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Elísio Estanque*
Jornal PÚBLICO, 18.10.2012


                             Alternativas e protagonistas
   Já se percebeu que os cidadãos estão fartos e que o governo está a atingir o fim da
linha. No entanto, mais do que discutir o que aí vem no imediato (manter o mesmo
governo, remodelado; governo de iniciativa presidencial; ou eleições antecipadas), é
necessário refletir sobre o que vem ocorrendo no país no plano sociopolítico e como
poderão preparar-se as alternativas de futuro, com os atuais ou com novos
protagonistas.

   Nos últimos tempos têm surgido sinais de que a nossa democracia se reforçou na
sociedade ao mesmo tempo que se agravou a entropia e o processo de corrosão das
instituições. Parece paradoxal – e perigoso – que a democracia participativa germine
no mesmo terreno onde definha a democracia representativa. Mas é isso que vem
acontecendo: os cidadãos contestam os políticos que temos mas no respeito pelos
direitos democráticos (por enquanto). Ora, num país onde a reflexão aberta e
participada é tão escassa e o protagonismo político se esgota em geral nos partidos,
pode dizer-se que as recentes manifestações, iniciativas cidadãs, movimentos e
debates (por exemplo, o Congresso Democrático das Alternativas) que circulam na
esfera pública e nas redes sociais representam um riquíssimo potencial para a
construção das alternativas de amanhã. Há um segmento politizado da sociedade
portuguesa que não se resigna com a atual situação e pretende, além de contestar o
governo e a troika, pressionar as esquerdas a entenderem-se para viabilizar um projeto
diferente para o país, e isso pode ser o prenúncio de um novo ciclo na política
portuguesa.

   A recusa da austeridade como solução para a crise (rejeição do memorando da
troika e das políticas do atual Governo PSD/PP); a renegociação das condições do
resgate e a necessidade de mais equidade na distribuição dos sacrifícios; e a
prioridade ao crescimento e emprego – são exigências que parecem gerar um amplo
consenso entre as esquerdas, e até para além delas. Mas então porque é tão difícil
constituir uma base de aproximação entre os atuais partidos da esquerda?

   Primeiro, porque a aparente clareza das propostas não chega para criar alianças
alargadas, já que as boas intenções tropeçam quase sempre nos interesses
escondidos, nas ambições, invejas e agendas pessoais (dentro e fora do campo
partidário). Segundo, porque os partidos cresceram na base de redes de afinidades e
discursos identitários assentes na diabolização dos adversários – não apenas das
ideologias ou dos líderes rivais mas também dos que fazem parte do mesmo campo e
até do mesmo partido –, de tal forma que, para os quadros e militantes comuns, essa
narrativa confunde-se com a própria razão de ser das suas atividades e rotinas
quotidianas. Terceiro, porque o debate democrático interno e a abertura à sociedade
foram cedendo o lugar ao caciquismo e à “contagem de espingardas”, deixando as
estruturas na dependência dos “apoios” e voluntarismos dedicados mas oportunistas,
nas mãos de pequenos poderes individuais e muitas vezes de gente medíocre.

   O país encontra-se, hoje, numa situação de exceção e à beira de um cataclismo
social. Com a sua soberania limitada, não depende apenas de si próprio, pelo que as
respostas e alianças adequadas terão de funcionar em diferentes escalas (temporais e
espaciais). Por isso, qualquer alternativa, terá de definir não só objetivos imediatos mas
também de médio prazo, e nenhuma agenda política terá sucesso se não souber
conjugar uns e outros. Acresce que as propostas que agora se desenham no debate
público só podem ter reais efeitos na condição de uma nova maioria parlamentar capaz
de as pôr em prática. Todavia, parece evidente que só lá chegaremos com outros
dirigentes políticos e não com os atuais, porque a viabilidade das alternativas depende
não só dos conteúdos mas sobretudo dos protagonistas. E a atual situação de exceção
exige líderes excecionais, que neste momento não temos.

   Em suma, o crescente descontentamento popular terá certamente repercussão nas
instituições, e espera-se que as ruturas ocorram simultaneamente no interior dos atuais
partidos e fora deles. Como a história nos tem ensinado, é no âmago da efervescência
e da conflitualidade social (em Portugal ainda no seu início) que se desenham as
grandes viragens e que as novas lideranças podem emergir. Os líderes do futuro serão
aqueles que melhor se apresentem ao povo com um discurso claro e consistente e
uma credibilidade insuspeita. Porém, o risco é que, num clima de caos e desespero
como o que se avizinha, a demagogia e o populismo podem ameaçar o regime
democrático.

