar linda.
Ainda vamos colocar uma coroa de pedrinhas em sua
cabeça. Vai ficar parecendo uma rainha, não é
meninas?
       E as outras pastorinhas responderam em coro:
       - É, dona Dasdores.
       A essa altura ela já tinha se levantado, ido para
frente do grupo com passadas largas, firmes e
determinadas e com uma das mãos na cintura e o dedo
da outra mão apontando para as senhoras, bateu o pé e
falou em tom decidido e definitivo:
- De jeito nenhum, se eu não for a mestra, não
danço, pronto! Podem arranjar outra borboleta que eu
estou indo embora.
       E a baixinha deu dois sopapinhos na cabeça,
ajeitou o franzido da saia e encarou as organizadoras
uma a uma. Em seguida, deu meia volta, apanhou seu
chale minúsculo e caminhou em direção à saída do
salão paroquial.
       Dona Sônia Dantas tentou argumentar, mas
quando sentiu o olhar de desafio da quase borboleta,
calou-se e comentou baixinho:
        - É melhor não insistir, Dasdores, deixa ela ser a
mestra e Denise fica sendo a borboleta. E agora, quem
vai avisar a ela?
       E Dasdores saiu apressada alcançando a menina
que já estava passando ao lado do bilhar de seu Aristeu.
      - Oh, Aline, um momento, por favor, exclamou
Dasdores.
       Ela virou-se e já se sentiu vencedora.
      - Escute, Aline, o pessoal resolveu que você vai ser
a borboleta. Vamos voltar para o salão e agradeça a
dona Sônia, pois foi ela quem decidiu.
        O que? Eu mesma não. Ela queria que a mestra
fosse a filha de dona Minervina. Só porque ela é maior do
que eu e já tem busto, é? Grande coisa, eu sou pequena,
mas canto muito melhor do que ela.
          E assim ela voltou para o salão e terminou de
assistir a reunião.
       Na volta para casa, uma das colegas falou, tu é
peia, não é, Aline? Consegue tudo que quer...
Pois é, e você acha que ia ficar balançando
asinhas pra lá e pra cá, eu mesma não. Está pensando
que eu sou zig-zag, é? Ora, pinóia!
       E nos primeiros dias de dezembro, depois de
muitos ensaios, o pastoril começou a se apresentar no
palanque construído em frente ao salão paroquial.
       E lá se foi Aline triunfante, puxando o cordão
encarnado. O seu fã clube era imenso. Vinha até
torcedores da vizinha Caracituba. Seu padrinho João Ito
e o jovem Luiz Jacinto. Maria Andrade, a mamãe Dapaz
e Mery eram do mesmo modo, torcedoras exaltadas, sem
contar dona Bernadete Silva, sua professora. Denise
Fontes foi por muito tempo, a detentora das asinhas da
borboleta. E quando a apresentação começava e
chegava a vez da mestra, a voz da menina ecoava pela
praça:
      Boa noite meu senhores todos,
      Boa noite senhoras também,
      Somos pastoras, pastorinhas belas
      Que alegremente vamos a Belém.
      Somos pastoras, pastorinhas belas
      Que alegremente vamos a Belém.

      Sou a mestra do cordão encarnado,
      O meu cordão eu sei dominar,
      Eu peço palmas, peço bis e flores
      Aos partidários peço proteção.
      Eu peço palmas, peço bis e flores
      Aos partidários, peço proteção.

      - Mas a mestra canta demais, comentava Maria
Joaquina. É verdade, a filha de dona Dapaz canta que
nem um passarinho, comentou Durrei.
E a festa prosseguia noite afora até o final da
apresentação, com muitos gritos e palmas dos partidários
do cordão azul e do cordão encarnado.
        Depois, a troca de roupa, os parabéns e a alegria
dos familiares e amigos e a “mestra” mal cabia em si de
contente. Estava bestinha, não tirava o sorriso da boca e,
de vez em quando, davas umas piscadinhas mais
agitadas.
        O vigário apareceu e dona Belisa passou para ele
a renda da noite. Tinham conseguido vender muitos
lacinhos.
        Dasdores havia preparado um lanche e lá se
foram os participantes do show tomar guaraná Fratelli
Vita com sanduíches de pão com carne enlatada e
bolinhos de bacia.
        Era uma alegria só. Cada uma que de se exibisse
mais. E a mestra já se imaginava, no próximo ano, indo se
apresentar na usina Nossa Senhora do Carmo e em
Bonfim.
- Capítulo 3 -


     A PRIMEIRA INFÂNCIA E SEU “DÉBUT” CATÓLICO


       Os primeiros anos da infância da mini “ninha”
foram dentro da normalidade. Ela havia perdido o pai, J.
L., quando tinha dois anos de idade. A mamãe Dapaz foi
uma grande guerreira e batalhou muito para criar e
educar as duas manas. Trabalhou no comércio e depois
foi contratada pela Secretaria de Educação para prestar
serviços no Grupo Dom Luiz de Brito.
       As festinhas de aniversário ficavam restritas aos
primos e amiguinhos mais próximos da família, sem muita
badalação. Mesmo depois de um dia de trabalho na loja
de tecidos e miudezas “A Borboleta”, Dapaz ainda
encontrava tempo para ensinar as primeiras letras às
duas meninas. Aline, aos quatro anos de idade, já havia
aprendido a ler as primeiras palavras e, mais tarde,
quando se matriculou no Grupo Escolar para estudar a
primeira série primária com a professora Maria Bernadete
da Silva, já estava alfabetizada. Ela idolatrava a mestra.
Ainda hoje, ela lembra a fragrância do perfume usado
por ela. Olha a profecia de sinhá Fronina se realizando.
        Dona Bernadete era de Caruaru. Uma jovem de
pele clara, olhos esverdeados, cabelos encaracolados,
extremamente paciente e dedicada aos alunos. Ela era
hóspede de Hotel de Seu Corocochô, que ficava
localizado no local onde, hoje, existe o supermercado da
Praça Pereira de Araújo. Lembro da professora, pois eu
estudava na mesma turma.
Naquela época, o sonho de muitas famílias
católicas era ter um padre ou uma freira na família.
Aqueles que não conseguiam tal “benção”, ficavam
conformados com a “dádiva dos céus”, se uma de suas
filhas pequenas pudessem participar da coroação de
Nossa Senhora no último dia do mês maio.
         Aos oito anos de idade, como filha de toda boa
família cristã, a ainda pequenina Aline, foi convidada
pelo vigário para coroar Nossa Senhora, naquele
inesquecível dia 31 de maio. Ela era detentora das
características exigidas pela tradição da igreja e possuía
o perfil perfeito para colocar a coroa sobre a cabeça da
Virgem. Cor branca, cabelos claros, e voz maviosa. Na
época, ninguém deu muita atenção ao fato, mas nunca
uma menina de cor “morena” ou afro-descendente
legítima, foi escolhida para coroar a santa. Preconceito?
Não, apenas “tradição” da igreja. Os anjos do céu
tinham a pele branca desde a criação.
         E assim, a borboletinha foi escolhida para
participar daquele evento tão disputado pelas meninas
de sua idade. Seria o seu “début” católico na sociedade
infantil da Igreja.
       O ato litúrgico exigia toda uma preparação. Ela
foi auxiliada por Santinha Silveira, responsável pela
Cruzada Eucarística e com o assessoramento da
professora Belisa Rolin, Sabina Andrade, do Apostolado
da Oração, da professora Dasdores Teixeira e de Maria
Joaquina.
       Os noiteiros, famílias encarregadas da decoração
da igreja e da organização geral da festa do
encerramento do mês de maio, eram: seu Raul e dona
Lourdes do engenho Riachão do Sul; seu Bequinho do
engenho Sete Ranchos e a família de seu Luiz Dubeux da
Usina Bonfim. Já à tarde, a pequena coroante e demais
colegas de solenidade, após participar do ensaio final
com o coro, ajudavam na decoração do altar,
fabricando buchas de papoula para a incrustação de
cravos e céssias em forma de meias guirlandas que eram
colocadas em todos os recantos da matriz. Os castiçais
eram polidos e longos brandões de espermacete neles
colocados. Feita a limpeza final da igreja, espalhavam-se
folhas de canela e eucalipto pelo chão para que o
ambiente ficasse naturalmente aromatizado.
        solenidade religiosa era preparada com bastante
antecedência, desde o ensaio dos cânticos até o da
coroação propriamente dita. No coro da igreja, os hinos,
cantados em latim, estavam sob o comando da
organista Ivone Oliveira que era coadjuvada pelas
cantoras Teresinha, Dos Anjos, Agenilda e Quiterinha,
entre outras. Na ocasião, encontrava-se na cidade um
missionário alemão, responsável pela celebração da
solenidade, enquanto o cura local, Padre José,
acompanhava os cânticos com o violino.
       O altar de nossa senhora fartamente decorado de
branco e azul, reunia um verdadeiro séquito de acólitos,
solenemente paramentados de vermelho, com seus
roquetes impecavelmente brancos, além de uma dúzia
de anjinhos espalhados por toda parte. Integrava a corte
de celeste: Ana Maria, irmã da coroante, Denise Fontes,
Cleide da Borboleta, Eleuses Vasconcelos, Neném de seu
Belmiro, entre outras. E após a ladainha, o magnificat e a
coroação propriamente dita.
       A pequena “anjinha” trajando uma túnica longa
de laquê branco, ornada de galões dourados; portando
um par de asas brancas nas costas e uma coroa de flores
claras na cabeça, um pouco de carmim nas bochechas
e uma leve sombra de batom nos lábios era elevada
delicadamente por um dos fiéis e colocada no suporte
que ficava ao lado da santa. A mamãe, do lado de
baixo do suporte, olhava ansiosa e repetidamente para
cima, receosa de que a garotinha pudesse escorregar.
Silêncio sepulcral no adro da matriz. O missionário
teutônico elevava a voz de barítono e dizia:
      - Caríssimos irmaos, agôra vamos iniciarr a
coroaçon de Nôssa Senhôra.
        Do alto do coro, a organista dedilhava uns
acordes da melodia na velha sarafina e o público,
atento, dirigia os olhares para o altar da virgem. O coro
iniciava a solenidade, cantando a primeira estrofe da
conhecida música. Aí, então, a pequena cantora com
voz um pouco tímida, mas bastante firme cantava a
segunda:
       “Virgem recebe esta coroa,
       Que te oferece o nosso amor,
       Seja do céu, ó mãe tão boa,
       Pra todo nós feliz penhor”.

       O coro apresentava a segunda estrofe e a
garotinha prosseguia com a última parte, desta vez, já
bastante desenvolta e dona da situação:
       “Aceitai esta coroa,
       Virgem santa mãe querida,
       Para que seja a rainha.
       O penhor de eterna vida.”

       Ao tempo em que entoava os versos do hino, sua
mão direita ia aos poucos erguendo a coroa de Nossa
Senhora até a mesma ser depositada sobre a cabeça da
santa. Naquele momento, o vigário bradava vivas à
santa, a São José, à igreja, ao papa, etc.
A essa altura, a coroante já havia concluído sua
missão, e estava sendo conduzida para baixo do suporte,
quando se ouviu um grito:
      - Cuidado com o “barandão”! Vai queimar a asa
do anjo! Era a voz aflita e estridente de Maria Joaquina,
uma beata, membro da Pia União das Filhas de Maria,
       Mas nada de mais grave aconteceu. A asinha da
coroante foi levemente chamuscada pela chama de um
brandão, no momento em que seu José Fiel trazia a
menina para baixo. Todos respiraram aliviados,
principalmente a mamãe que ainda olhou apreensiva
para a asinha atingida pela chama.
      - Cadê meus óculos? Não estou enxergando
nada. Questionou a menina.
       - Está aqui, Aline, apressou-se a mãe.
       E a coroante, já refeita do susto, colocou os óculos
de armação estilo olho de gato e foi cercada por todo
um    pelotão    de    coleguinhas aladas,        que    se
acotovelaram, hilariantes, barulhentas e quase histéricas
em torno da pequena “star”, elogiando sua atuação.
Muitas delas já fazendo planos para ser a sucessora da
coroante no próximo ano. Frei Johann Werner, o
celebrante, olhava de lado para os anjos e meio
impaciente repetia:
        - Silência, meninos, a coroaçon ainda non acabar,
silência!
        Naquele instante, o vigário parou o solo de violino
e do alto do coro bateu palmas três vezes com força e
sibilou aquele conhecido:
A borboleta que dançou de mestra
A borboleta que dançou de mestra
A borboleta que dançou de mestra
A borboleta que dançou de mestra
A borboleta que dançou de mestra
A borboleta que dançou de mestra
A borboleta que dançou de mestra
A borboleta que dançou de mestra
A borboleta que dançou de mestra
A borboleta que dançou de mestra
A borboleta que dançou de mestra
A borboleta que dançou de mestra
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A borboleta que dançou de mestra
A borboleta que dançou de mestra
A borboleta que dançou de mestra
A borboleta que dançou de mestra
A borboleta que dançou de mestra

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  • 1. - Capítulo X – A VISITA DOS OFICIAIS E AS CALCINHAS NAS PRAÇAS No início da década de 1950, a prefeitura era governada por Sebastião Gomes de Andrade. Um de seus filhos, José Mário de Andrade, acadêmico de direito, movimentava muito a vida social da cidade. Fundou, na cidade, num Centro Social que, além de atividades esportivas e culturais, oferecia cursos de corte e costura, bordado e arte-culinária. José Mário, quando estava matriculado no Centro de Preparação de Oficiais da Reserva – CPOR de Recife, convidou sua turma do quartel para uma visita a Amaraji. Foi um domingo de muita movimentação na pequena cidade. Os jovens passearam pela cidade e interagiram com a juventude local, de modo especial, com as moçoilas solteiras, que nunca tinham deparado com tantos mancebos bem apessoados de uma só vez. O público feminino foi ao delírio. Dona Maria Alice, a esposa do prefeito e mãe do jovem Zé Mário, reuniu um grupo de amigas para ajuda-la a preparar em sua residência, um lauto banquete para recepcionar os jovens oficiais. À tarde, houve uma partida de futebol entre os visitantes e o time da cidade que tinha o reforço de dois jogadores vindos da usina Bonfim. O jogo foi muito animado e Amaraji venceu os oficiais por 2x1. O primeiro gol foi marcado com um chute do meio de campo por “Gogó Inglês”, jogador da usina
  • 2. Bonfim e o segundo, por outro jogador. Gol de bicicleta. A torcida foi ao delírio. Os oficiais do CPOR namoraram muitas moçoilas da cidade. Só se via os casais passeando rua acima rua abaixo. Parecia até que cupido havia se abancado sobre o pavilhão e atirado flechas em todas as direções. O ápice da festa aconteceu a partir das 20 horas na Rádio Educadora, local onde eram realizados os grandes bailes. A orquestra banda acadêmica da Usina Pedroza foi contratada para a tocada daquela noite. Em torno de sete e trinta da noite, começaram a chegar as jovens da cidade num verdadeiro desfile de modelos copiados dos, de penteados tirados da revista manequim e exalando diferentes fragrâncias pelo ar: sorrisos de granada, marajoara, royal briar, etc. Algumas até ostentavam alguma joia emprestada da mãe. Os jovens oficiais, aos poucos iam saindo do hotel e da casa do prefeito e se dirigindo ao local do baile. Aline e suas amigas, de domingueiras novas, já passeavam pelo pavilhão e pela frente da rádio educadora, todas ansiosas pelo início do baile. Nenhum delas ia poder participar da festa, pois o juiz da cidade proibia a entrada de menores de dezoito anos em bailes. O máximo que poderiam fazer ficar no “sereno”, ou seja, dar uma olhadinha pelas janelas do clube, local que geralmente ficava cheios de olheiros. Ás vinte horas, o maestro levantou a batuta e a Jazz Band Acadêmica tocou os acordes iniciais e enveredou pelos ritmos caribenhos, muito em voga na época. A primeira música foi o mambo nº 5. A animação foi se implantando no salão e os visitantes da capital, todos muito à vontade, começaram a convidar as moças para a primeira dança.
  • 3. Algumas delas, já veteranas dos bailes davam verdadeiro show. Alguns cavaleiros, bastante avançados para a época, enlaçavam as damas pela cintura fina, rostos colados, rodopiavam eroticamente pelo salão. Algumas damas “davam corte” nos cavaleiros, alegando que não sabiam dançar ou que o pai não deixava e passaram a noite tomando chá de parede, uma vez que não havia cadeiras para todos. Havia mais cavaleiros que damas e as que dançavam bem eram disputadas pelos dançarinos. Do lado de fora da rádio educadora, a turma do sereno, boquiaberta, olhos arregalados, mal tinha palavras para conter o espanto. Nunca tinham visto uma dança tão indecente daquelas. Dona Zefinha, a parteira, tinha saído do velório de seu Gonçalo Bastos, resolveu subir os degraus do clube para dar uma olhada, quase desmaiou com o que viu. - Santo Cristo de Ipojuca, meu Padim Ciço do Juazêro, é o fim do mundo. Na rua do Fuá, as mulé da vida brinca com mai decença. E a puliça num vê isso não, é? Também, festa de rico, né! E saiu rápida se persignando. Seu Tota, o dono da banca de bicho, estava de boca aberta de tanto espanto e, dirigindo-se a seu Amaro do Bar do Beco, falou indignado: - Os pais dessas moças não devem ter vergonha nem brio. Como é que deixam suas filhas vir desacompanhadas para uma zona dessas. Nunca que ia deixar as minhas aparecerem por aqui. Olha aquela de vestido azul e “degote” grande. O macho chega imprensar ela na parede. E o delegado tá ali conversando e nem liga. Mas é uma falta de vergonha mesmo. Dona Benedita da Conceição vinha descendo da igreja com os dois filhos pequenos. Subiu os degraus da rádio e quando avistou a dança, voltou-se e gritou para os filhos:
  • 4. - Fiquem aí, meninos, vocês são inocentes, não podem ver uma derrota dessas! Minha Nossa Senhora! E dando meia volta, desceu os degraus apressada. Já era quase onze da noite, quando alguns pares começaram a sair discretamente do salão. A turma do sereno nem prestava atenção. Na rua já meio deserta, casais abraçadinhos passeavam, buscando sempre os lugares menos iluminados. Aos poucos o salão de baile foi ficando mais vazio e o pessoal do sereno foi abandonando seus postos. Afinal o dia seguinte era dia de trabalho. Quase duas da manhã, a banda tocou os últimos acordes e o baile terminou. Os que ainda estavam no salão aplaudiram e pediram bis, mas era mesmo o final da festa. Os casais de namorados passearam e aproveitaram bem a brisa da noite. Muitas jovens foram levadas de volta para suas casas pela madrugada. No dia seguinte às oito da manhã, os jovens estavam reunidos no pavilhão para iniciar o retorno pra Recife. Foram muitas as despedidas, as promessas de amor, de troca de correspondência ou de um retorno breve a Amaraji. As meninas choravam e logo eles foram se acomodando nos automóveis e a partida começou. Nem bem o último carro havia partido, um vigia noturno da cidade chegou correndo com uma vareta na mão e uma peça de algodão pendurada. - Mas o que é isso, seu Olegário, perguntou o jardineiro que começava a regar as plantas da praça. - Não tá vendo não? É uma calça de mulher.
  • 5. - Oxente, homem de Deus, mas o que é que o senhor tá fazendo com essa peça nesse pedaço de madeira? - Eu encontrei pendurada num pé de pau lá da Praça Sertaneja. Ainda tem umas duas lá. - E a multidão começou a olhar pela Praça do Pavilhão, quando alguém gritou: - Tem mais duas ali naquela árvore do lado da loja de Alaíde. E foi um corre-corre. A notícia logo se espalhou. As moças que estavam no pavilhão desapareceram. No grupo escolar, as oito em ponto, a sineta tocou e os alunos, em polvorosa com a novidade, entraram em suas salas. Ninguém se concentrava e o cochichado era geral. - Mas que saliência é essa de vocês? Perguntou a professora Rita. Mando já chamar Nely para ela dar um jeito nisso. Sabe o que é, Dona Rita, acharam umas caçola de mulé penduradas nas plantas da praça. Não é mentira não, eu vi quando o vigia chegou com uma delas, explicou Tião. A essa altura, a professora Ria, bastante corada e constrangida, retirou-se da classe e foi chamar a diretora, dona Nely Gomes de Sá. Esta chegou munida de uma sombrinha e uma palmatória e, aos gritos, foi especulando; - Quem é o moleque sem vergonha que está conversando estas pornografias na sala? Apareça logo, caso contrário, a classe toda vai ficar de castigo até às quatro da tarde.
  • 6. Nesse momento, dona Maria do Carmo entrou esbaforida na classe e falou em voz baixa ao ouvido da diretora, que saiu sem terminar de anunciar a punição. Acontece que em todas as turmas estava correndo a mesma notícia e os alunos estavam todos muito agitados. Lá no fundo da classe, Biuzinha comentava: - Ainda bem que eu não faço parte da sociedade chique, senão já estavam dizendo que a calça era minha. Deve ser de uma dessas aí que estavam no baile. Há! Há! Há! vejo gente santinha. Quando eu, brincando, falei que ia fugir com o palhaço do circo, todo mundo me criticou. Enquanto fazia seus comentários olhava, desafiadoramente, para as outras meninas da turma. Não é de nenhuma de vocês, não? E Aline, muito exaltada, gritou lá da frente: - Olha aqui, sua atrevida, nós não somos de “sua laia” não. Nós somos de família e a gente nem tem idade para entrar em bailes. Se você não parar com essas insinuações, vou falar com mamãe pra prestar queixa de você ao tenente Sabino na delegacia. - Vote, precisa isso tudo, menina, eu só tô comentando. Dona Rita voltou para a classe e, com dificuldade, conseguiu prosseguir a aula. A diretora, dona Nely, ainda entrou de classe em classe para passar uma tarefa extra que deveria ser entregue no dia seguinte. Todos, sem exceção, deveriam escrever cem vezes a frase: “Nunca mais trarei notícias pornográficas ou de boatos que correm pelas ruas da cidade para dentro de minha sala de aula”.
  • 7. - Os justos pagarão pelos pecadores, comentou a diretora enquanto escrevia a frase do castigo no quadro. E ai daqueles que não trouxerem a tarefa. Na cidade, o restante do dia e durante a semana o assunto não foi outro. No bilhar, na padaria, nas vendas e até na porta da igreja, o assunto era as calças encontradas. De quem seriam as peças? Algumas das namoradas deixadas pelos oficiais na cidade, ainda escreveram cartas para os amados, mas a correspondência voltou. O endereço estava incorreto. Outras ficaram, um longo tempo, esperando pela visita do amado ou por alguma notícia, mas nunca houve nenhuma comunicação. Com o passar do tempo, os namoros e promessas daquela noite foram esquecidos e as calcinhas também.
  • 8. - Capítulo 9 - VISITA DA INSPETORA ESCOLAR E A COMEMORAÇÃO DO DIA SETE DE SETEMBRO E a pequena Aline já não tão mini ia chegando aos doze anos, participando ativamente das atividades e eventos da província: igreja, escola, pastoril, shows, sketches, pequenas peças teatrais, etc. A essa altura, Maria Andrade já havia confeccionado um minúsculo corpete para a pré- adolescente. E ela muito satisfeita, ficava puxando e ajeitando, com frequência, as duas alças daquela peça íntima feminina que mais tarde evoluiu para “soutien”. A mãe das duas manas era funcionária do Grupo Escolar Dom Luiz de Brito, única escola pública da cidade, e lá estudavam também as duas meninas. O prédio, com dois pavimentos, fora adaptado de uma antiga cadeia pública e tomara o nome do primeiro arcebispo a visitar a cidade, Dom Luiz Raimundo da Silva Brito. Os dois maiores acontecimentos anuais da vida escolar eram a visita da inspetora da Secretaria de Educação, dona Hilda Brandão, e o desfile do dia da Independência do Brasil. A recepção para dona Hilda Brandão era preparada com bastante antecedência. Aprendiam-se trechos de poesias, pequenos discursos, cânticos, etc. Alunos e professores, vestidos impecavelmente, para
  • 9. receber e recepcionar a ilustre visitante. As meninas de blusa branca com o GEDLB bordado no bolso da blusa, saias de pregas azuis encobrindo, decentemente, os joelhos. Os meninos com camisas no mesmo estilo das blusas e calças curtas cobrindo os joelhos. Sapatos pretos e meias soquetes brancas para todos. No ar odores das mais variadas fragrâncias: Suspiros de Granada, Marajoara, Promessa ou Royal Briar, e muitas cabeças engorduradas de brilhantina Glostora. Algumas garotas mais crescida,s com as bochechas ligeiramente embranquecidas de po-de-arroz e uma sombrinha de rouge naná ou carmim. Havia até quem usasse um trancelim de ouro da mamãe comprado, a prazo, a dona Alice do Ouro. A festa era no salão grande do Grupo. Prédio limpo, cadeiras bem enfileiradas e aquela mesa grande com uma toalha verde de feltro e uma franja de pompons amarelos. No centro da mesa um arranjo floral bem caprichado. Depois que dona Nely fazia a saudação inicial e apresentava a inspetora, começava a sessão solene. Aline, claro, era uma das convocadas para falar em nome dos alunos. E lá ia a baixinha para frente da platéia. Farda impecável, as madeixas galegas presas por uma ligeira, faces ruborizadas e cabeça bem erguida. Subia num banquinho apropriado para os oradores mais baixos e começava a oração: - Ilma. Sra. professora Hilda Brandão, mui digna Inspetora da Secretaria de Educação do Estado de Pernambuco; Ilma. Sra. Nely Gomes de Sá, mui digna diretora do Grupo Escolar Dom Luiz de Brito; Ilmas. Sras. Professoras do corpo docente do Grupo....... etc.
  • 10. - “Que criancinha interessante”, comentava a inspetora. - De quem ela é filha, Nely? - “De Dapaz, nossa funcionária”, respondia a diretora. - Quantos anos ela tem? - Já completou doze. - Mas ele é tão pequerrucha. - “Ora, Hilda, nos menores vidros estão os melhores perfumes”, respondia com filosofismo a sábia dona Nely por trás de suas lentes de telescópio. E a reunião prosseguia. O calor aumentava, os alunos começavam a ficar impacientes. Dona Maria do Carmo a dar psius e psius. Dona Nely ajeitava os bendegós dos cabelos e passava rabos de olho para os alunos. Dona Hilda se abanava com o envelope das provas. Lá nos fundos Amaro Cavalcante fazia uma careta e puxava de leve os longos cachos de Leleu. Dona Nely viu e o encarou. Num das filas laterais, Airton Brito dava um cochilo. De repente, lá nos fundos da sala, um meio corre-core. Uma aluna que viera do sítio estava tendo uma oria. Dona Dapaz e Maria do Carmo levaram- na para a diretoria. Fizeram com ela cheirasse uma cédula de um cruzeiro e um pouco de álcool, além de um capucho de algodão queimado e ela foi se reanimando. A menina que se chamava Ernestina morava no engenho Sete Ranchos. Havia saído de casa muito cedo e não tomara café. Depois de um copo de leite morno ela voltou para a solenidade. Aline retornou ainda por duas vezes para banquinho a fim de declamar uma poesia e apresentar
  • 11. um sketch com Sônia Brito. Finalmente às 12:45 todos ficaram de pé para o hino nacional e a reunião foi encerrada. Organizados em fila, os alunos saíam para lanchar leite com toddy e biscoitos de maizena. Passada a emoção da visita de Dona Hilda Brandão, a inspetora escolar, chegou a Semana da Pátria. Os ensaios eram realizados no campo de futebol. Seu Luís Soldado dividia e organizava os pelotões e, com o auxílio de um apito ensinava o “ordinário, marche”, “alto”, “descansar”, “meia volta, volver”, “fora de forma”, etc. Era uma bagunça organizada. Os menores dos últimos pelotões a conversar e brincar, as professoras corriam de um lado para outro tentando acalmar a garotada e dona Nely, como sempre, passando olhares severos para os mais brincalhões. À frente do grupo a “meia banda marcial” composta de um surdo e um caixa, além de uma corneta. Depois de dar várias voltas pelo campo, lá pelas onze e meia a gente escutava o “atenção, alto” e, por fim, o “fora de forma”. A gritaria era grande, os alunos saindo em debandada em direção ao grupo para pegar o material escolar e voltar pra casa. O cansaço e a fome estavam matando a todos. Dona Nely, já rouca de tanto gritar e tentando botar ordem, desistiu e exclamou: - Deixa estar, amanhã eu acerto as contas com vocês! Chega afinal o dia sete. Às seis e meia, já havia muitos alunos postados na porta da escola. Foram chegando os professores, o restante dos estudantes, todos impecavelmente vestidos, e logo foram sendo organizados os pelotões. A ordem era a seguinte: a meia banda à frente, a bandeira do Brasil com duas alunas ao
  • 12. lado e um pelotão de meninos maiores. Depois a bandeira de Pernambuco, com dois meninos ao lado e um pelotão das meninas maiores. Depois ia alternando pelotões de meninos e meninas de acordo com o tamanho. Sete horas em ponto e todos a postos. Seu Luiz Soldado ainda correndo de um lado para outro, dava as últimas explicações sobre os comandos. - Lá vem Dona Nely, comentou um aluno. E a diretora que morava próximo à escola parou em frente aos alunos já formados e comentou irritada: - Mas o que é isto ao lado do lábaro nacional? São dois espantalhos? Quem mandou vocês se colocares aí? Biuzinha e Sebastiana, uma aluna que morava no engenho Guarani, haviam se colocado ao lado da bandeira do Brasil que era carregada por Rominho Ferraz. - Mas dona Nely, nós vai ser guarda-bandeira. Respondeu Biuzinha. A senhora todo ano só bota as rica. - Deixe de ser atrevida, moleca, onde estão os seus sapatos? De alpercatas, meias brancas e a blusa toda amassada desse jeito no desfile? Saiam daí as duas e vão para o final do último pelotão das meninas grandes. Devia deixar você presa na diretoria, sua desaforada! Tem muita graça, organizar um desfile bonito como esse e colocar na frente, ao lado da bandeira nacional, dois papa-figos! - Ô, Nieta, traga Aline e Neném de seu Belmiro para serem as guarda-bandeiras. Não foi isso que eu combinei? Após um prolongado apito de seu Luiz, a corneta dá o comando e o desfile, saindo da frente do grupo
  • 13. escolar, começa a marchar. Quando chegaram em frente à prefeitura já se encontravam perfiladas lá as escolas municipais e o Externato Cônego Aníbal Santos da professora Lourdes Barbosa. O prefeito e os vereadores, o juiz da comarca e o vigário da paróquia, além de outras autoridades, todos posicionados no interior do paço municipal. Após a abertura da solenidade pelo prefeito, dona Nely assumiu a apresentação da “hora de arte”. Discursos, cânticos, poesias em homenagem à pátria, etc. Aline, segurando a ponta da bandeira, dando piscadelas constantes, olhava e gesticulava impaciente para a professora Dasdores Teixeira. Esta, aproximou-se lentamente e perguntou baixinho: - O que é, Aline, está sentindo alguma coisa? - O que? Nada disso, vai terminar a cerimônia e eu não declamo minha poesia. Fui cortada da cerimônia, foi? - Ai meu Deus, vou olhar no programa. E Dasdores aproximando-se de dona Nely, falou alguma coisa em seu ouvido. A diretora olhou o papel da programação e reclamou alto: - É verdade, esqueceram de colocar o nome dela, no próximo ano vejam se programam a solenidade com mais competência. E tomando o microfone, falou: - Senhores e senhoras, por um imperdoável lapso de nossos professores não foi colocado no programa o nome de uma de nossas estudantes que deveria se apresentar nesta solenidade. Quero pedir desculpar e aproveitar para chamar a aluna Aline que vai apresentar uma poesia de Olavo Bilac.
  • 14. - E lá se foi Aline para a porta da prefeitura fazer sua performance. - Vou recitar A Pátria, de Olavo Bilac, exclamou a menina em voz alta. E iniciou: Ama, com fé e orgulho, a terra em que nasceste! Criança! não verás nenhum país como este! Olha que céu! que mar! que rios! que floresta! A Natureza, aqui, perpetuamente em festa, É um seio de mãe a transbordar carinhos. Vê que vida há no chão! vê que vida há nos . . . Terminada a apresentação, desceu das escadas sob os aplausos dos presente e, rindo e piscando de alegria, retomou o seu lugar ao lado da bandeira. No final do pelotão das meninas, Biuzinha comentava enraivecida: - Tem gente que nasce com uma estrela na testa, mas essa daí parece que nasceu com o céu todo. Nunca vi uma pessoa tão c . . . . . de sorte. Ela tem que tá em tudo nessa escola, na igreja. Vote! - Ora, Biuzinha, comentou Nevinha, você nunca vai ser parecida com ela. Não estuda, não aprende nada, só pensa em fugir com o palhaço do circo e, no dia que nem hoje, se apresenta num desmantelo desses. Que é que você pensa da vida’’? - Não me abuse, Nevinha, dou-lhe já uma mãozada pra você deixar de ser intrometida. Finda a solenidade, o desfile continuou pelas praças e ruas da cidade. O tempo estava meio nublado e quando a escola passava pela frente do mercado desabou aquele aguaceiro. Foi um corre-corre. Alunos se abrigando na igreja, ou se encostando nas paredes do
  • 15. mercado público. Passada a chuva, seu Luiz iniciou o “apitaço” para reunir novamente os alunos. Ninguém sabia mais o lugar coreto. Dona Nely mandou que fizessem a volta pela praça e retornassem ao grupo de qualquer maneira. Os alunos não marchavam estavam quase trotando de ladeira abaixo. Por fim chegaram ao prédio da escola. Foi servida uma merenda especial para todos. Bolos, bolachas e guaraná e gasosa enviadas pelo prefeito. Dona Rita, uma das professoras, reclamava: - Olha o estado em que ficou minha saia de linho. Toda amarrotada e molhada. Quando tirou um espelhinho da bolsa e se olhou, ficou horrorizada. Meu Deus, o baton e o rouge borraram meu rosto todo. E tratou logo de limpar um lenço. - E meu vestido de seda, exclamou a professora Bernadete, todo sujo de lama e molhado. Vai dar o maior trabalha pra dona Santa lavar e engomar. - Dona Nely de nada reclamava, mas estava toda molhada da chuva e os “bendengós” de seu penteados arriados na testa. - Lá num canto do salão, a aluna Ceça dos Santos estava em prantos. Na correria, perdera o cordão de ouro que a mãe havia lhe emprestado. Dona Dasdores aproximou-se e falou: - Não se preocupe Ceça, a gente coloca um anúncio na Rádio Educadora. Quem achar entrega em sua casa. Mas a menina não se conformava. Afinal a mãe ainda estava pagando as prestações do cordão de ouro.
  • 16. - Dona Nely bastante estressada, chamou a zeladora Maria do Carmo e disse: - Avise a Severina Biuzinha que no próximo dia de aula ela só entra no grupo, acompanhada da mãe. E assim terminou o desfile do dia sete. Os alunos foram deixando a escola e a diretora ainda ficou dando as ordens sobre a limpeza do prédio, sem falar que ainda reuniu os professores para reclamar de detalhes da organização do desfile e da hora de arte.
  • 17. - Capítulo 8 - O ANIVERSÁRIO DO FILHO DO COLETOR Naquele domingo as manas Aline e Ana Maria iriam a uma festa de aniversário de Carlos Alberto, filho de seu Lídio Leal do Barros, o coletor federal na cidade. Entre outras pessoas da cidade, dona Noêmia, a mãe do garoto havia convidado seus colegas de classe do grupo escolar. As duas irmãs e outras amigas convidadas para a festa estavam bastante animadas, apesar de que o aniversariante que estudava no D. Luís de Brito não era muito entrosado com nenhuma delas. Fazia pouco tempo que o coletor fora transferido para Amaraji. Maria Andrade estava costurando uma blusa nova para Aline e pediu pra que ela fosse ao comércio comprar alguns aviamentos para a costura. - Ô Aline, vá à loja de Geva e peça a Ivete ou Ivanise que mande um retroz branco, dois metros e meio de bico e meio metro de galão. Quero aprontar esta blusa com a manga de coco para você ir ao aniversário domingo. Se não encontrar lá, passe em Alcides ou João Barbosa. E lá subiu Aline, caminhando lentamente pela rua. Ela levava consigo um pequeno porta-níquel e estava disposta a fazer uma verdadeira farra com todas as guloseimas que tinha vontade de comer. Ia gastar uma parte do dinheirinho que ganhara de presente de sua Madrinha Lita. Dessa vez não ia ter ninguém por perto pra dizer o que engorda ou não engorda e o que faz mal ou
  • 18. não. Enquanto ia caminhando em direção o comércio, cantarolava, baixinho, a música do comercial do “fimatosan”. “Fimatosan, quando você crescer, Devolve o seu apetite, Afastando a bronquite, Fimatosan, sabor não tem, É o amigo que lhe convém. Fim... ma... to... san. E a menina passou em dona Toinha, mãe de Maria José e Santinha, e comprou um pirulito. Antes de começar a chupá-lo, retirou cuidadosamente o papel de seda, limpou bem o pirulito e, meio receosa, começou a dar umas lambidinhas. Mania de limpeza era com ela mesma. Parou na sorveteria de Deja e lá se foi um picolé de coco. Antes da esquina do bilhar, parou na vendinha de seu Eudóxio e comprou uma daquelas broas chamada de mata-fome. Ah, que delícia... Seguindo pelo comércio, a menina já muito curiosa a respeito do que estava acontecendo pelo mundo, parou na loja de Zé Mário de Lucy, deu boa tarde ao casal, e começou a dar uma folheada na revista O Cruzeiro. - Vai levar a revista, Aline? Perguntava Zé Mário. - Não, só estou dando uma olhadinha nas noticias da morte do presidente Getúlio Vargas. - Pode olhar à vontade! - Mas essa menina é muito viva, não é Lucy? - E então, Zé Mário, no mínimo vai ser uma doutora quando crescer (perdão), quando ficar mais adulta.
  • 19. E a menina continuava a viagem pela praça principal da cidade, na época chamada de Barão de Lucena. Na loja de dona Geva foi atendida por Ivete Victor. Depois de escolher os bicos, especular os preços e fazer muitas perguntas pediu pra ela embrulhar a mercadoria. Na volta pra casa, lembrou-se de dar uma passadinha ainda na farmácia de Dr. Bandeira. - Boa tarde, dona Valda, a senhora vai bem? - Boa tarde, Aline, vou bem. E a mamãe e Ana Maria? - Todos com saúde, obrigada! A senhora tem cachete pra dor de cabeça? - Tenho sim, vai levar instantina, veramon, coramina ou melhoral? - “Vou levar um envelope de instantina. Sim também vou levar um vidro de colubiasol para maninha pincelar a garganta. Bote na conta, tá certo?” Até logo, dona Valda! Lembranças a Márcio e Márcia”. E a menina começou a descer a rua principal. Depois da esquina do bilhar, ela atravessou a rua e foi dar uma olhada nos cartazes do cinema. Antes de atravessar a rua, avistou o vendedor de cavaco japonês e, é claro, só faltava aquela “iguaria” pra completar sua farra gastronômica daquela tarde. Comprou logo dois. E dirigiu-se ao cinema para olhar os cartazes. - Eita, exclamou baixinho, A Vida de Santa Maria Gorete. Dr. Jorge estava reprisando o filme. Vou dizer a Maninha, ela vai adorar assistir de novo.
  • 20. Em frente à prefeitura encontrou dona Sabina de Andrade e as duas trocaram algumas palavras sobre assuntos sacros. Dona Sabina estava apressada, pois ia enfeitar o altar do Coração de Jesus. Era a presidente do Apostolado. Mais adiante passou em frente à casa de Carlos Alberto, o aniversariante do próximo domingo, sentado no degrau do portão. Doida para puxar conversa com o garoto especular sobre a festa, perguntou: - Você entendeu o assunto do ponto de geografia que dona Bernadete explicou ontem? - Entendi, sim, respondeu o garoto. - E a coleção de borboletas de seu pai, tem muitos tipos novo? Sim, que horas vai começar a festa de seu aniversário? Vem muita gente de Recife? O garoto, porém, não estava a fim de muita conversa e mal respondia as perguntas. Por último, na esquina da praça do velho coreto, estava seu Corocochô sentado em sua cadeira de rodas na calçada. - Como vai, seu Corocochô? Muitos hóspedes no hotel? Dona Rita viajou ou está no quarto? Perguntas respondidas, a baixinha decidiu retornar ao solar. Eram quase seis horas, quando ela chegou em casa com as encomendas. Maria Andrade já havia estado na sua casa três vezes em busca das encomendas e, por último, sentou-se na cadeira de balanço abanando a saia. - Pronto, chegou a menina! Oh, Aline, fosse comprar as encomendas na loja de Geva ou lá em
  • 21. Caracituba? Já tava todo mundo preocupado com tua demora. Essa menina conversa demais Dapaz. Vou indo senão a blusa não vai ficar pronta na hora. Hora da ceia. Mamãe, Aline e Maninha sentadas à mesa e Mery servindo a refeição. - Ô, Mery, coloque o abafador sobre o bule, senão o café vai ficar frio, reclamou Aline. - Que é isso dentro da sopa? perguntou Ana. - Claro que é verdura picada, maninha, respondeu Aline. - Quero não, continuou Ana. - Que cavilação é essa, maninha? Você está muito luxenta, implicou Aline. - Vocês duas parem de arengar, reclamou Dapaz. - Cuidado, Mery, o abano está pegando fogo, gritou Aline. - E as três correram para o terraço da cozinha para apagar o pequeno incêndio. Agora foi a vez de Aline reclamar do leite. - Ô, Mery, quanta nata é essa dentro do leite? Não sabe que eu odeio nata?” Aí Dapaz irritou-se e falou: - Vocês duas ai, deixem de galizias! Acabem de cear e vão para a sala escutar o Programa da Vovozinha de Alcides Teixeira. Hoje tem sorteio de máquina de costura.”
  • 22. No sábado foram à missa e voltaram logo pra casa. Afinal tinham de preparar as roupas e sapatos para a festa de aniversário. Era uma expectativa geral. O presente Dapaz comprara na loja de seu Jorge da Borboleta. Uma caixa de sabonetes “Dorly”. Duas da tarde as pequenas já estavam saindo do banho e vestindo as roupas novas. E os sapatos? Mery havia levado para Seu João Engraxate e ela ainda não trouxera. O nervosismo já estava tomando conta de todos quando bateram à porta. Era um garoto trazendo os sapatos impecavelmente polidos. Alívio geral! Eu levo o presente, adiantou-se Aline. O nome das duas está no cartão, comentou Dapaz. E lá se foram as duas encontras outras colegas que estavam no Pavilhão. Cada uma que elogiasse mais a roupa da outra. Uma delas estava com o relógio de pulso da mãe emprestado. A curiosidade era geral. Ninguém nunca havia entrado na casa do coletor antes. Às quatro em ponto elas dirigiram-se a casa de Carlos Alberto que ficava logo na esquina da rua. O dono da casa estava no terraço e veio recebê-las com muita simpatia. - Entrem crianças, fiquem à vontade! Elas logo procuraram o aniversariante para entregar os presentes. A mãe de Carlos Alberto levou um grupo delas para o quarto do menino pra mostrar os presentes e os brinquedos dele. Nossa, era coisa demais. Ele havia recebido uma bicicleta, carros de cordas, livros de estória, meias, perfumes e sabonetes. Foram chegando os outros convidados da cidade, além de alguns parentes que tinham vindo de Recife. Seu Lídio colecionava borboletas e foi mostrar aos convidados os quadros cheios delas dispostos pelas
  • 23. paredes de seu escritório. Os pequenos convidados ficaram abismados. Que coincidência, “a borboleta” admirando uma coleção de lepidópteros. E ela foi logo pra frente do grupo conversar com o coletor. Este respondia a todas as indagações com calma e paciência. De lá dos fundos da sala, Biuzinha, bem desinteressada, comentava em voz baixa: - Que besteira, espetar um bocado de borboleta num quadro! Mas gente rica tem cada patim. Que graça tem isso? Vou encher as paredes da casa de mãe com um bocado de mariposa espetada num alfinete. Mariposa é o que mais tem lá quando nós acende os acoviteiro. Aline olhava pra trás procurando a origem daquele sussurro. E é claro, avistou logo a colega de classe, Biuzinha, comandando o mau gosto. - Essa daí não tem jeito mesmo, quanto mais freqüenta a escola, mais fica ignorante! Ela não quer estudar de forma alguma. Já falou mais de uma vez que só está aguardando o circo chegar à cidade, pra fugir com o palhaço. Deixa pra lá, vou fazer a cama dela com a professora Bernadete na próxima segunda. Mas a festa não parava. Uns brincavam de roda no terraço, outros de anel, e alguns procuravam conversar com os adultos, entre estes, a “borboleta”, claro. Hora do lanche. Cantaram o parabéns e dona Noêmia junto com alguns parentes da capital começaram a distribuir os pratinhos com os doces, salgados e o bolo do aniversário. Bandejas com copos de guaraná e gasosa passavam por entre os convidados.
  • 24. Num recanto da sala, Severina que já havia derramado um copo de guaraná no chão e molhado a barra de seu vestido, reclamava. - Oxente, é só esse tico de comer, é? Eu nem almocei direito pensando nesse lanche e agora e só ganho isso. Se eu soubesse nem tinha vindo pra essa pinóia. Gente rica sé tem farrambamba. Encera a casa, enche de jarro de flor, aprega borboleta nas parede e na hora de dá de comer é só um tico desse. Vote! Nem valeu a pena o copo de galalite que eu trouxe de presente pra ele. Vou já pra casa pedir pra mãe fazer um pirão de ovo pra mim. Tô com tanta fome que chega tá me dando uma gastura. E Severina, sem se despedir de ninguém, levantou- se da sala e foi embora. Os colegas ficaram abismados com a falta de estilo da menina. Quando ela ia passando pela porta de entrada esbarrou em Conceição e todos notaram alguns docinhos caindo do bolso de seu vestido. - Mas o que é isso, Severina? Perguntou Conceição. - Uns docinhos da festa que eu peguei. O que é que tem? Tem doce demais e eu tenho certeza que vai sobrar um tuia. Oxe! Os meninos lá de casa vão lamber os beiços de alegria. Sai da frente que eu já tô indo. - As colegas que notaram a cena ficaram vermelhas de vergonha e muito constrangidas. Mas, fazer o quê? - Quase seis da noite. Aos poucos, os convidados iam se retirando. Aline, Ana e as amigas mais próximas despediram-se dos anfitriões e do aniversariante e deixaram a festa. Caminharam para o pavilhão onde ficaram comentando a festa, a atitude de Severina, etc.
  • 25. Quando estavam nos comentários finais, chegou Zé Tião um colega delas que morava no engenho Bondade e que também estava na festa com o pacote de presente na mão. - Te esquecesse de entregar o presente, Zé Tião? Perguntou alguém. - Não, eu nem levei presente. Tinha uns quatro sabonete igual a esse lá na cama. Eu peguei um pra mim. O que é que tem? Pra que um corpo só com tanto sabonete? Lá em casa nos usa sabão em barra pra tomar banho. Agora vou ficar cheiroso com esse. E cala a boca, vocês! Tião saiu correndo de ladeira abaixo em direção à estrada do engenho. - As meninas ficaram chocadas. E se a dona da casa tivesse percebido? E se ela tivesse contado os presentes? Que vergonha! Alguém tinha de fazer alguma coisa, mas o quê? - É no que dá, quando a gente se junta com mundiça, comentou alguém do grupo. Outra dessas, nunca mais. Eu mesma não sou nenhuma soçaite, mas da próxima vez, se eu descobrir Severina vai estar presente, fico fora. E como não havia nada que pudessem fazer naquele momento, resolveram voltar pra suas casas. Naquela noite ainda tinham um compromisso. O filme da Vida de Santa Maria Gorete ninguém podia perder. Quem já havia assistido, ia vê-lo novamente e quem não o tinha visto ainda, esta era a oportunidade. Em ambos os casos, a história era tão comovente que todas iriam derramar rios de lágrimas de emoção.
  • 26. - Capítulo 7 - UM DOMINGO MUITO ANIMADO: A MISSA, A FEIRA E O CIRCO. Pela manhã, logo às oito horas, Aline e Maninha já estavam paramentadas de branco, com as fitas amarelas da associação, o Adoremus e o Cecília nas mãos para comparecer à missa da Cruzada Eucarística. No bolso, a notinha de cinco mil reis, pois era dia de reunião da santa associação. - Vamos, Maninha, vê se anda mais depressa. Padre José vai terminar reclamando, irritou-se a menina. Chegando à igreja, ocuparam os assentos da frente na fileira de bancas reservada para os membros da cruzada e como a garota já era apóstolo, isto é, usou um assento ainda mais privilegiado. Além desse destaque, Aline usava uma fita mais larga com desenhos de das armas do Vaticano encrustados nela e colocada em diagonal. Os poucos que usavam aquele tipo de fita eram mais graduados dentro da associação de crianças e jovens. A igreja estava repleta de fiéis. Algumas senhoras de engenho e outras damas da elite ocupavam seus geniflexórios particulares que ficavam entre os bancos e as colunas do templo. Os homens se aglomeravam na área de entrada da sacristia e no lado oposto. Seu José Fiel nunca dispensou a fita vermelha do Sagrado Coração.
  • 27. A missa, celebrada em latim, transcorria em ritmo de piedade cristã, sob um silêncio profundo e no rigor total da liturgia. O cura de origem teutônica, aspecto sisudo e voz grave, dominava a platéia de fiéis através de suas grossas lentes. Ai de quem se atrevesse a cochichar ou tirar a atenção de algum fiel do andamento da cerimônia. O reverendo fitava o perturbador por algumas dezenas de segundos e o constrangimento era geral. E se a perturbação, por menor que fosse, continuasse, aí sim, vinham os gritos seguidos da expulsão do(a) indesejável do templo. Numa ocasião, em meados do outono, em plena missa das nove horas do domingo, caiu uma forte chuvada e algumas dezenas de pessoas, homens em sua maioria, que conversavam no Pé-do-Santo, correram para dentro da igreja e ficaram acotovelados na entrada principal, abrigando-se dos respingos. O reverendo, notando a movimentação vira-se para trás e grita para os recém-chegados: - “Isto aqui não é um guarda-chuva, é uma igreja. Retirem-se imediatamente”. Aguardou que os biguzeiros se retirassem e continuou a cerimônia. A criançada participava da comunhão e depois de uma hora de culto ouvia-se o “Ite, missa est”, que significava o final da cerimonia. O padre retornava para a sacristia e voltava dentro de poucos minutos para presidir a reunião. Aline lia a ata e anotava os assuntos do dia para serem colocados no próximo relatório. Cantava-se, rezava-se e, aos poucos, o pessoal ia ficando com fome. Uma hora depois os cura abençoava os pequenos cruzados e retirava-se da reunião. Os participantes iam saindo das
  • 28. bancas em fila ordenada, flexionavam o joelho direito e retiravam-se da igreja. Depois de cumprida a obrigação, voltavam para casa para o café da manhã e logo corriam para a feira. Era uma alegria geral. Passear de banco em banco apreciando as mercadorias e as novidades. Tomavam gelada de morango, caldo de cana com pão doce em seu Otávio; passavam por seu Pontual para verem as pessoas serem “curadas de cobra”; havia outro que aplicada choque de bateria elétrica com alguma finalidade terapêutica, etc. Experimentavam os óculos de grau, ou se deleitavam cheirando as diversas fragrâncias utilizadas nas vaselinas para cabelos. Bom mesmo eram as novidades da capital: pulseiras de alumínio dourado, de galalite, ligeiras largas para segurar os cabelos, diademas, brincos, etc. Os trocados que cada um levava eram mesmo gastos com as saborosas cocadas, cavacos japonês, pitombas, ingás, chupetas de açúcar e pirulitos. Aline não se conformava se não degustasse um daqueles inusitados pãezinhos doces que tinham um formato de jacaré. A feira se estendia até às 13:00 h do domingo. Uma ocasião, quando passavam nas imediações do banco de dona Maria Morais, Aline queixou-se da lente dos óculos. Segundo ela, estavam ficando fracas. Lourdes Alves que acompanhava o grupo logo achou uma solução. - Vem cá, Aline, experimenta um desses óculos do banco de dona Maria. - Tá abiscoitada é, meu caso tem que ser em Recife e com Dr. Altino Ventura.
  • 29. Na volta ainda ficavam um tempo sentadas no “pavilhão”, apreciando os cabriolets que chegavam ou voltavam para os engenhos, carregando os senhores e senhoras de engenho que tinham vindo para a missa dominical e a feira. Uma delas comentou empolgada: - Olha o rapaz que vai dirigindo o cabriolet como é simpático, Aline! - Pronto, menina aquilo é somente o boleeiro, o dono do engenho é o que vai no assento traseiro. Era um verdadeiro desfile de charretes e cabriolets. Seu Eugênio e Dona Julieta de Animoso, seu Raul e dona Lourdes de Riachão do Sul, dona Laura e os filhos, proprietários do engenho Refrigério, seu Antônio Cadete, de Amaraji d´Água, seu Horácio Esteves e dona Conceição de Raiz de Dentro, seu Amaro Ferreira e dona Nely de Guloso, entre outros. Era pouco mais de meio-dia quando todas decidiram retornar as suas casas para o almoço. Afinal o circo estava na cidade e à noite todo mundo iria assistir a função. A tarde passou rápido. Jantaram cedinho e às sete horas as garotas acompanhadas de algum adulto começaram a se encontrar na praça do coreto. Ia ser uma grande apresentação. Estariam se apresentando no circo nada mais nada menos que a loura Suely Monteiro, famosa rumbeira e artista circense, a cantora romântica, Conchita Moreno e o famoso trapezista Wilson Wayne. Era um delírio. O circo era armado no pátio em frente ao cemitério. Tinha somente meia coberta na parte em que se apresentariam os artistas. E do lado de fora em frente
  • 30. à minúscula bilheteria lá se postava a turminha na fila para a compra dos ingressos: Aline, Maninha, Denise segurando a pequena Leda pela mão, Lourdes e José Alves, e um grupo de amigos. Ingressos comprados todos se dirigiram para a geral do circo, chamada carinhosamente de “poleiro”. Os vendedores de confeitos, chicletes, amendoim e cavaco japonês disputavam os fregueses. De repente a bandinha do circo começa a tocar e o apresentador aparece em frente às cortinas anunciando o início da função. Mágicos, macacos amestrados, trapezista, equilibrista e, é claro, os engraçados palhaços. Finalmente o mais esperado da noite. Senhores e senhoras, o circo Arcoiris Dourado tem a prazer de apresentar, vinda diretamente de Rio de Janeiro, a grande cantora Conchita Moreno. Aplausos estrondosos. Abria-se a cortina e aparecia a cantora trajando um longo preto tomara-que-caia com corte nas laterais da saia e latejolas brilhantes sobre colo. Maquiagem carregada e cabelos penteados com um coque no estilo ninho de passarinho brilhante de laquê. O pequeno conjunto dava um solo e sua voz maviosa elevava-se ao ar: “Ai mouraria, da velha rua da palma, onde eu um dia, deixei presa a minha alma, sabor que o vento, como um lamento trouxe comigo E que ainda agora, a toda a hora trago comigo E as vozes femininas faziam coro com a cantora na hora do refrão: “Ai, mouraria, dos roxinois dos beirais Dos vestidos cor de rosa
  • 31. Dos serões tradicionais Finda a apresentação, aplausos, vaias e gritinhos histéricos. Os vendedores de gulozeimas acotovelavam- se pelas tábuas dos poleiros alardeando seus produtos e disputando seus fregueses. - Olha o midubim, torrado e cozinhado. Olha o confeito, chiclete e o nego bom. O grupo de amigas ocupava a parte mais alta das arquibancadas. Como o dinheiro de todo mundo era meio curto, se contentavam com um ou outro pacote de amendoim. De repente, Severina, aluna do grupo passa lá em baixo e grita: - Ô Aline, Wilson Wayne quer falar contigo. - Quem? - O trapezista, mulé. Ele tava perguntando teu nome. Acho que ele tá querendo tirar umas linhas contigo. Que é que eu respondo? Ele prometeu uns ingressos do circo pra tu e tuas amigas. Decide logo, visse! Tem um bocado de meninas a fim de namorar com ele. - Aceita, Aline, tu namora com ele e a gente vem junto contigo pro circo, pra gastar os ingressos que tu vai ganhar, comentou Marilene. - Mas é nada, respondeu a baixinha vermelha e irritada. Fique com ele pra você, sua idiota. Tá pensando o quê, que eu já estou ficando no caritó, é? Leva ele pra tua tia Julieta que já é vitalina há muito tempo. Sou muito nova ainda. Vocês acham mesmo que eu vou me formar
  • 32. pra andar com o circo, é? Tem muita graça! Vou já embora pra casa! - Calma, Aline, foi só uma brincadeira de Severina. Você não sabe que ela é meio doida e muito desbocada! E o apresentador continuava: - Senhores e senhoras, agora o momento de suspense. O grande trapezista Wilson Wayne vai voar sobre a platéia. E ao som da bandinha, o artista subia até o trapézio e começava sua apresentação. As pessoas olhavam para cima com um misto de temor e admiração. Será que ele não ia despencar daquele balanço? E lá de baixo, próximo ao picadeiro, Severina, rindo, acenava pra Aline e apontava para o trapezista. - Eita, menina chata da murrinha, comentou a baixinha. - Esquece, Aline, quanto mais você fica abofelada, mais ela vai chatear, comentou uma das meninas do grupo. - Nada disso, amanhã vou ter uma conversa com a mãe dela. Ô racinha! Terminada a apresentação, o dono do circo aparece novamente e anuncia: Senhores e senhoras, agora o ponto alto da noite. Com vocês, diretamente de Cuba, a sensacional, a maravilhosa, a divina Suely Monteiro, a maior rumbeira de todos os tempos. Os homens acotovelavam-se em torno do pequeno palco e aplaudiam loucos de impaciência.
  • 33. A dançarina apareceu trajando uma sainha curta de fitinhas coloridas e um sutien também decorado no mesmo estilo. O conjunto iniciou o ritmo caribenho e a Suely, remexendo freneticamente os quadris, fazendo movimentos sensuais com os braços e mãos e piscando para um e outro dos mais próximos iniciou sua dança: Dona Maria a mulher do caroço Pegou uma foice pra cortar o meu pescoço (bis) Ó, gente, que bichinho é este? É a barata! Pega o chinelo e mata. (bis) Ai, ai, ai, sendo assim eu não vou lá Ai, ai, ai, vocês querem me matar. (bis) É show Mariana, é show, é show, Mariana, é show Remexedor, remexedor. Meninas, vamos embora, pra cima daquilo tudo Só vendo o meu chuchu, à turma dos cabeludos Refrão ... Meninas, vamos embora, pro pé de abacaxi Só vendo o meu chuchu, prá turma de Amaraji. Refrão ... Meninas, vamos embora, pro pé de abacateiro Só vendo o meu chuchu, a homem que tem dinheiro. Na saída do circo, quando já caminhavam pela rua do Cemitério, os comentários eram as piadas picantes dos palhaços, o trapezista e as cantoras. Lourdes Alves adiantou-se um pouco e começou a cantar e mexer as cadeiras imitando a Suely Monteiro. Algumas garotas riam, mas logo uma das mais moralistas criticou:
  • 34. - Oh, Lourdes, está esquecida que pertence à cruzada? Já pensou se o padre sabe que você tá rumbando pela rua e se comportando que nem uma ...? Foi água fria na fervura. Todo mundo se aquietou. Algumas cruzavam os braços por conta da frieza e da garoa que caia. Aos poucos o grupo foi se dispersando, e cada um tomou o seu destino.
  • 35. - Capítulo 6 - AS SANTAS MISSÕES Mês de janeiro. A comunidade católica se rejubilava com a notícia. Na missa do domingo o vigário anunciara para muito breve a realização das santas missões na cidade. O evento teria a presença de nada mais nada menos que aquele santo missionário que encantava a todos os verdadeiramente fiéis das plagas quentes do nordeste. Aline chegou em casa toda jubilosa contando a todos, a notícia. Já estava se imaginando, às três e meia da madrugada, seguindo aceleradamente o santo homem pelas ruas do burgo, exibindo com orgulho sua fita amarela de membro da cruzada eucarística, o livro do hinário católico na mão, ladeada pelas santas zeladoras, pelas filhas de Maria e outros beatos, ao som tarquetraqueante da velha matraca. A menina cantava no coro, ajudava nos batizados, enfeitava os altares da igreja e sempre fazia parte de todos os eventos da igreja. Certa estava ela. Com aquela participação constante e permanente, conseguiria ganhar muitas indulgências e, previdente como a formiga da fábula, estava fazendo seu pé-de- meia espiritual para, muito futuramente, assegurar uma boa “cobertura” em alguma nuvem ampla, com vista para o mar no andar de cima. Afinal chegou o grande dia. A população católica deslocou-se em procissão até a entrada da
  • 36. cidade para esperar os missionários. Jovens e senhoras vestidas sobriamente, sem pintura nenhuma nos rostos com ramos verdes nas mãos. Membros do apostolado da oração, da pia união das filhas de Maria e da cruzada eucarística, enfileiradas solenemente. O sol causticante fazia com que o pó de arroz das faces angelicais das jovens puras e das santas beatas se misturasse ao suor que se lhes escorria rosto abaixo. A espera era longa, mas a fé superava tudo. De repente o jeep da prefeitura apareceu e um emissário anunciou que o carro da comitiva já estava passando pelo engenho Jaguarana. Um murmúrio meio frenético e quase chegando à beira do histerismo percorreu a multidão. Havia velhinhas que beijavam a mão direita e a elevavam para o céu. Outras se benziam repetidamente. E algumas já puxavam um lencinho branco de dentro do porta-seios para enxugar o copioso que estava por vir. - Silêncio, meus irmãos, gritava o padre. Silêncio! Vamos organizar a fila. Lá do fundo, dona Zefinha trajando seu domingueiro azul marinho, com a larga fita de tafetá vermelho caindo cobre o colo começou a entoar o hino de santo Amaro. - Quem mandou a senhora começar os cânticos, irritou-se o cura. Não é o hino de santo Amaro, é o hino das missões. Vinde, pais, e vinde, mães, vinde todos às missões,...” - Mãe, ô mãe, eu quero mijar. - Deixa disso, Raminho, é hora de rezar com o padre e não de ir à casinha, respondeu uma das acompanhantes da procissão.
  • 37. - Mas, mãe, eu tô já me mijando, continuou o garoto. - Tá bom, vá ali atrás daquelas bananeiras, prosseguiu a mãe. Afinal o momento de glória. O carro dos missionários apareceu e começou a ovação. - Viva os missionários! Viva! Viva as santas missões! Viva o Papa! Viva! E a multidão emocionada mais uma vez: vivaaaa! E na esquina de uma barraca na entrada do sítio de seu Eudóxio, um velhote que havia tomado uma meiota, confundido talvez o evento, gritou: - Viva Dr. Zé Lopes! E as velhinhas que corriam no final da fila, sem nem saber direito que santo era aquele, responderam empolgadas: Viva! O reverendo ainda encarou meio rancoroso o velhote, mas não havia tempo para ralhações. O carro passou em direção à igreja e o povo acompanhando em ritmo acelerado, esqueceu-se das filas, dos hinos, e só se pensava em ver o santo homem de perto, tocar nele ainda que por um segundo e beijar- lhe a mão. Entretanto não foi fácil. A prefeitura havia organizado um cordão de isolamento e os missionários puderam entrar para a casa paroquial sem serem importunados. Na casa paroquial um rápido lanche e um descaso. Meia hora depois os frades adentravam o altar- mor e davam início à cerimônia. Cânticos, orações, e o turíbio fumegante nas mãos do chefe dos coroinhas espirrando fagulhas pra todos os lados.
  • 38. Na pauta das pregações, a presença do pecado mortal, do demônio, da concupiscência, dos maus pensamentos e todos aqueles itens que se não cumpridos fervorosamente levam o católico para as profundezas da fogueira eterna. Os conceitos do frade eram sintetizados de forma taxativa, sem atenuantes e meios termos. Era ser ou não ser, os mornos não entravam no reio dos céus. Vejamos alguns deles: Namoro – “Só na frente dos pais, com uma pessoa solteira. Deve ser breve, com casamento à vista”. Beijo – “Um beijo dado no rosto da namorada, como um beijo dado numa parenta, não tem nada demais. Entretanto, um beijo na boca, um beijo de língua, isso não, é pecado”. Divórcio – “O matrimônio só é quebrado por morte da esposa ou do esposo. Quem deixa o casamento para casar com outro no civil, estará no inferno de cabeça para baixo”. Dança – “A dança é um elemento de perdição. Quando um homem e uma mulher se juntam para dançar, não pode sair nada de bom disso tudo. Então sobrevém os maus pensamentos, os desejos pecaminosos, o pecado”. Saia curta – “Não usem saia curta. A saia curta não presta. É uma rede de que se serve o demônio para pegar os homens. O demônio está enganchado na saia curta das mulheres. Muitos homens perdem a cabeça por causa dessas modas exageradas”. Concubinato – “Uma pessoa que vive com outra sem casar, estará no inferno de cabeça para baixo”.
  • 39. Demônio – “O demônio existe, estão ouvindo? Ele existe. Numa cidade do sertão, entrei numa casa abandonada e ele me jogou sete pedras”. Inferno – “No inferno só há sofrimento. Lá, o calor é bilhões de vezes pior que no Nordeste. As labaredas sobem e queimam sem parar o corpo dos adúlteros, das prostitutas, dos efeminados, dos criminosos. Lá, é o lugar onde vive o demônio”. Depois de uma pregação com esses conceitos as filas do confessionário eram quilométricas. Todos queriam lavar suas almas e receber o perdão do santo homem. A jovem Aline preferiu se confessar com um frade mais jovem que, segundo ela, escutava melhor. Na praça o comentário era a pregação dos padres. Crentes, duvidosos ou céticos, cada fiel externava sua opinião. Uma coisa era certa, o inferno amedrontava muita gente. Aline e Ana mal conseguiram dormir pensando na procissão da madrugada. E às 3 horas em ponto as duas, acompanhadas por Neném e Mery, tomaram café e subiram para a matriz sob um frio de gelar a alma. Cada uma delas usando um daqueles chales triangulares que eram enfiados pela cabeça no estilo “poncho”. Às três e meia em ponto, o frade que já estava posicionado há bastante tempo começou a caminhar cantando o hino das missões e tocando a matraca. E os fieis atrás dos santos missionários, respondendo os hinos: Vinde, pais; vinde, mães; vinde, filhos; vinde, todos à Missão. São dias de misericórdia, são dias de consolação.
  • 40. Ó Jesus, que amais as almas, pelo vosso Coração, dai que todos com proveito freqüentemos a Missão. É favor de vossa graça, de nossa alma a salvação. Ó Jesus misericordioso, concedei-nos o perdão! Vinde, pais; vinde, mães; vinde, filhos; vinde, todos à Missão. Vinde, agora, pois é tempo de cuidar da salvação! As missões foram um sucesso. Foram realizados muitos batizados, confissões e casamentos. Dezenas de casais que viviam “amigados” ou “amancebados” como diziam os missionários, reconciliaram-se coma igreja pelo casamento. Na época casais amigados não eram bem- vindos nos missas e outras celebrações da igreja, inclusive não podiam ser padrinhos nos batizados. Afinal viviam em pecado. Aline e algumas amigas colecionavam santinhos e medalhinhas e ficavam, a todo instante, furando a fila para pedir a algum missionário que abençoasse as estampas e as medalhas. Haja fé! A população católica da pequena cidade, sempre muito fervorosa, participava ativamente das atividades da igreja. Os padres e os missionários sempre eram esperados na estação do trem e, ao termino do evento religioso, levados de volta por uma multidão de fiéis. Nos meados da década de quarenta, a professora Lourdes Barbosa adquiriu uma imagem de São
  • 41. Tarcísio e organizou uma chegada festiva da imagem do santo, transportado de Recife até Amaraji. A comitiva, responsável pela imagem chegou de trem e dezenas de pessoas se deslocaram até a estação para receber o mártir. Dá pra imaginar o empurra, empurra. A plataforma da estação era pequena e o número de fiéis que queriam ver a imagem de perto e tocá-la era imenso. Os pais de Aline e Ana, João Luís e Maria Dapaz, levaram as duas pequenas para assistir a solenidade. Cada uma das meninas acompanhadas de suas bazinhas. Mas nada foi como esperado. Naquele aglomerado, Ana Maria levou um empurrão que provocou uma queda e machucou-se. Os pais ficaram bravos, as duas babás foram repreendidas pelo descuido e a família retirou-se da festa retornando ao solar. Outra chegada festiva de santo ocorreu em 1950 na inauguração da Capela de Santo Amaro construída pelo prefeito, Dr. Jorge Coelho. A imagem de Santo Amaro foi trazida da cidade de Sirinhaém onde ele havia trabalhado como médico e fora nomeado prefeito em 1947. Desta vez o santo veio de carro e a população esperou a comitiva na entrada da cidade. Ocorreu outro fato muito interessante no finalzinho do século XIX na estação do trem. Minha avó Trifônia Coelho (Iaiá) estava presente e me relatou este fato que foi confirmado por várias pessoas da época dela. Havia chegado à cidade um missionário para celebrar um evento de alguns dias na matriz de São José. Era um frade simples, humilde, e considerado santo por muitos. Trajava um hábito bastante surrado e sandálias já descoloridas pelo uso. Celebrou missas, batizou, oficiou
  • 42. casamentos e, depois de uma semana, voltou para o convento em Recife. Como de tradição muitos fieis pertencentes às diversas associações formaram um cortejo para levá-lo até a estação onde ele viajaria de trem. Durante todo o trajeto ele se manteve em silêncio. Enquanto aguardava o trem, ficou passeando pela plataforma e lendo seu breviário. Os fiéis, achando estranho aquela atitude do frade, começaram a cochichar entre si. Foi quando uma senhora do apostolado aproximou-se e perguntou sutilmente o que estava acontecendo. Ele parou de andar de um lado para outro, guardou o livro na bolsa que estava no banco da plataforma e, de braços cruzados, batendo delicadamente no chão com a ponta do pé direito e com um olhar vago para o horizonte, comentou: esta vila não sabe valorizar um servo do Senhor, não está em sintonia com as coisas da Santa Igreja. “Este lugar não vai pra frente nunca”. Ninguém nunca soube o que realmente ocorreu pra constranger o frade durante sua permanência em Amaraji, mas as palavras dele ficaram na mente de muitos por gerações. Não foi praga, pois homens santos que pregam a palavra de Deus não se utilizam disso para com seus desafetos. Seria o frade um sensitivo, teria ele o dom da premonição? O fato é que o município de Amaraji, naquela época um dos mais promissores do estado, possuía: sessenta e um engenhos, vários deles banguês os quais, mesmo em fase de decadência, produziam açúcar, melaço e cachaça; as usinas União e Indústria, Cabeça de Negro, Bosque, Bamburral, Aripibu, e, na década de
  • 43. 1920, Liberato Marques; a vila de Primavera a vila de Cortês com a usina Pedroza. Além disso, políticos fortes como Dr. Mário Domingues da Silva, deputado e senador do congresso pernambucano; Dr. Davino dos Santos Pontual, também deputado e senador e o comendador José Pereira de Araújo que presidiu o senado do Estado nos anos de 1916-18. Isso sem contar o usineiro e advogado Carlos de Lima Cavalcanti, natural de Amaraji, que foi interventor federal no Estado. Nas décadas de 1920-30, a cidade de Amaraji figurava como o 14º produtor de cana entre os 84 municípios de Pernambuco e entrava nas estatísticas estaduais de produção de banana, mandioca, algodão e coco. No município havia duas máquinas descaroçadeiras de algodão e cerca de 250 casas de farinha distribuídas pelos engenhos. O que aconteceu, afinal? Parece até uma “lenda urbana”. Conforme já escrevi uma vez, foram-se as usinas, os engenhos e as casas de farinha, mas ficaram as matas verdejantes, o rio a correr e “tutta la bona gente” de lá da província. A análise final dos fatos fica a critério de cada um.
  • 44. - Capítulo 5 - A BORBOLETA VAI À ESCOLA Nos meados do século passado, na pequena cidade de Amaraji, havia apenas duas escolas do ensino primário: o Grupo Escolar Dom Luiz de Brito, pertencente à Secretaria de Educação do Estado e o Instituto Cônego Aníbal Santos, escola particular, dirigido pela professora Lourdes Barbosa. Os jovens da elite e parentes da Professora Lourdes iniciavam seus estudos naquele Instituto e as demais crianças, na escola do Estado. O ensino supletivo também fora introduzido no final dos anos 40. Funcionava à noite e era destinado prioritariamente a jovens e adultos que não tinham tido oportunidade de ter sido alfabetizado na infância. O D. Luiz de Brito marcou a vida de todos aqueles que passaram por suas salas. O prédio, de dois pavimentos, fora adaptado da antiga cadeia pública do município no final da década de 1940 e recebeu o nome do primeiro arcebispo a visitar a cidade. Suas carteiras, fabricadas de sucupira, eram ortopedicamente desconfortáveis; um estudante que fosse mais gordinho, nela se acomodava com bastante dificuldade. Mas já era uma grande conquista para o setor educacional. Na parte de trás do prédio, onde se localiza o Fórum Municipal, havia uma campina verde que era usada como campo de futebol. Dona Maria Nely Gomes de Sá, a primeira diretora do grupo, etariamente idosa, de idéias pré-jurássicas, formação acadêmica paleoliticamente dinossáurica e
  • 45. métodos pedagógicos bem pessoais, devendo ter nascido em mil novecentos e bauzes bauzes, época em que o arco-íris era preto e branco. Segundo a tradição histórica das más línguas, ela era prima distante do Noé da arca e teria sido uma parenta sua muito remota que, após o dilúvio, teria soltado a pombinha, lá do alto do monte Ararat. Conta- se também que uma de suas tias em grau muito afastado e há alguns séculos atrás, fora auxiliar de copeira da Santa Ceia; a encarregada de lavar as taças. Baixinha, gorda, descenturada, voz estridente e gasguita, trajando sempre saia justa de tecido escuro e blusa clara sobre corpetes pontiagudos, com dois eternos bendengós, na época, chamados de “cachorro-quente” ornando-lhe o penteado. Usava óculos de grau muito forte numa armação estilo olho de gato. Sua arma pedagógica mais presente e sempre às mãos, pronta para ser utilizada, não era a obra de Arnaldo Niskier e sim uma sombrinha. Pela quantidade de sombrinhas danificadas nas costas dos alunos “levados da breca”, acreditava-se que ela as comprava em grosso. Seu rigor administrativo extrapolava toda a noção moderna de recursos humanos. O tratamento dado às outras mestras era bem glacial e o relacionamento com as duas funcionárias que auxiliavam na administração, dona Maria do Carmo e Maria da Paz, mãe de Aline e Ana, não ficava atrás. Só quem estava a salvo de suas sombrinhadas era Rosinha sua filha. Dona Nely e seu esposo eram, na época, os únicos que possuíam um veículo na cidade e desfilavam no automóvel de marca ford pelas ruas da cidade aos domingos.
  • 46. A cada dois meses, geralmente num domingo à tarde, ela visitava seu Ernesto Coelho e dona Iaiá, meus avós, para tomar um cafezinho, fazer uma oração de agradecimento e acender uma velinha para a minúscula imagem de santo Antônio que dona Iaiá havia herdado de seus avós e que, segundo muitos devotos, concedia graças àqueles que lhe invocassem. Sendo santo Antônio o padroeiro dos casamentos, imaginava-se que ela ia agradecer ao canonizado algo muito especial. Afinal muitas dezenas de semestres separavam ela de seu esposo, o servidor municipal José de Assunção. As outras mestras da época: Rita de Souza, Bernadete Silva, Nieta Tabosa, Das Dores Teixeira, Isaura e Carmita, Mara Vasconcelos e Salete Coelho, formadas por último, ensinavam no engenho Garra e na antiga escola rural da cidade. Todas eram um doce de pessoa. Também Abiacy e Neide Lins, formadas bem jovens iniciaram-se no magistério no final dos anos 50. O regime era de ordem, disciplina e assiduidade. Os instrumentos de tortura: palmatória, caroço de milho e longas horas de pé ou ajoelhado versus parede na diretoria e a famosa “ sombrinha ” de Dona Nely, que mais se assemelhava ao coelhinho da Mônica. Os livros didáticos: “Vamos Estudar” e “Lili, Lalau e o Lobo.” Na quinta série, a bíblia: “Admissão ao Ginásio.” As aulas transcorriam dentro de uma programação contínua e sempre se tinha algo que fazer. Decorava-se a tabuada, os pontos de geografia e história, e faziam-se descrições, tendo como tema figuras e paisagens de um álbum ilustrado gigante que era colocado sobre um cavalete na frente dos alunos. Não se tinha outra alternativa: estudava-se e aprendia-se. Com mil perdões das “meninas da gre”, a coisa funcionava. Mesmo pronunciando Vasingtón, quem decorou e aprendeu que Washington é uma capital, nunca esqueceu.
  • 47. Outra atividade interessante eram as aulas de trabalhos manuais. Desenhos, quadros de vidro pintados de preto e com complementos de papel laminado de um tipo de chocolate em forma de peixinho em várias cores. Havia ainda uns quadros de madeira compensada nos quais se desenhava algum tipo de paisagem e trabalhava o quadro com uma massa de alvaiade, óleo de linhaça e pó secante, formando as figuras em alto relevo. Uma vez seco, pintava-se o trabalho de belas cores. Havia ainda trabalhos feitos em azulejo branco. Colocava-se o azulejo sobre a chama de uma vela acesa e quando estava todo tisnado, desenhava-se alguma figura, retirando o excesso e tisna preta e deixando o verniz copal escorrer sobre a silhueta desenhada. Os colegas de sala: Aline e Ana Costa Gomes, Alzerina Silva, Amara (Lala), Amara e Edite Araújo, Amara Pereira, Antonieta, Aspásio, Francisca e Margarida Carlos, Carlos Alberto, Carlos Eduardo e Cláudio Leonardo Vasconcelos, Conceição Silva, Eleusis e Dirceu Vasconcelos, Enedina (Neném) de seu Delmiro, Heleno Amaro e Zuleide, Amara Hulda e Vicente Ramos, Ivonete, Joaquim (Quincas) Fabrício, Luís (Lula) Benigno, Márcio e Márcia Bandeira de Melo, Maria Celeste, Maria de seu Saul, Neide, Roberto Barbosa, Rômulo Ferraz, Santo e João Martins, Sônia e Airton Brito, Sônia e Giselda Santos, Terezinha, Vilma Brito, Wilton. As classes eram multisseriadas. O uniforme era obrigatório para todos: dos mais carentes, passando pelos emergentes até os de famílias mais afortunadas. Para as meninas, saia azul de pregas, blusa branca com a logomarca da escola no bolso; para os meninos, calça no joelho, camisa branca com as mesmas letras. Sapatos pretos e meias brancas para todos.
  • 48. Não dá para esquecer o final de horário escolar do Grupo. Dona Maria do Carmo tocava a campainha e a professora anunciava que a aula estava terminada. Livros arrumados, alunos de pé, formando fila única em cada sala de aula. Na porta de entrada da escola Dona Nely de mãos para trás, uma delas segurando seu inseparável bibelô, a sombrinha, dizia: - Pode sair a terceira série! ” E os alunos deixavam a sala em fila indiana, marchando em formas de “cobrinha” pelo hall e cantando o hino Ardor do Infante de Castro Alves: Onde vais tu, esbelto infante Com teu fuzil lesto a marchar Cadência certa, o peito arfante Onde vais tu a pelejar? Pra longe eu vou, a Pátria ordena Sigo contente o meu tambor, Cheio de ardor! Cheio de ardor! Pois quando a Pátria nos acena Vive-se só da própria dor. É no combate que o infante é forte vence o perigo despreza a morte. Outras classes iam acompanhando a primeira que havia iniciado a marcha e, quando o hall estava quase cheio ela batia duas palmas fortes e dizia: - Podem sair! Devagar! Quem correr, eu chamo de volta. A essa altura, a diretora postada no portão de saída, já estava segurando a sombrinha em estado de
  • 49. alerta. Não era permitido sequer pular de dois em dois degraus da longa escada do grupo. De repente, ouve-se um grito estridente de Dona Nely: - Amaro Cavalcante, volte já aqui! Ele apenas acelerara o passo lá próximo do último degrau. E lá vem o menino cabisbaixo, cenho franzido, e ainda foi alcançado de raspão pela sobrinha da diretora ao caminhar para a diretoria. - Ai, dona Nely, doeu! - Cale a boca, seu moleque insubordinado e atrevido, puxe para diretoria e fique de joelhos virado para a parede. Deve ter saído da diretoria lá pelas duas horas da tarde. A gente esperava com ansiedade as datas comemorativas do ano escolar: carnaval, semana santa, São João, Semana da Pátria, dia da árvore, a visita da inspetora escolar, dona Hilda Brandão e, em dezembro, a entrega dos resultados das provas finais. O dia da pátria era comemorado com muita alegria e participação da comunidade. Ensaiavam-se durante muitos dias os passos da marcha, a divisão dos pelotões, etc. Seu Luís Soldado era o instrutor. A banda era composta de um surdo, um tarol e uma caixa e uma corneta que tocava os comandos. Os meninos disputavam uma vaga na banda, mas quem escolhia era o instrutor. Os ensaios se realizavam no campo de futebol. Aline, muita sabida, mas bastante pequena ainda ficava num pé e noutro pra saber onde ia ser o seu lugar no desfile. A bandeira ela não podia carregar. Imagine um pé de vento mais forte: bandeira e porta-bandeira iam voar pelos céus da província. Aliás, carregar a bandeira do Brasil era mesmo que disputar um concurso
  • 50. de miss. Todos queriam usar luvas brancas pra carregar o lábaro nacional. Geralmente o escolhido era algum “peixinho” da diretora ou de alguma professora. Tinha de ser um aluno alto, garboso e saber marchar, claro. Fazer o esquerda, direita, esquerda, direita, no ritmo certo. Havia também uma estudante mais baixa que, de luvas, marchava à direita do porta-bandeira segurando delicadamente a ponta da bandeira. O desfile saia da frente do grupo e dirigia-se até o prédio da prefeitura para a solenidade especial de hasteamento da bandeira, discursos e uma demorada hora de arte. A borboleta que já havia passado o mês mexendo com os pauzinhos, conseguiu abrir o desfile, marchando na frente da bandeira com luvas brancas e uma faixa auriverde. Sem contar que foi uma das oradoras na prefeitura e, de quebra, ainda declamou uma poesia. E, claro, com todos aqueles aplausos, a filha de J.L. e dona Dapaz, desceu as escadas do Paço Municipal e dirigiu-se ao seu lugar no desfile com aquele “oco patriótico”. E o desfile continuou pelas ruas e praças da cidade até retornar ao ponto de saída. Depois da solenidade, o lanche patrocinado pela escola e pela prefeitura municipal. Naquele momento, todo mundo amava Dom Pedro II, o rio Ipiranga e o brado retumbante. A comemoração do dia da árvore era outra solenidade muito esperada. Naquela data, professores e alunos dirigiam-se ao campo de aviação, o campo de pouso da cidade, para o plantio de árvores. O ambiente era verde e bucólico; de um lado a mata das Três Bacias, do outro, as matas da ladeira de Riachão, e, por trás, as matas de Sete Ranchos e engenhos circunvizinhos. Cânticos, declamações, discursos e, na volta, aquela gostosa salada de frutas. Esta música de Arnaldo Barreto
  • 51. era cantada, tradicionalmente, enquanto as árvores eram plantadas: Cavemos a terra, plantemos nossa árvore, Que amiga e bondosa ela aqui nos será! Um dia, ao voltarmos pedindo-lhe abrigo, ou flores, ou frutos, ou sombras dará! O céu generoso nos regue esta planta; o Sol de dezembro lhe dê seu calor; a terra, que é boa, lhe firme as raízes e tenham as folhas frescuras e verdor! Plantemos nossa árvore, que a árvore amiga seus ramos frondosos aqui abrirá, Um dia, ao voltarmos, em busca de flores, com as flores, bons frutos e sombra dará O céu generoso nos regue esta planta; o Sol de dezembro lhe dê seu calor; a terra, que é boa, lhe firme as raízes e tenham as folhas frescuras e verdor! As alunas mais velhas apresentaram sketches, poesias e cânticos. Professoras também participavam ativamente. No final da solenidade, a diretora franqueou a palavra, com a tradicional pergunta: alguém quer fazer uso da palavra ou apresentar alguma atividade? Não é preciso dizer que alguém lá de trás, com os cabelos desalinhados pelo vento forte, o rosto avermelhado com o calor do sol respondeu quase gritando: - Claro que eu quero, dona Nely. Preparei uma poesia que está na ponta da língua.
  • 52. - Pronto, lá vai aquela baixinha metida de novo, reclamou uma menina no meio da turma. - Deixa de ser invejosa, Severina, pior é você que não sabe apresentar nada. Só pensa em encher a barriga com salada. - E apoi, mulé, tô me acabando de fome. Eu nem tomei café direito pensando na salada de fruta. As tripas estão quase brigando no meu bucho. - Mas você é muito ignorante mesmo, nossa, como é que pensa em se formar, casar ter filhos e educá- los? - E quem disse que estou pensando em nada disso, eu vou é fugir com trapezista do circo. Já tá tudo acertado. E ai de você se contar a mãe, dou-lhe uma pisa de lascar. E Isabel saiu de perto da colega horrorizada com tanta ignorância e irresponsabilidade. A essa altura, Aline já estava posicionada no pequeno palco improvisado. Dona Nely, já perdendo a paciência, mandava os alunos calar a boca, os professores se abanavam com os cadernos, o calor era escaldante. - Pode começar a declamação, Aline, comandou a diretora que suava às bicas e enxugava o rosto e o pescoço gorducho com um minúsculo lencinho de linho: - Senhores professores, prezados alunos, a poesia que vou apresentar é da autoria de Raul Aroeira Serrano. E começou:
  • 53. A Árvore "Criança, a árvore merece A nossa estima sincera Dá frutos doces no outono E flores na primavera. Nunca maltrates uma árvore A quem tudo nós devemos Desde a madeira da porta Ao lápis com que escrevemos. Na sombra da árvore amiga Pensa bem no teu destino Pois dela foi feito O teu berço pequenino." Terminada a apresentação, muitos aplausos, palmas e alguns apitos e assovios de alguns alunos. Dona Nely, olhando inquisidoramente para os responsáveis pelos apitos e assovios, quase que histérica, gritou: - Se não acabarem com a baderna e a falta de educação, eu acabo com a salada e o lanche e ainda deixo vocês até às três horas na diretoria. Santo remédio. Um silêncio sepulcral reinou durante todo o trajeto, desde o campo, até a escola. Formou-se a fila da merenda e foi distribuída uma salada de frutas, biscoitos e bastante ponche de laranja. Havia sempre algum estudante meio abusado que tentava furar a fila ou, simplesmente, se servir mais de uma vez. Dona Nely, porém, estava de plantão permanente distribuindo cascudos, puxões de orelhas e
  • 54. “muxicões” nos mais alvoroçados. Nada lhe escapava. Lá pelas duas da tarde, os alunos começaram a deixar a escola. A diretora estava tão absorta em manter a disciplina no interior do prédio que nem notou a correria e bagunça de alguns alunos pela escada de saída do grupo. Amaraji, na época, apesar de ser uma minúscula cidade da zona da mata sul possuía um campo de pouso para aviões de muito pequeno porte. Era o único da região. Uma curiosidade a respeito do campo de pouso. Ele foi construído no início da década de 1950 na gestão do prefeito Dr. Jorge Coelho da Silveira. No dia da festa da inauguração, toda a população da cidade dirigiu-se para o local do evento para ver a descida de um avião monomotor, na época, chamado de “teco-teco”. Algumas autoridades da cidade foram convidadas pelo piloto para um pequeno voo. Dona Toinha Coelho, esposa do secretário da prefeitura, cheia de euforia, candidatou-se para um pequeno tour sobre a cidade. Quando tentou subir na aeronave, pra sua grande decepção, não conseguiu passar pela porta e quase que fica presa. Ela era meio “fortinha”. Frustrada, desistiu e a multidão que presenciou a cena não pode conter o riso que não foi nem um pouco discreto. Aline e suas colegas, pra lá e pra cá, loucas por um convite pra subir aeronave, mas é claro que aquilo não era nenhuma canoa ou jaú de parque de diversões. Só pra os adultos que fossem autoridades. Paciência, Aline, um dia você cresce, perdão, fica com mais idade e vai poder fazer tudo isso, voar à vontade.
  • 55. - Capítulo 4 - SÓ DANÇO SE EU FOR MESTRA, EXIGIU ABORBOLETA A primeira infância da pequenina Aline, bem baixinha, cintura roliça, bochechinhas acentuadas e já usando seus óculos miudinhos no estilo olho de gato, foi passada no solar da Rua 15 de Novembro, sob os olhares atentos e cuidadosos da dileta mamãe, da secretaria Mery, substituta de Ivanise, e dos bons vizinhos: seu Corocochô, do “hotel estrela única” da esquina; seu Luizinho, alfaiate, e dona Terezinha; dona Maria do Carmo; seu Eurico, Corina e Corinto; dona Elvira Fontes e Maria Andrade (Neném, a guardiã da família); seu Avelino da padaria; seu Mário Telegrafista, dona Áurea e Aurinha; seu Zé Goiana e dona Laura; seu Manoel Firmino chefe do clã dos Amaros e Amaras Silveira; os fervorosos crentes da Igreja Batista; dona Olindina, Permínia e Claudionor; dona Toinha e as tias Zezé e Santinha, e Alaíde Brito da vendinha da esquina. O dia a dia na província era mais ou menos corriqueiro. Pela manhã, as aulas no Grupo Escolar Dom Luiz de Brito, à tarde, os deveres escolares de casa, cujas dúvidas eram tiradas com as mestras Bernadete e Rita, hóspedes do hotel. À tardezinha, auxiliadas por Mery, elas se aprontavam, penteando os cabelos cortados à moda capelinha, que eram presos por diademas de galalite ou ligeiras largas, vestidinhos de organdi bordados de crivo ou ponto de cruz, com faixa de tafetá na cintura e
  • 56. sapatinhos de pulseira, impecavelmente polidos por seu João Engraxate. Depois de prontas, as duas sentavam-se na calçada, saboreando os deliciosos pãezinhos da padaria de seu Alcides, recheados de manteiga e açúcar, gentilmente preparados pela bondosa Mery. Assim, as duas manas esperavam o retorno da mamãe, que passava o dia trabalhando no Grupo Escolar. À noite, em frente ao solar, as manas Aline e Ana e as amigas Denise, Lourdes Alves, Elêusis, Cleide da Borboleta, Maria Ângela e outras coleguinhas, brincavam de roda, de pega, de academia, de manja, barra- bandeira, boca de forno ou de esconder. De longe se escutavam os sons das cantorias: “Pai Francisco entrou na roda...” ou “Samba Lelê, tá doente, tá com a cabeça lascada.. .” ou “Apareceu a Margarida, olê, olê, olâ...”, ou ainda “Boca de forno! Forno! Tirando o bolo! Bolo!...” Quando não corriam na rua, simplesmente sentavam-se na calçada, brincando de anel, contando estórias ou arrepiando-se de medo, ao falar sobre a “Comadre Florzinha”, o “Pantel” da mata ou o último capítulo do Mistério do Além. Às vezes, comentavam sobre algum estranho que havia aparecido na rua de mochila nas costas e mal encarado. Será que não era o “papa-figo” mandado pelos Amorim da capital para pegar criancinhas e arrancar-lhes o fígado, paliativo para aquela doença horrível que fazia suas orelhas crescerem?
  • 57. Em dias de chuva, reuniam-se em torno de dona Quinquina, mãe de Maria Andrade, para ouvirem, atentas, as estórias de Trancoso, narradas pela bondosa velhinha. De vez em quando, em torno das oito horas, escutava-se a voz de dona Elvira que gritava: - Denise, está na hora da novela, venha prá casa! Ninguém perdia o horário de “O Direito de Nascer” e todas suspiravam com Albertinho Limonta e Isabel Cristina, seus amores e desventuras. Em outras ocasiões, era Maria Andrade que aparecia perguntando: - Oh, Aline e Ana, vocês já fizeram o dever de casa? E a poesia da hora de arte, Aline? Já decorou toda? Quando Aline chegava atrasadas à brincadeira, significava que estava escutando o Repórter Esso. Mesmo sem entender tudo ainda, adorava uma notícia. Uma ocasião ela atrasou-se uma meia hora. As outras coleguinhas que já se sentavam na calçada e iniciavam a brincadeira do anel, estranharam a ausência da baixinha. De repente lá vem a menina respirando com dificuldade, erguendo os ombros, com os olhos marejando. As amigas ficaram preocupadas e Denise aproximando-se perguntou curiosa: - Que é isso, Aline, você está com puxado? Ave Maria, será que isso pega? Aline, enraivecida, respondeu irritada: - Deixe de ser lesa! Que puxado, que nada? Estou com uma crise de asma alérgica.
  • 58. As outras colegas havia se aproximado e cercavam, receosas, a pequena enferma. Denise continuou insistente: - É não, isso é puxado. Eu vi o menino de Bau Amaro lá em Estivas, impando desse mesmo jeito, e era puxado. E a menina foi se irritando mais ainda. - Vamos perguntar a mamãe? Nesse momento, Maria Andrade ia passando. Aline, cada vez mais brava, gritou: - Oh, Neném, isso que eu tenho não é uma asma alérgica? E Maria Andrade, sem dar muita atenção, abanando a saia, respondeu: - Sei lá, Aline, é uma dessas coisas mesmo. Mas você devia era estar dentro de casa agasalhada por causa da frieza. Entre logo, vamos. - Oh, Dapaz ... Aline vestiu um agasalho e teimosa como ela só, ainda voltou para a prosa. O assunto da noite foi a briga do padre. O vigário da paróquia de origem holandesa fora avisado de que dona Serafina, uma viúva muito devota e membro do apostolado da oração, estava se ultimando. Decidiu, então, fazer uma visita à enferma para confessá- la e dar a santa extrema unção. Seus familiares eram evangélicos. Na porta da residência da enferma foi barrado pelos parentes da moribunda que não queriam sua presença. O reverendo muito bravo e muito revoltado e com a rudez flamenga à flor da pele, não
  • 59. teve a menor dúvida; saiu empurrando todo mundo que estava em sua frente, chegou até o quarto da agonizante e, mui calmamente, fez sua orações. As meninas comentavam com orgulho a atitude do padre. De repente, duas das meninas do grupo começaram a cochichar e rir o que chamou a atenção do restante do grupo. - Que cochicho é esse? Grande falta de educação, reclamou Aline. - Você não pode saber, Aline, é muito criança ainda. - Essa não, apartou Ana Maria tomando as dores. O que? Aline não tem nada de criança, ele é muito inteligente e sabida. - Depois de muita adulação ficaram sabendo que uma das garotas mais velhas do cochichado havia “sido moça” recentemente. Foi uma festa, todo mundo queria saber os mínimos detalhes do acontecimento. Mas nem todas concordaram com aquele tipo de conversa. - Ave Maria, isso é conversa de moça direita, minha gente. Já pensou se a chefe da cruzada sabe que vocês estão falando disso? Não quero nem pensar... Muitas vezes a brincadeira se estendia até depois das nove, quando as pequenas infantes começavam a retornar a seus lares, pois às 22 horas em ponto, Corinto, encarregado do motor que fornecia energia elétrica para a cidade, dava o sinal, fazendo as lâmpadas piscarem três vezes e, em seguida, as luzes eram desligadas. Vinte e duas e trinta, luzes apagadas, grilos e sapos se orquestrando, a província se entregava aos
  • 60. braços de Morfeu. Durante a noite, o máximo que podia acontecer, era alguma moçoila noiva ou comprometida, ser roubada pelo pretendente, evitando, com essa fuga, as despesas do casamento. E nessa tranqüilidade paradisíaca, o ano transcorria e chegava o mês de dezembro com seus festejos natalinos e folclóricos. O pastoril religioso era um deles. Era um acontecimento que movimentava toda a comunidade provinciana. Papais e mamães torciam para que suas filhas pequenas fossem escolhidas para fazer parte do evento organizado por algumas jovens e senhoras da comunidade católica. Afinal, tudo tinha de sair perfeito para as pessoas que participavam e torciam pelo “encarnado” ou “azul”, comprassem muitos lacinhos de fita de sua cor preferida para ajudar a vencer o cordão escolhido, no qual, normalmente dançava uma de suas filhas. A renda era destinada as obras paroquiais. Usando vestidos confeccionados de papel crepon, saias rodadas, muita areia prateada ornando as orlas dos babados franzidos e fitas da cor do partido que enfeitavam a indumentária. Os pandeiros, enfeitados de fitas das duas cores, ajudavam a marcar o ritmo da dança. Era uma trabalheira a sua confecção. As senhoras Belisa Rolin, Sônia Dantas, Salete Coelho e Dasdores, entre outras, eram as encarregadas do evento folclórico. Rômulo Barbosa, sempre no comando da animação, fazia a platéia ir ao delírio aos gritos de: azul, azul, azul, ou encarnado, encarnado, ou o taxativo já ganhou. Era um verdadeiro leilão de venda de lacinhos, para a alegria geral das pastorinhas. A pequena Aline já chegando aos oito anos foi convidada para fazer parte do tradicional festejo. Pela
  • 61. sua estatura “mignon”, e para que se cumprisse a previsão de seu João Severo no dia de seu nascimento, ela deveria ficar balançando as asinhas em volta das pastoras, no papel da borboleta. No dia da reunião para escolha das pastoras e do personagem de cada uma no evento, o papel da borboleta ficou para ela, claro. Pelo seu tipo, sua altura, ia ser a borboleta mais qualificada dos últimos tempos. Mas, de personalidade forte que tinha, já desde criança, a menina embirrou, emperrou fez ver que só se apresentaria se lhe dessem o papel da “mestra”. Nenhuma das promotoras do pastoril conseguia convencê-la do contrário. A reunião parou e ninguém sabia o que fazer. Dasdores Teixeira, com muita calma e delicadeza, tentou convencer a pequena pastorinha: - Olhe, Aline, você vai ficar uma gracinha de borboleta. A saia franzidinha, as asinhas douradas e as sapatilhas também. Já pensou, Dapaz vai lhe achar linda. Ainda vamos colocar uma coroa de pedrinhas em sua cabeça. Vai ficar parecendo uma rainha, não é meninas? E as outras pastorinhas responderam em coro: - É, dona Dasdores. A essa altura ela já tinha se levantado, ido para frente do grupo com passadas largas, firmes e determinadas e com uma das mãos na cintura e o dedo da outra mão apontando para as senhoras, bateu o pé e falou em tom decidido e definitivo:
  • 62. - De jeito nenhum, se eu não for a mestra, não danço, pronto! Podem arranjar outra borboleta que eu estou indo embora. E a baixinha deu dois sopapinhos na cabeça, ajeitou o franzido da saia e encarou as organizadoras uma a uma. Em seguida, deu meia volta, apanhou seu chale minúsculo e caminhou em direção à saída do salão paroquial. Dona Sônia Dantas tentou argumentar, mas quando sentiu o olhar de desafio da quase borboleta, calou-se e comentou baixinho: - É melhor não insistir, Dasdores, deixa ela ser a mestra e Denise fica sendo a borboleta. E agora, quem vai avisar a ela? E Dasdores saiu apressada alcançando a menina que já estava passando ao lado do bilhar de seu Aristeu. - Oh, Aline, um momento, por favor, exclamou Dasdores. Ela virou-se e já se sentiu vencedora. - Escute, Aline, o pessoal resolveu que você vai ser a borboleta. Vamos voltar para o salão e agradeça a dona Sônia, pois foi ela quem decidiu. O que? Eu mesma não. Ela queria que a mestra fosse a filha de dona Minervina. Só porque ela é maior do que eu e já tem busto, é? Grande coisa, eu sou pequena, mas canto muito melhor do que ela. E assim ela voltou para o salão e terminou de assistir a reunião. Na volta para casa, uma das colegas falou, tu é peia, não é, Aline? Consegue tudo que quer...
  • 63. Pois é, e você acha que ia ficar balançando asinhas pra lá e pra cá, eu mesma não. Está pensando que eu sou zig-zag, é? Ora, pinóia! E nos primeiros dias de dezembro, depois de muitos ensaios, o pastoril começou a se apresentar no palanque construído em frente ao salão paroquial. E lá se foi Aline triunfante, puxando o cordão encarnado. O seu fã clube era imenso. Vinha até torcedores da vizinha Caracituba. Seu padrinho João Ito e o jovem Luiz Jacinto. Maria Andrade, a mamãe Dapaz e Mery eram do mesmo modo, torcedoras exaltadas, sem contar dona Bernadete Silva, sua professora. Denise Fontes foi por muito tempo, a detentora das asinhas da borboleta. E quando a apresentação começava e chegava a vez da mestra, a voz da menina ecoava pela praça: Boa noite meu senhores todos, Boa noite senhoras também, Somos pastoras, pastorinhas belas Que alegremente vamos a Belém. Somos pastoras, pastorinhas belas Que alegremente vamos a Belém. Sou a mestra do cordão encarnado, O meu cordão eu sei dominar, Eu peço palmas, peço bis e flores Aos partidários peço proteção. Eu peço palmas, peço bis e flores Aos partidários, peço proteção. - Mas a mestra canta demais, comentava Maria Joaquina. É verdade, a filha de dona Dapaz canta que nem um passarinho, comentou Durrei.
  • 64. E a festa prosseguia noite afora até o final da apresentação, com muitos gritos e palmas dos partidários do cordão azul e do cordão encarnado. Depois, a troca de roupa, os parabéns e a alegria dos familiares e amigos e a “mestra” mal cabia em si de contente. Estava bestinha, não tirava o sorriso da boca e, de vez em quando, davas umas piscadinhas mais agitadas. O vigário apareceu e dona Belisa passou para ele a renda da noite. Tinham conseguido vender muitos lacinhos. Dasdores havia preparado um lanche e lá se foram os participantes do show tomar guaraná Fratelli Vita com sanduíches de pão com carne enlatada e bolinhos de bacia. Era uma alegria só. Cada uma que de se exibisse mais. E a mestra já se imaginava, no próximo ano, indo se apresentar na usina Nossa Senhora do Carmo e em Bonfim.
  • 65. - Capítulo 3 - A PRIMEIRA INFÂNCIA E SEU “DÉBUT” CATÓLICO Os primeiros anos da infância da mini “ninha” foram dentro da normalidade. Ela havia perdido o pai, J. L., quando tinha dois anos de idade. A mamãe Dapaz foi uma grande guerreira e batalhou muito para criar e educar as duas manas. Trabalhou no comércio e depois foi contratada pela Secretaria de Educação para prestar serviços no Grupo Dom Luiz de Brito. As festinhas de aniversário ficavam restritas aos primos e amiguinhos mais próximos da família, sem muita badalação. Mesmo depois de um dia de trabalho na loja de tecidos e miudezas “A Borboleta”, Dapaz ainda encontrava tempo para ensinar as primeiras letras às duas meninas. Aline, aos quatro anos de idade, já havia aprendido a ler as primeiras palavras e, mais tarde, quando se matriculou no Grupo Escolar para estudar a primeira série primária com a professora Maria Bernadete da Silva, já estava alfabetizada. Ela idolatrava a mestra. Ainda hoje, ela lembra a fragrância do perfume usado por ela. Olha a profecia de sinhá Fronina se realizando. Dona Bernadete era de Caruaru. Uma jovem de pele clara, olhos esverdeados, cabelos encaracolados, extremamente paciente e dedicada aos alunos. Ela era hóspede de Hotel de Seu Corocochô, que ficava localizado no local onde, hoje, existe o supermercado da Praça Pereira de Araújo. Lembro da professora, pois eu estudava na mesma turma.
  • 66. Naquela época, o sonho de muitas famílias católicas era ter um padre ou uma freira na família. Aqueles que não conseguiam tal “benção”, ficavam conformados com a “dádiva dos céus”, se uma de suas filhas pequenas pudessem participar da coroação de Nossa Senhora no último dia do mês maio. Aos oito anos de idade, como filha de toda boa família cristã, a ainda pequenina Aline, foi convidada pelo vigário para coroar Nossa Senhora, naquele inesquecível dia 31 de maio. Ela era detentora das características exigidas pela tradição da igreja e possuía o perfil perfeito para colocar a coroa sobre a cabeça da Virgem. Cor branca, cabelos claros, e voz maviosa. Na época, ninguém deu muita atenção ao fato, mas nunca uma menina de cor “morena” ou afro-descendente legítima, foi escolhida para coroar a santa. Preconceito? Não, apenas “tradição” da igreja. Os anjos do céu tinham a pele branca desde a criação. E assim, a borboletinha foi escolhida para participar daquele evento tão disputado pelas meninas de sua idade. Seria o seu “début” católico na sociedade infantil da Igreja. O ato litúrgico exigia toda uma preparação. Ela foi auxiliada por Santinha Silveira, responsável pela Cruzada Eucarística e com o assessoramento da professora Belisa Rolin, Sabina Andrade, do Apostolado da Oração, da professora Dasdores Teixeira e de Maria Joaquina. Os noiteiros, famílias encarregadas da decoração da igreja e da organização geral da festa do encerramento do mês de maio, eram: seu Raul e dona Lourdes do engenho Riachão do Sul; seu Bequinho do engenho Sete Ranchos e a família de seu Luiz Dubeux da
  • 67. Usina Bonfim. Já à tarde, a pequena coroante e demais colegas de solenidade, após participar do ensaio final com o coro, ajudavam na decoração do altar, fabricando buchas de papoula para a incrustação de cravos e céssias em forma de meias guirlandas que eram colocadas em todos os recantos da matriz. Os castiçais eram polidos e longos brandões de espermacete neles colocados. Feita a limpeza final da igreja, espalhavam-se folhas de canela e eucalipto pelo chão para que o ambiente ficasse naturalmente aromatizado. solenidade religiosa era preparada com bastante antecedência, desde o ensaio dos cânticos até o da coroação propriamente dita. No coro da igreja, os hinos, cantados em latim, estavam sob o comando da organista Ivone Oliveira que era coadjuvada pelas cantoras Teresinha, Dos Anjos, Agenilda e Quiterinha, entre outras. Na ocasião, encontrava-se na cidade um missionário alemão, responsável pela celebração da solenidade, enquanto o cura local, Padre José, acompanhava os cânticos com o violino. O altar de nossa senhora fartamente decorado de branco e azul, reunia um verdadeiro séquito de acólitos, solenemente paramentados de vermelho, com seus roquetes impecavelmente brancos, além de uma dúzia de anjinhos espalhados por toda parte. Integrava a corte de celeste: Ana Maria, irmã da coroante, Denise Fontes, Cleide da Borboleta, Eleuses Vasconcelos, Neném de seu Belmiro, entre outras. E após a ladainha, o magnificat e a coroação propriamente dita. A pequena “anjinha” trajando uma túnica longa de laquê branco, ornada de galões dourados; portando um par de asas brancas nas costas e uma coroa de flores claras na cabeça, um pouco de carmim nas bochechas e uma leve sombra de batom nos lábios era elevada
  • 68. delicadamente por um dos fiéis e colocada no suporte que ficava ao lado da santa. A mamãe, do lado de baixo do suporte, olhava ansiosa e repetidamente para cima, receosa de que a garotinha pudesse escorregar. Silêncio sepulcral no adro da matriz. O missionário teutônico elevava a voz de barítono e dizia: - Caríssimos irmaos, agôra vamos iniciarr a coroaçon de Nôssa Senhôra. Do alto do coro, a organista dedilhava uns acordes da melodia na velha sarafina e o público, atento, dirigia os olhares para o altar da virgem. O coro iniciava a solenidade, cantando a primeira estrofe da conhecida música. Aí, então, a pequena cantora com voz um pouco tímida, mas bastante firme cantava a segunda: “Virgem recebe esta coroa, Que te oferece o nosso amor, Seja do céu, ó mãe tão boa, Pra todo nós feliz penhor”. O coro apresentava a segunda estrofe e a garotinha prosseguia com a última parte, desta vez, já bastante desenvolta e dona da situação: “Aceitai esta coroa, Virgem santa mãe querida, Para que seja a rainha. O penhor de eterna vida.” Ao tempo em que entoava os versos do hino, sua mão direita ia aos poucos erguendo a coroa de Nossa Senhora até a mesma ser depositada sobre a cabeça da santa. Naquele momento, o vigário bradava vivas à santa, a São José, à igreja, ao papa, etc.
  • 69. A essa altura, a coroante já havia concluído sua missão, e estava sendo conduzida para baixo do suporte, quando se ouviu um grito: - Cuidado com o “barandão”! Vai queimar a asa do anjo! Era a voz aflita e estridente de Maria Joaquina, uma beata, membro da Pia União das Filhas de Maria, Mas nada de mais grave aconteceu. A asinha da coroante foi levemente chamuscada pela chama de um brandão, no momento em que seu José Fiel trazia a menina para baixo. Todos respiraram aliviados, principalmente a mamãe que ainda olhou apreensiva para a asinha atingida pela chama. - Cadê meus óculos? Não estou enxergando nada. Questionou a menina. - Está aqui, Aline, apressou-se a mãe. E a coroante, já refeita do susto, colocou os óculos de armação estilo olho de gato e foi cercada por todo um pelotão de coleguinhas aladas, que se acotovelaram, hilariantes, barulhentas e quase histéricas em torno da pequena “star”, elogiando sua atuação. Muitas delas já fazendo planos para ser a sucessora da coroante no próximo ano. Frei Johann Werner, o celebrante, olhava de lado para os anjos e meio impaciente repetia: - Silência, meninos, a coroaçon ainda non acabar, silência! Naquele instante, o vigário parou o solo de violino e do alto do coro bateu palmas três vezes com força e sibilou aquele conhecido: