O documento relata a história de uma mulher americana que ganhou duas vezes na loteria em um intervalo de 5 meses, com uma chance de 1 em 419 milhões. Embora inicialmente feliz, seu marido passou a acreditar que os prêmios não eram acaso e ficou preocupado com as implicações de tanta sorte repentina.
1. Desistindo de Natal
Segundo pesquisa do instituto Ipsos, encomendada pela Associação
Comercial de São Paulo, 32% dos consumidores não pretendem fazer compras
neste Natal.
Folha Dinheiro, 9 de dezembro de 2005
"Prezado Papai Noel: há uma semana eu lhe mandei uma carta com a lista
dos meus pedidos para o Natal. Agora estou mandando esta outra carta para dizer
que mudei de idéia. Não vou querer nada. Ontem o papai nos avisou que não tem
dinheiro para as compras do fim de ano. Papai está desempregado há mais de um
ano. A gente mora numa cidade pequena do interior, muito pobre. No Natal
passado, o prefeito anunciou que tinha um presente para a população: uma grande
fábrica viria se instalar aqui, dando emprego para muitas pessoas. Meu pai ficou
animado. Ele é um homem trabalhador, sabe fazer muitas coisas e achou que com
isso o nosso problema estaria resolvido. Agora, porém, o prefeito teve de dizer que
a fábrica não vem mais. Não entendo dessas coisas, mas parece que a situação
está difícil.
Portanto, Papai Noel, peço-lhe desculpas se o senhor já encomendou as
coisas, mas infelizmente vou ter de desistir. Para começar, não quero aquela
bonita árvore de Natal de que lhe falei -até mandei um desenho, lembra? Nada de
pinheirinho, nada de luzinhas, nada de bolinhas coloridas. A verdade, Papai Noel,
é que essas coisas só gastam espaço e, como disse a mamãe, gastam muita luz.
E nada de ceia de Natal, Papai Noel. Nada de peru. Como eu lhe disse, nunca
comi peru na minha vida, mas acho que não vai me fazer falta. Se tivesse peru, eu
comeria tanto que decerto passaria mal. Portanto, nada de peru. Aliás, se a gente
tiver comida na mesa, já será uma grande coisa.
Nada de presentes, Papai Noel. Não quero mais aquela bicicleta com a qual
sonho há tanto tempo. Bicicletas custam caro. E além disso é uma coisa perigosa.
O cara pode cair, pode ser atropelado por um carro... Nada de bicicleta.
Nada de DVD, Papai Noel. Afinal, a gente já tem uma TV (verdade que de
momento ela está estragada e não temos dinheiro para mandar consertar), mas
DVD não é coisa tão urgente assim.
Também quero desistir da roupa nova que lhe pedi e dos sapatos. A minha
roupa velha ainda está muito boa, e a mamãe vai fazer os remendos nos rasgões.
E sapato sempre pode dar problema: às vezes ficam apertados, às vezes caem do
pé... Prefiro continuar com meus tênis e o meu chinelo de dedo.
Ou seja: nada de Natal, Papai Noel. Para mim, nada de Natal. Agora, se o
senhor for mesmo bonzinho e quiser nos dar algum presente, arranje um emprego
para o meu pai. Ele ficará muito grato e nós também. Desejo ao senhor um Feliz
Natal e um próspero Ano Novo."
Folha de São Paulo (São Paulo) 19/12/2005
2. Felicidade não se compra. Nem mesmo pela internet
"Sofá de dois lugares, seminovo: produtos como esse podem sair de sua casa
e serem vendidos com a ajuda da internet.".
Folha Informática, 23.mar.2005
Ele adorava o sofá de dois lugares que estava no living. A mulher odiava o
sofá de dois lugares que estava no living. Ele adorava o sofá de dois lugares que
estava no living porque era ali que, todas as noites, se instalava para assistir a TV
até altas horas. A mulher odiava o sofá de dois lugares que estava no living porque
era ali que, todas as noites, o marido se instalava para assistir a TV até altas
horas. E, vendo TV, o marido não queria fazer programas, não queria passear, não
queria nem conversar. Em desespero, ela ameaça vender o sofá por qualquer
preço.
O marido não acreditava. Porque a mulher não tinha jeito para negociar. Não
sabia falar com as pessoas, não sabia apresentar seu produto. Se dependesse de
sua habilidade para a venda, o sofá de dois lugares permaneceria no living por
muitos e muitos anos. De modo que ele ficou muito surpreso quando, voltando do
trabalho, não encontrou o sofá. Vendi, disse a mulher, triunfante. Ele não quis
acreditar, achou que fosse brincadeira. Ela explicou: graças à internet, tinha
vendido a uma pessoa que nem conhecia, que enviara um portador para entregar
o dinheiro e levar o sofá.
Aquilo deixou-o furioso. Queria o seu sofá de volta e exigiu da mulher o nome
do comprador. Ela simplesmente se recusou a revelar esse segredo.
Brigaram e, naquela noite, ele dormiu no outro quarto do apartamento, vazio
desde que a filha tinha casado. De madrugada, uma idéia lhe ocorreu. Correu a
verificar os e-mails da esposa e, de fato, ali estava a mensagem enviada pela
compradora, com nome, endereço, telefone.
No dia seguinte, ligou para essa mulher, disse que precisava vê-la com
urgência: assunto ligado à compra do sofá. Ela relutou, mas consentiu em recebê-
lo. Ele foi até a casa, num bairro afastado. E ali estava a mulher, ainda jovem, a
esperá-lo. No living, diante da TV, o sofá de dois lugares.
Que ele quis comprar de volta. Ela recusou; gostara do sofá, não o venderia.
Ele recorreu a todos os argumentos, sem resultado, quis até pagar o dobro da
quantia que ela havia despendido. Nada, ela mostrava-se irredutível, e ele acabou
desistindo.
Antes de ir embora, porém, resolveu perguntar quem sentava ao lado dela no
sofá.
Ninguém, foi a resposta. Divorciada, estava sozinha havia algum tempo.
Comprara um sofá de dois lugares porque tinha esperança de, um dia, arranjar um
companheiro.
Ele tem ido à casa da nova proprietária do sofá. Senta-se ao lado dela para
ver TV, coisa que adora. No começo, ela gostava da companhia.
Mas agora já não acha o arranjo tão bom: o homem não quer fazer
programas, não quer passear, não quer nem conversar.
Ela pensa seriamente em vender o sofá. Não é muito hábil nessas coisas,
mas tem certeza de que, através da internet, resolverá o problema.
Folha de São Paulo (São Paulo) 28/03/2005
3. A volta do filho pródigo
"Cerca de 30 mil crianças e adolescentes fogem todo ano no Brasil. Oitenta
por cento voltam para casa. Dificuldades com a família e busca de independência
são as causas mais freqüentes das fugas. A volta é acompanhada de
arrependimento".
Folhateen, 28.mar.2005
Meus pais não me compreendem, ele pensava sempre. As brigas, em casa,
eram freqüentes. Os pais reclamavam do som muito alto, das roupas estranhas,
das tatuagens. Revoltado, decidiu fugir de casa. Sabia que, para seus velhos,
aquilo seria uma dura prova: afinal, ele era filho único. Mas estava na hora de
mostrar que não era mais criança. Estava na hora de dar a eles uma lição. Botou
algumas coisas na mochila e, uma madrugada, deixou o apartamento. Tomou um
ônibus e foi para uma cidade distante, onde tinha amigos.
Ali ficou por vários meses. Não foi uma experiência gratificante, longe disso.
Os amigos só o ajudaram na primeira semana. Depois disso ficou entregue à
própria sorte. Teve de trabalhar como ajudante de cozinha, morava num barraco,
foi assaltado várias vezes, até fome passou. Finalmente resolveu voltar. Mandou
um e-mail, dizendo que estaria em casa daí a dois dias. E, lembrando que a mãe
era uma grande leitora da Bíblia, assinou-se como "Filho Pródigo".
Chegou de noite, cansado, e foi direto para o prédio onde morava. Como já
não tinha chave do apartamento, bateu à porta. E aí a surpresa, a terrível surpresa.
O homem que estava ali não era seu pai. Na verdade, ele nem sequer o
conhecia. Mas o simpático senhor sabia quem era ele: você deve ser o Fábio,
disse, e convidou-o a entrar. Explicou que tinha comprado o apartamento em uma
imobiliária:
- Seus pais não moram mais aqui. Eles se separaram.
A causa da separação tinha sido exatamente a fuga do Fábio:
- Depois que você foi embora, eles começaram a brigar, um responsabilizando
o outro por sua fuga. Terminaram se separando. Seu pai foi para o exterior. De sua
mãe, não sei. Parece que também mudou de cidade, mas não sei qual.
Fábio não agüentou mais: caiu em prantos. O homem se aproximou dele,
abraçou-o. Entre aqui no seu antigo quarto, disse, tenho uma coisa para lhe
mostrar. Ainda soluçando, Fábio entrou. E ali estavam, claro, o pai e a mãe, ambos
rindo e chorando ao mesmo tempo. Tinha sido tudo uma encenação. Abraçaram-
se, Fábio jurando que nunca mais sairia de casa.
A verdade, porém, é que não gostou da brincadeira, mesmo que ela tenha lhe
ensinado muita coisa. Os pais, ele acha, não podiam ter feito aquilo. Se fizeram, é
por uma única razão: não o compreendem. Um dia, ele terá de sair de casa. Mais
tarde, naturalmente, quando for homem, quando tiver sua própria casa. Só que aí
levará os pais junto. Pais travessos como os que ele tem precisam ser controlados.
Folha de São Paulo (São Paulo) 04/04/2005
4. Continente e conteúdo
Uma frase pronunciada pelo presidente Lula durante um jantar na embaixada
do Brasil em Tóquio quase provocou outra tensão diplomática entre Brasil e
Argentina. O principal jornal do país vizinho, o "Clarín", reproduziu informações da
coluna do jornalista Fernando Rodrigues, na Folha, de que o presidente brasileiro
disse a interlocutores que "temos de ter saco para aturar a Argentina". A frase,
entretanto, foi traduzida pelo diário como "hay que tener bolas para bancar a los
argentinos", o que pode ser interpretado não no sentido que tem a expressão em
português, de ter paciência, mas sim algo parecido com "temos de ser machos
para agüentar os argentinos".
Folha Brasil, 31.05.2005
Como atesta qualquer tratado de embriologia, os testículos nascem em um
recôndito lugar do abdome, mais precisamente junto aos rins. Ali poderiam ficar,
desempenhando tranqüilamente sua função de gerar os espermatozóides que
darão continuidade à espécie. Mas, por alguma razão, os testículos (e nisso, como
no resto, embora sendo dois estão sempre de acordo) não se resignam com tal
posição anatômica, por eles considerada incompatível com a dignidade de órgãos
que, afinal, representam a masculinidade. Junto aos rins, junto às tripas? Jamais.
De modo que trataram de migrar. Num movimento tipo invasões bárbaras,
começaram a descer abdome abaixo. Queriam mais luz. Queriam visibilidade,
queriam exposição. Queriam criar uma imagem própria, porque, como se sabe,
imagem é tudo.
Para desagradável surpresa de ambos, contudo, não ficaram à mostra como
acontece com os seios. Foram dar, literalmente, num "cul-de-sac", num fundo de
saco, e, pior ainda, num engelhado saco de pele conhecido como escroto, palavra
de óbvia conotação pejorativa.
A fúria de ambos foi enorme, e eles a despejaram no alvo mais próximo e
mais inerme, exatamente o tal saco escrotal. Você é um saco, diziam sem cessar,
você não passa de um medíocre desmancha-prazeres. O pobre escroto nada
respondia. Estava acostumado a um papel subsidiário na anatomia; apenas
obtinha algum consolo quando o seu dono -mas só quando não tinha o que fazer -
coçava-o distraidamente (e nisso, ao contrário do que diziam os testículos, parecia
obter certa satisfação).
De dentro do seu modesto invólucro, os testículos continuam se gabando:
somos muito machos, repetem a todo instante, não temos paciência com os
perdedores. E prometem que um dia virão à luz, proclamando ao mundo seu poder
hegemônico sobre o continente.
Haja saco para aturar esses caras, pensa o escroto. Pensa, apenas. Saco,
como se sabe, não fala.
Folha de São Paulo (São Paulo) 06/06/2005
5. Os dilemas da Fortuna
Uma americana de 55 anos ganhou duas vezes na loteria no espaço de cinco
meses no Estado da Pensilvânia -uma coincidência cuja chance de acontecer é de
1 em 419 milhões. Donna Goeppert ganhou US$ 1 milhão (R$ 2,43 milhões) em
cada vez que foi premiada pela loteria da Pensilvânia.
Folha Online, 16.06.2005
Dizem que um raio não cai duas vezes no mesmo lugar, mas a chance de
acertar duas vezes na loteria não deve ser muito maior. Quando isso aconteceu,
ela ficou simplesmente estarrecida, mesmo porque não era uma pessoa
particularmente afortunada: ao contrário, ela e o marido levavam uma vida
modesta, no interior, lutando com dificuldades. Agora, porém, tudo mudava: 1
milhão de dólares, e mais 1 milhão de dólares -duas vezes milionária ela podia
pensar em se aposentar, em deixar de trabalhar, em passar o resto de seus dias
gozando a vida.Não era o que pensava o marido.
Logo depois da notícia do prêmio ele ficara muito contente. Em seguida,
porém, começou a se mostrar inquieto. Homem dado a certas especulações
esotéricas, acreditava que aquilo não era acaso, mas sim um desígnio do Destino.
Há um recado aí, repetia constantemente à mulher. Um claro recado, para ele: a
mulher deveria apostar de novo. Quem tinha ganhado duas vezes seguramente
ganharia uma terceira vez. Mais: ele passou a acreditar que a mulher, para quem
aliás nunca dera muito bola, era uma criatura especial. Aquele tom meio
esverdeado de sua pele, aqueles olhos esbugalhados, os cabelos que - por causa
do curioso penteado - pareciam duas antenas, aquilo não apontaria para uma certa
origem misteriosa? Não seria ela uma alienígena, uma Supermulher, deixada ainda
bebê na maternidade do lugarejo, em lugar de outra menina qualquer? Ela deveria
jogar na loteria, sim. Jogaria e ganharia. Mesmo porque, como ele deixava claro,
não se tratava só de dinheiro. Ganhando três vezes na loteria ela deixaria de ser
apenas uma pessoa de sorte, passaria a ser uma mulher abençoada, prodigiosa. E
aí mil possibilidades surgiriam: ela poderia, por exemplo, dar início a uma nova
seita (para a qual ele já tinha até um nome: a Falange dos Afortunados). Poderia
fornecer franchising para videntes e adivinhos. Poderia começar uma carreira
política, chegando, sem dúvida, à Presidência da República: quem deixaria de
votar numa mulher capaz de prever o resultado de qualquer guerra?
Os argumentos do marido deixavam-na apreensiva. Por ela, nunca mais
chegaria sequer perto de uma lotérica. Mas sabe que ele ainda dá as cartas. Não
escapará, portanto: um dia terá de apostar de novo. Se isso for realmente
inevitável, sabe o que fazer: usará seus 2 milhões de dólares para comprar
bilhetes de loteria. Um deles forçosamente terá de ser premiado. O Destino não
pode ser tão ruim assim.
Folha de São Paulo (São Paulo) 20/06/2005
6. Biocombustível
Cientistas de Cingapura criaram uma bateria que gera eletricidade a partir da
urina.
Folha Online, 17 de agosto de 2005.
Quando leram sobre a bateria inventada pelos cientistas de Cingapura, os
quatro ficaram alvoroçados. Cientistas amadores, eles se reuniam há anos para
discutir projetos e inventos que em geral nunca saíam do papel. Mas a idéia da
bateria de urina parecia sensacional. Como disse um deles, o mais entusiasta do
grupo, tal invento revolucionaria o nosso mundo: uma fonte de energia
completamente alternativa que poderia figurar com destaque ao lado do biodiesel e
do álcool. Seria também uma colaboração para o saneamento básico. Por último, e
não menos importante do ponto de vista simbólico, recuperaria um produto do
organismo sempre desprezado. "Sai na urina" era uma frase que ninguém mais
diria. Lançaram-se, pois, ao trabalho.
A bateria de Cingapura na verdade era um microchip, para uso em
equipamento médico miniaturizado. A bateria que eles pretendiam era outra, uma
fonte de energia capaz de mover um carro elétrico, por exemplo, assim ajudando a
acabar com a crise do petróleo. Depois de muita pesquisa e depois de muitos
esforços conseguiram fabricar a tal bateria. Com uns 50 centímetros de altura e
outros tantos de largura não era pequena; além disso, tinha acoplado um tanque
onde seria depositada a urina que, através de uma reação química, produziria a
eletricidade.
Os primeiros testes se revelaram satisfatórios e eles estavam muito contentes,
mas aí se depararam com um problema. Como era de esperar, a bateria consumia
urina. Mas não era pouca urina. Para mantê-la funcionando, os quatro tinham de
fazer generosas contribuições, e mesmo assim não era suficiente. De modo que se
viram diante de uma questão - como aumentar a produção de sua própria urina?
Foi aí que um deles se lembrou da cerveja, da qual todos gostavam. Cerveja,
como se sabe, faz urinar; e graças às enormes quantidades que tomavam,
urinavam muito. Ficaram alegrinhos, também, mas isso só fazia aumentar o
otimismo deles.
Logo se deram conta de que cerveja não era suficiente. Precisavam de mais
urina. Há substâncias que fazem urinar, os diuréticos, mas aí eles teriam de correr
a toda a hora para o banheiro e corriam o risco da desidratação. Isso sem falar na
relação custo-benefício: com o que já tinham gasto em cerveja e com o que
gastariam em diuréticos, provavelmente a bateria deixaria de ser rentável.
Acabaram abandonando o projeto. A bateria ainda está lá, no banheiro do
escritório que eles partilham. Cada vez que um deles entra para fazer xixi, a
geringonça solta umas faíscas. É, por assim dizer, uma manifestação de
esperança, de confiança na imaginação criativa dos cientistas amadores.
Folha de São Paulo (São Paulo) 29/08/2005
7. Como vencer o jogo da corrupção
Corrupção na política vira jogo. Empresário lança "Escândalo!", que traz
parlamentares como personagens. É um jogo recheado de fraudes e chantagens.
Folha Brasil, 15.09.2005
Um novo jogo está sendo lançado no país e, ao que tudo indica, logo terá
muitos aficcionados. Não é fácil de disputar, mas está na ordem do dia. Aqui vão
algumas dicas para aqueles que estão interessados. Veja como vencer o jogo da
corrupção:
1. Posicione-se adequadamente na estrutura política. Para dirigir o tráfico de
influências, é imprescindível estar por cima. Quanto maior a altura, maior o tombo?
Talvez. Mas também quanto maior a altura, maiores as oportunidades.
2. Descoberto, negue. Negue com veemência, com convicção, com
indignação, se possível. Fale em armação, fale em provas forjadas, fale até em
conspiração. Descreva-se como vítima, como perseguido, como mártir.
3. Aperfeiçoe sua cara-de-pau. Você deve ter completo e absoluto domínio
sobre seus músculos faciais. É preciso, por exemplo, olhar fixamente para a
câmera de TV. Não pisque. Qualquer bater de pálpebras pode ser uma evidência
contra você.
4. Crie suspense. Anuncie que você tem um documento secreto, sensacional -
mas que só vai exibi-lo no momento adequado. Enquanto todos ficam aguardando
o momento adequado, você aproveita o tempo para ganhar fôlego e pensar em
algum outro truque.
5. Não confie em ninguém. A corrupção não gera amigos, gera sócios -e é
uma sociedade transitória, pronta para ser desmanchada quando as tramóias vêm
à luz.
6. Se nada mais der certo, parta para a solução extrema: defenda a
corrupção. Isto mesmo: defenda a corrupção. Você dirá que para tanto é preciso
uma boa dose de cinismo, mas às vezes o cinismo é a única alternativa que resta
a quem está contra a parede. Sustente que a corrupção não passa da continuação
dos negócios por outros meios, que é o único recurso contra a pesada burocracia
estatal, que tantos problemas tem causado à economia. Descreva a corrupção
como uma espécie de lubrificante social, criado exatamente para facilitar as coisas
àqueles que têm o senso de oportunidade. Retorne ao argumento do "rouba mas
faz", evocando políticos que enriqueceram ilicitamente mas que não deixavam de
ser grandes empreendedores. Descreva a propina e a comissão como retribuição
informal de serviços prestados, muitas vezes por pessoas cujos salários não estão
à altura de seu talento e de sua esperteza. Pondere que no orçamento de uma
obra que custa, digamos, R$ 100 milhões, 1 milhão a mais ou a menos não fará
muita diferença; o importante é que a obra seja realizada (e inaugurada). Enfim,
tenha convicção. E confie no inesperado. É um elemento sempre presente no jogo
da corrupção.
Folha de São Paulo (São Paulo) 19/09/2005
8. Contra a pirataria
Dupla assalta joalheria e escolhe marcas de relógio para levar. Um dos
ladrões abordou uma vendedora de uma joalheria que inspecionava a vitrine; o
assaltante levantou sua blusa, mostrando uma arma à vendedora. Dentro da loja,
outras vendedoras foram rendidas e obrigadas a recolher relógios das marcas
Breitling, Omega e Mont Blanc da vitrine.
Folha Online, 18 de outubro de 2005
Os dois assaltantes, um alto e robusto, outro baixo e magrinho, eram
experientes e organizados. Sabiam exatamente as marcas de relógio que queriam;
coisa fina, nada de despertadores baratos. Examinavam cada relógio que era
trazido da vitrine pelas vendedoras, antes de colocá-los numa valise. Lá pelas
tantas surgiu um problema. Olhando um caríssimo relógio Breitling, o alto e
robusto, que aparentemente era o chefe, teve uma súbita suspeição:
- Acho que este aqui é falso.
Mostrou ao colega, que ficou em dúvida: podia ser falso ou não. Na dúvida
chamaram a vendedora-chefe. Que ficou indignada:
- Falso, em nossa relojoaria? A loja mais famosa da cidade? Uma loja que
está há 30 anos no ramo, que tem clientes famosos? Ora, façam-me o favor,
amigos. Assalto, sim; ofensa, não. Levem tudo, mas nos respeitem.
Os assaltantes não se deixaram impressionar pela retórica. Afinal, como disse
o baixinho, a pirataria campeava. Se CDs eram pirateados, por que não relógios,
mercadoria mais valiosa e cobiçada? Queriam provas de que o Breitling era
verdadeiro. A vendedora-chefe pediu licença, foi até o escritório e voltou com um
documento escrito em inglês. - O que é isto, perguntou o alto.
- É um certificado de autenticidade. Acompanha o relógio.
Os dois miraram o papel com desconfiança. Não sabiam inglês; além disso,
quem lhes garantia que o certificado de autenticidade era autêntico, e não uma
falsificação? Resolveram convocar o dono da relojoaria para esclarecer a questão.
A vendedora-chefe resistiu o quanto pôde, mas, com um revólver encostado no
crânio, não teve outro jeito: ligou para o dono, que aliás morava ali perto, pediu que
viesse para atender "dois clientes muito importantes". Vinte minutos depois o
homem chegava, esbaforido. Apesar da visível perturbação das vendedoras, não
desconfiou de nada, mesmo porque os assaltantes, bem vestidos, e com as armas
agora ocultas, pareciam mesmo clientes, e clientes muito cordiais.
- Eu tenho este relógio Breitling -disse o alto- que estou pretendendo trocar.
Queria sua valiosa opinião: é falso ou verdadeiro?
Para o dono da loja, um veterano no ramo, bastou um olhar: é falso,
proclamou. E aí mostrou o relógio que tinha no pulso:
- Este, sim, é verdadeiro.
Escusado dizer que os assaltantes levaram o Breitling verdadeiro. E o fizeram
com absoluta tranqüilidade. Deve-se confiar na palavra de quem entende do
assunto.
Folha de São Paulo (São Paulo) 24/10/2005
9. Parada obrigatória
"1.000 Lugares para Conhecer Antes de Morrer", best-seller mundial da
americana Patricia Schulz lançado no Brasil pela Sextante, traz cerca de 20
paradas obrigatórias no país.
Mônica Bergamo, 23 de abril de 2006
Tão logo ele tomou conhecimento dos mil lugares imperdíveis no mundo,
decidiu: seria o primeiro brasileiro a conhecê-los todos. Homem muito rico,
recursos para isso não lhe faltariam. Pretendia, inclusive, realizar este périplo em
tempo recorde, em primeiro lugar para dar à façanha ainda maior destaque e
depois porque, pela idade, já não podia fazer planos a longo prazo. Assim, tudo o
que faria era entrar nos lugares mencionados na obra, tirar uma foto e seguir
adiante. Consultou um amigo, dono de uma grande agência de turismo. Sim, era
possível fazer aquilo em um ano, desde que ele alugasse um jatinho particular. O
que sem demora foi feito, e assim ele partiu, disposto a visitar pelo menos três
lugares por dia. Era difícil, mas ele o conseguiu e assim pouco a pouco foi riscando
os lugares de sua lista.
Deixou o Brasil para o fim. Em nosso país eram cerca de 20 lugares, a maioria
deles em São Paulo, cidade onde nascera e onde morava. Os amigos esperavam
que ali se encerrasse a gloriosa trajetória, mas seus planos eram diferentes.
Queria terminar com o Copacabana Palace, no Rio.
Havia uma razão para isso, uma razão muito especial. Anos antes ele se
apaixonara por uma mulher, uma jovem e linda carioca. Paixão tão fulminante, tão
avassaladora, que ele decidira largar tudo, esposa, filhos, empresas e viver com a
moça no Rio. Para tanto, haviam marcado um encontro no Copacabana Palace.
Encontro ao qual ele não compareceu. Chegou a viajar para o Rio e, no
aeroporto, tomou um táxi para ir ao famoso hotel, mas no meio do caminho
desistiu: não, não abandonaria tudo que havia conquistado por causa de uma
aventura amorosa. Voltou a São Paulo sem ir ao Copacabana Palace -no qual,
aliás, nunca entrara.
Agora, finalmente, adentraria o hotel. Não mais para uma aventura, mas para
gozar seus 15 minutos de fama. Seus assessores haviam avisado a imprensa, que
lá estaria para registrar o clímax da aventura, a chegada ao último dos mil lugares.
Já era noite quando o jatinho pousou no aeroporto. Ele tomou um táxi.
Nervoso: já estava atrasado. E, para cúmulo do azar, havia um congestionamento
em Copacabana. Decidiu completar o trajeto a pé, apesar das advertências do
motorista.
Já estava a uns 200 metros do famoso prédio da avenida Atlântica, quando o
assaltante lhe apontou o revólver. Ele fez um gesto - um gesto que queria dizer
leve tudo, mas não me retenha, tenho um encontro com o Destino - mas foi mal
interpretado: o homem achou que ele tentava reagir e disparou.
Caído no chão, agonizante, tinha apenas uma mágoa: havia um lugar, um
único entre mil outros lugares, que ele não veria antes de morrer. O problema,
concluiu antes de expirar, é que a gente não pode ter tudo o que se quer na vida.
Folha de S.Paulo (São Paulo) 01/05/2006
10. Namoro e vestibular
Namorados disputam vaga na USP. Fuvest leva casais a testarem não só o
conhecimento mas também sua relação afetiva.
Fovest, 22 de novembro de 2005.
Esta história aconteceu há muito tempo, numa época em que a fiscalização da
prova não era muito rigorosa. E só porque não era rigorosa que a história pôde
acontecer.
Júlio e Francesca foram fazer vestibular para medicina. Eles eram namorados,
amavam-se muito e, porque se amavam, tinham decidido seguir a mesma
profissão, que ambos, aliás, admiravam muito. Naturalmente, estudaram juntos
para o exame; mas aí havia uma diferença. Francesca, que era inteligente,
aprendia as coisas com facilidade. Júlio, que tinha um raciocínio mais lento, não
conseguia acompanhá-la. Mas, afinal, eram namorados e Francesca tratava de
ajudá-lo como podia, garantindo que no fim tudo correria bem e que seriam ambos
aprovados.
Veio o dia da prova, realizada no salão nobre da faculdade de medicina local,
que funcionava num antigo e majestoso prédio. O local não era grande e as mesas
não ficavam muito separadas. Júlio e Francesca sentaram-se juntos para realizar a
primeira prova, que era então a de química. Foram distribuídas as questões. Todos
puseram-se a trabalhar.
Júlio estava apavorado. Ele não sabia nada do que fora perguntado. Era como
se o conhecimento tivesse sumido de repente de sua cabeça. Notou então que o
único fiscal da prova olhava distraidamente pela janela. Aproveitou e, em voz
baixa, perguntou a Francesca qual era a resposta da primeira questão. Sem nem
sequer olhá-lo, ela respondeu, em tom baixo, mas firme, que colar no vestibular
era proibido.
Júlio não podia acreditar no que estava ouvindo. Francesca, a sua Francesca,
negava-se a ajudá-lo naquele instante de angústia? Aquilo representava um duplo
choque e ele ficou ali, imóvel, atarantado, sem saber o que fazer ou o que pensar.
Ao lado dele estava sentada Luciana. Amiga de ambos, ela nutria por Júlio
uma paixão secreta. Percebendo o que acontecia, e num impulso, sussurrou ao
rapaz a resposta da primeira questão. E depois a resposta da segunda, e a
resposta da terceira.
Júlio e Francesca foram aprovados, Luciana não -muito boa em química, ela
era fraca em física, e este exame acabou por excluí-la. Seu único consolo era ter
ajudado o amado.
Júlio e Francesca formaram-se há vários anos. Ambos são cirurgiões. Ah, sim,
e estão casados. O trabalho no campo operatório acabou por reaproximá-los. São
muito felizes. E nunca mencionam o dia em que fizeram o exame de química no
vestibular.
Folha de São Paulo (São Paulo) 28/11/2005
11. O carro com paixão
Garagem na sala. Pode até parecer loucura, mas alguns motoristas cobiçam
tanto um veículo que, quando conseguem comprá-lo, colocam-no dentro de casa.
Classificados/Veículos, 6 de novembro de 2005
Apaixonado por carros ele era, e desde criança. Sabia tudo sobre automóveis
antigos. O Ford modelo A? Dizia em que ano havia sido projetado, quantos
automóveis haviam sido vendidos na primeira leva. O Oldsmobile Ninety-Eigth
1957? Descrevia a grade do motor, o painel, o estofamento. O Chevrolet 1937?
Sabia até a potência do motor e onde, exatamente, ficava o botão do arranque.
Se pudesse, ele se tornaria colecionador. Compraria lendários modelos,
levaria para sua casa, montaria uma exposição permanente. Mas isso não podia
fazer. Em primeiro lugar, porque não tinha dinheiro. Auxiliar de escritório, mal
ganhava para sustentar a si próprio e à mulher. Em segundo lugar, não tinha
espaço para tais carrões: morava numa casinha de subúrbio, sem garagem, sem
quintal.
Mas aí o destino interveio. Através de um amigo ficou sabendo do falecimento
de um famoso colecionador - cuja esposa, que detestava a paixão do marido,
estava se desembaraçando dos carros por preços relativamente acessíveis.
Esperançoso, foi até lá. Mas chegou tarde: todos os antigos modelos haviam sido
comprados. Com exceção de uma enorme limusine, daquelas usadas em Nova
York para transportar celebridades e que ninguém comprara, exatamente por
causa do tamanho.
- Sabe de uma coisa? - disse a senhora. - Se você quiser, pode levar esse
trambolho de graça. Já estou farta dessa coisa.
Quase sem acreditar no que ouvia, ele entrou na limusine e deu a partida. A
mulher abanou para ele e entrou na casa, aliás um palacete. Tripulando o carrão (e
chamando a atenção de todo mundo) foi para casa.
A mulher se desesperou. Onde colocariam aquilo? Dentro de casa, disse ele.
Naquele fim de semana demoliu a parede da frente, introduziu a limusine no
recesso do lar e tornou a edificar a parede. Mas o veículo era tão grande que
tiveram de retirar todos os móveis da sala-quarto, inclusive a cama. O que não
seria um problema: ele deu o jeito de transformar a limusine em quarto e em sala.
A esposa, que nunca reclamava de nada, aceitou o arranjo. E, assim, realizaram
um sonho dele: moravam num automóvel, aliás com bastante conforto.
Poderiam ter sido felizes para todo o sempre, se não fosse o mecânico que
ele chamou para consertar um pequeno defeito no carro. A mulher se apaixonou
pelo homem, aliás muito bonito, e fugiu com ele.
O colecionador viu os dois saindo, ela de mala na mão. Pensou em ir atrás
deles, na limusine. Mas para isso teria de usar o carrão para demolir a parede da
frente. E ele jamais arranharia uma pintura tão bem conservada.
Folha de São Paulo (São Paulo) 14/11/2005