__
* Investigador do Centro de Estudos Sociais e professor da
Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra

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  • 1. Elísio Estanque* Jornal PÚBLICO, 18.10.2012 Alternativas e protagonistas Já se percebeu que os cidadãos estão fartos e que o governo está a atingir o fim da linha. No entanto, mais do que discutir o que aí vem no imediato (manter o mesmo governo, remodelado; governo de iniciativa presidencial; ou eleições antecipadas), é necessário refletir sobre o que vem ocorrendo no país no plano sociopolítico e como poderão preparar-se as alternativas de futuro, com os atuais ou com novos protagonistas. Nos últimos tempos têm surgido sinais de que a nossa democracia se reforçou na sociedade ao mesmo tempo que se agravou a entropia e o processo de corrosão das instituições. Parece paradoxal – e perigoso – que a democracia participativa germine no mesmo terreno onde definha a democracia representativa. Mas é isso que vem acontecendo: os cidadãos contestam os políticos que temos mas no respeito pelos direitos democráticos (por enquanto). Ora, num país onde a reflexão aberta e participada é tão escassa e o protagonismo político se esgota em geral nos partidos, pode dizer-se que as recentes manifestações, iniciativas cidadãs, movimentos e debates (por exemplo, o Congresso Democrático das Alternativas) que circulam na esfera pública e nas redes sociais representam um riquíssimo potencial para a construção das alternativas de amanhã. Há um segmento politizado da sociedade portuguesa que não se resigna com a atual situação e pretende, além de contestar o governo e a troika, pressionar as esquerdas a entenderem-se para viabilizar um projeto diferente para o país, e isso pode ser o prenúncio de um novo ciclo na política portuguesa. A recusa da austeridade como solução para a crise (rejeição do memorando da troika e das políticas do atual Governo PSD/PP); a renegociação das condições do resgate e a necessidade de mais equidade na distribuição dos sacrifícios; e a prioridade ao crescimento e emprego – são exigências que parecem gerar um amplo
  • 2. consenso entre as esquerdas, e até para além delas. Mas então porque é tão difícil constituir uma base de aproximação entre os atuais partidos da esquerda? Primeiro, porque a aparente clareza das propostas não chega para criar alianças alargadas, já que as boas intenções tropeçam quase sempre nos interesses escondidos, nas ambições, invejas e agendas pessoais (dentro e fora do campo partidário). Segundo, porque os partidos cresceram na base de redes de afinidades e discursos identitários assentes na diabolização dos adversários – não apenas das ideologias ou dos líderes rivais mas também dos que fazem parte do mesmo campo e até do mesmo partido –, de tal forma que, para os quadros e militantes comuns, essa narrativa confunde-se com a própria razão de ser das suas atividades e rotinas quotidianas. Terceiro, porque o debate democrático interno e a abertura à sociedade foram cedendo o lugar ao caciquismo e à “contagem de espingardas”, deixando as estruturas na dependência dos “apoios” e voluntarismos dedicados mas oportunistas, nas mãos de pequenos poderes individuais e muitas vezes de gente medíocre. O país encontra-se, hoje, numa situação de exceção e à beira de um cataclismo social. Com a sua soberania limitada, não depende apenas de si próprio, pelo que as respostas e alianças adequadas terão de funcionar em diferentes escalas (temporais e espaciais). Por isso, qualquer alternativa, terá de definir não só objetivos imediatos mas também de médio prazo, e nenhuma agenda política terá sucesso se não souber conjugar uns e outros. Acresce que as propostas que agora se desenham no debate público só podem ter reais efeitos na condição de uma nova maioria parlamentar capaz de as pôr em prática. Todavia, parece evidente que só lá chegaremos com outros dirigentes políticos e não com os atuais, porque a viabilidade das alternativas depende não só dos conteúdos mas sobretudo dos protagonistas. E a atual situação de exceção exige líderes excecionais, que neste momento não temos. Em suma, o crescente descontentamento popular terá certamente repercussão nas instituições, e espera-se que as ruturas ocorram simultaneamente no interior dos atuais partidos e fora deles. Como a história nos tem ensinado, é no âmago da efervescência e da conflitualidade social (em Portugal ainda no seu início) que se desenham as grandes viragens e que as novas lideranças podem emergir. Os líderes do futuro serão aqueles que melhor se apresentem ao povo com um discurso claro e consistente e uma credibilidade insuspeita. Porém, o risco é que, num clima de caos e desespero como o que se avizinha, a demagogia e o populismo podem ameaçar o regime democrático. __ * Investigador do Centro de Estudos Sociais e professor da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra