1. PÚBLICO, QUA 22 OUT 2014 | OPINIÃO | 47
No comporta-mento
de
multidão, a
racionalidade
individual é
esbatida ou
bloqueada
CLÁUDIA ANDRADE
A “praxe”
e o novo tribalismo
Por casualidade, quando
passava há uns dias atrás no
Jardim Botânico em Coimbra,
num dia chuvoso, apercebi-me
da existência de uma
ruidosa “festa” em redor do
lago artifi cial daquele parque.
Aproximei-me, olhei, vi e
fotografei: à volta de uma
centena de jovens, a maioria
trajada com fato académico, celebravam
uma atividade da “praxe”, rodeando o
perímetro do lago, onde uns quantos
caloiros (eles de um lado, elas do outro)
tomavam banho, encolhidos debaixo
de água e agarrados ao beiral, alguns a
tremer de frio, enquanto os “doutores”, de
colher de pau em riste, lhes despejavam
colheradas de água pela cabeça abaixo.
Alguns já tinham saído, ainda a tiritar e
embrulhados em capas, mas quando os
interpelei asseguraram-me que estavam
ali de espontânea vontade... Uns dirão que
isto não é “verdadeira” praxe, outros, como
estes, garantem que tudo acontece livre e
voluntariamente.
Como sociólogo, direi que não é a
consciência do indivíduo que explica as
dinâmicas de grupo. E esta é claramente
uma daquelas situações em que o contexto
da observação é bem mais revelador do
que a “opinião” do visado, e em que a
expressão facial dos banhistas “voluntários
à força” (tal como daqueles que são postos
“de quatro” ou alinhados e obrigados a
olhar para o chão, proibidos de rir, etc.) diz
muito mais do que as palavras balbuciadas
sob o olhar do “veterano” ou do “doutor”.
Mais: se a resposta individual não diz
muito, também a atitude de perseguição
dos “culpados” ou acusar todos de “bando
de energúmenos” e de “imbecis” não é
o melhor caminho para compreender o
fenómeno. Não é preciso ser-se sociólogo
para se saber que a “vivência” não é um
requisito decisivo para um conhecimento
rigoroso (às vezes até pelo contrário), tal
como não é preciso ser-se escravo para falar
de escravatura. Porém, a observação direta
destas cenas nas ruas de Coimbra ao longo
de quase 30 anos é uma preciosa fonte de
informação.
Tribalismo e multidão são aqui duas faces
da mesma moeda. Os comportamentos
de tipo “tribal”, próprios de comunidades
fechadas, ocorrem na sequência de
ritualismos previamente montados
por algum núcleo de comando (ou no
âmbito de uma organização secreta, por
exemplo), enquanto os comportamentos de
“multidão” tendem a ocorrer em situações
de emergência, perante uma ameaça
inesperada, uma catástrofe, um incêndio,
um ataque, ou um momento de exaltação e
excitação coletiva.
No primeiro caso,
o envolvimento
dos participantes
pressupõe uma
seleção prévia
e a existência
de ritos de
passagem, provas
de fi delidade aos
valores, princípios
e representações
por que se rege a
coletividade em
causa. No segundo,
os participantes
são levados
pela emoção,
pelo instinto de
sobrevivência
ou pelo próprio
contexto de
exaltação e radicalização fanática (como
por vezes ocorre em encontros de seitas
religiosas, em ações de gangs ou das claques
de futebol, por exemplo). Por vezes, as duas
lógicas encontram-se num mesmo ritual,
e isso acontece hoje em dia em diversos
contextos (sendo as praxes académicas um
deles, que não o único).
O lado “tribal” ou “medieval” de algumas
destas práticas remete ainda para a
componente de “espetáculo”, onde a massa
da assistência e em muitos casos os próprios
agentes da ação vivem o momento segundo
um efeito inebriante de entrega e adesão
acrítica à dinâmica do grupo. Há mais de
um século que isso foi tema de estudo pela
criminologia italiana (Gustave Le Bon,
1895), mostrando que, no comportamento
de multidão, a racionalidade individual
Professor da Faculdade de Economia e
investigador do Centro de Estudos Sociais
da Universidade de Coimbra
é esbatida ou bloqueada, enquanto a
irracionalidade é multiplicada, criando um
efeito mimético que atinge a “multidão”,
ou seja, a “massa” envolvida no espetáculo.
Jogos e brincadeiras sórdidas desse
calibre estiveram e estão presentes ao
longo de toda a Idade Média, servindo de
entretenimento do povo. Os linchamentos
públicos, as cadeias, os suplícios, a exibição
do “bizarro”, do defi ciente, os jogos que
incluem, por exemplo, anões jogados
contra a parede, etc., etc., foram durante
séculos práticas aceitáveis pelas sociedades
(e temas de análise crítica muito atual como
as de M. Foucault, N. Elias, entre outros).
É a esta luz que devemos refl etir sobre
os contornos atuais da “praxe” (ou de
adulteração da mesma). A sociedade
mudou, os valores sociais alteraram-se,
a opinião pública obedece hoje a outros
fundamentos, e há uma muito maior
visibilidade dos fenómenos sociais. Por
um lado, o papel dos media contribui para
que a notícia seja o que é chocante para
a sociedade, e não as situações comuns e
inócuas. Por isso mesmo, são as tragédias
(como a do Meco) e os casos associados
às praxes que mais contribuíram para
despertar a consciência crítica da sociedade
em relação aos abusos e práticas que
ocorrem sob o signo da praxe. Por outro
lado, a própria universidade mudou, abriu-se
à sociedade, massifi cou-se e tornou-se
um mercado para onde afl uem milhares
de jovens, incluindo muitos deles sem
qualquer formação ou background cultural
adquirido no seio da família de origem.
Assim, a universidade é hoje muito mais o
espelho da sociedade no seu conjunto do
que das suas elites. Enquanto no passado
os praxistas eram ao mesmo tempo
intelectuais e eruditos, hoje são acima de
tudo ignorantes da sua própria história.
A massa dos estudantes está longe de ser
homogénea, mas o seu número aumentou
a tal ponto que os comportamentos
“de massa” se tornaram mais comuns.
Concordo que é abusivo “confundir a
árvore com a fl oresta” e “acusar” do
mesmo jeito todos os que participam em
praxes. Há, sem dúvida, representações
e subjetividades muito distintas, mesmo
considerando apenas os “praxistas”.
Arriscaria, a título de hipótese de trabalho,
a existência de quatro tipos distintos:
1. Os “saudosistas” – trata-se sobretudo
de ex-estudantes que fi caram com uma
memória positiva das vivências da praxe,
num tempo em que havia mais “pureza”
e rigor na sua aplicação, e também uma
cultura académica mais consistente do
que a atual; 2. Os “ingénuos” – aqueles e
aquelas que vivem os momentos com a
atitude bondosa e bem-intencionada de
quem apenas se quer divertir, ignorando
totalmente o passado e o presente da
tradição académica; 3. Os “profi ssionais”
– neste incluem-se o “dux” e o “Conselho
de Veteranos”, que, por vezes, podem
exercer algum controlo sobre “excessos”,
mas justifi cam o statu quo na medida em
que dele depende o seu protagonismo; 4. E,
fi nalmente, os “fanáticos” – os estudantes
que aderem ao ritual da praxe com um
espírito de seita, que fazem da exaltação
praxista e dos seus ritos o principal espaço
de afi rmação, de reconhecimento coletivo e
de exercício do poder.
Evidentemente que à sociedade chocam
sobretudo os comportamentos e rituais
que fazem da humilhação o principal
condimento do show exibido em público.
Todavia, não é apenas a exibição, mas os
próprios atos que devem ser condenados
e punidos. De resto, o que mais me
inquieta enquanto cidadão é a presença
de mentes que confi guram aquela última
categoria a que chamei “fanáticos”. Só a
título de curiosidade, encontrei no “perfi l”
do Facebook de um daqueles meninos
“praxistas” que me insultou na rede, toda
uma iconografi a de referências satânicas,
simbologias próprias de organizações
secretas e uma linguagem de índole
nazi... (e, já agora, a referência a uma
claque de futebol). Mesmo que fosse só
um, isto parece-me muito preocupante
e sintomático dos tempos atuais. Mais
preocupante ainda se imaginarmos que
pode haver uma correlação direta entre
praxes – caciquismo – seguidismo –
associativismo – e aparelhismo ou, pelo
menos, esta sequência pode inscrever-se
nas trajetórias pessoais dos quadros e
dirigentes do futuro.
Debate Praxe
Elísio Estanque