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ETEC DE ARTES
TÉCNICO EM DANÇA
Stéphanie Mendes Saltoratto
O espetáculo de dança: sua sonoridade
Orientadora: Peticia Carvalho
São Paulo/SP
2013
Resumo
O objetivo desta pesquisa é identificar a relação entre música e dança
nos espetáculos de dança, relatando o processo de criação da sonoridade do
espetáculo do terceiro módulo de dança da ETEC de Artes, formandos do
primeiro semestre de 2013, analisando o aspecto de sons ambientes, o
conceito de silêncio, música, etc. A sonoridade na dança pode existir para base
de uma coreografia, como “música de fundo” e/ou como “guia” de sensações
para o público, então foram analisados os caminhos que constituem a
sonoridade no espetáculo, por meio de pesquisas nas áreas de Dança, Música
e Produção Musical. Identificando a presença da música e da dança também
no Jogo – que é a base de pesquisa do espetáculo “Não aperte o botão”.
Verificou-se como música e dança lidam com dimensões comuns (“esferas de
contato”1
), como intensidade, tempo e caráter e como elas se relacionam,
permitindo maior elaboração do espetáculo. A pesquisa abrange os aspectos
do som ambiente (sem música, porém ainda com sons), como o caminhar, a
voz, reações do público, palmas, etc. Identificando então uma característica
comum da dança e da música: de revelar os sentimentos humanos. Tais
relações foram experimentadas pelos alunos de dança da ETEC de Artes por
meio do processo de criação do espetáculo na disciplina MECC: Montagem de
Espetáculo: Criação e Composição. Também a partir do livro “Homo Ludens”
(Huizinga, Johan. 1955) que foi a base para o espetáculo no Trabalho de
Conclusão de Curso. Sendo de grande importância o conhecimento e o porquê
de cada atitude sonora em um espetáculo, a permissão ou não do acaso, a
existência do improviso tanto musical (quando ao vivo) quanto do bailarino
conforme as circunstâncias; sendo relevantes para bailarinos, músicos,
estudantes de arte e pesquisadores de cultura e todos aqueles interessados
pelo saber.
Palavras-chave: música; dança; silêncio; jogo; som.
Introdução
Música e dança fazem parte de minha rotina e estudos, então surgiu o
interesse de uni-las em uma pesquisa, relacionando-as e analisando como elas
dialogam entre si em um espetáculo de dança. Por meio de oficinas de
percussão corporal e diferentes formas de emitir sons, a turma formanda em
Dança da ETEC de Artes definiu a trilha sonora para o espetáculo de
conclusão de curso “Não aperte o botão”, o qual pude identificar o que aqui
relato, como o conceito de silêncio, como os dançarinos são influenciados pela
música, relacionando música, dança e jogo.
Passos e Compassos: Dança e Música
Embora a poesia, a música e a dança se separem por vezes
para seguir os gostos e as vontades dos homens, entretanto,
1
“Esferas de contato” descritas por Jorge Luiz Schoeder em “A música na dança: Reflexões de um
Músico”: 12.
como a natureza criou seus princípios para permanecerem
unidos e para contribuírem a um mesmo fim – que é o de levar
nossas ideias e sentimentos, tais como são, ao espírito e ao
coração daqueles a quem queremos comunicá-los -, essas
três artes nunca têm mais encanto do que quando estão
reunidas (BATTEUX, 2009: 147).
A relação entre música e dança existe desde os primórdios da comunicação do
homem, ocorrendo como expressão do sentimento2
. Sendo música e dança
interdependentes, “numa relação de quase simbiose”3
, relacionadas, segundo
Dalcroze: “A dança e a música sempre estiveram associadas em todas as
épocas. Essa união foi singularmente afrouxada no concurso do século
passado”. A música, por exemplo, “compreendia o canto, a dança, a
versificação e a declamação”4
e a dança “nasce dessa necessidade de dizer o
indizível, de conhecer o desconhecido, de estar em relação com o outro”5
.
Estas artes tem por característica expressar o que não é possível colocar em
palavras: “[...] Os tons da voz e os gestos têm sobre ela muitas vantagens: seu
uso é mais natural. Recorremos a eles quando nos faltam palavras”6
.
E, na relação com o outro, “isto é ainda mais evidente para outras artes como a
música ou a dança. O coro da tragédia grega primitiva cantava e dançava para
expressar e transmitir o que as palavras e a mímica não podiam expressar e
transmitir”7
. E quando passamos a nos referir a dança e música
separadamente, podemos diferenciá-las da seguinte forma:
Esta é a diferença fundamental entre música e dança: a
primeira é uma forma auditiva, e a segunda uma forma visual;
dessa diferença derivam quase todas as impossibilidades de
identificar uma com a outra (OSSONA, 1988: 23).
“Música e dança não são construções, são acontecimentos e, portanto,
envolvem todos os procedimentos sensíveis implicados nessa condição”8
sendo a música capaz de embutir sequências9
, “além dos movimentos
2
(BATTEUX, 2009: 54).
3
(PEREIRA, 2011: 16).
4
(BATTEUX, 2009: 134).
5
(GARAUDY, 1973: 8).
6
(BATTEUX, 2009: 135).
7
(GARAUDY, 1973: 22).
8
(SCHROEDER, 2000: 46).
9
(SACKS, 2007: 231). “Embutir sequências” no sentido de “cobrar” respostas corporais de quem ouve.
repetitivos de andar e dançar, a música pode permitir habilidades de
organizar”10
, mantendo na mente um “grande volume de informações”, sendo
este o “poder narrativo ou mneumônico da música”.
[A palavra, o gesto e a voz]11
Essas três expressões têm aqui,
não apenas todas as graças e toda a força natural, mas ainda
toda a perfeição que a arte pode acrescentar-lhes, quero dizer,
a medida, o movimento, a modulação e a harmonia, e é a
versificação, a música e a dança que constituem a maior
perfeição possível das palavras, dos tons da voz e dos gestos
(BATTEUX, 2009: 136).
Música e dança somam-se, completam-se, mas não perdendo suas respectivas
identidades (sendo auditiva e visual, por exemplo). A expressividade de ambas
aumenta potencialmente.
Muitas das minhas primeiras composições para dança
necessitavam, para se realizarem completamente, da
presença da dança; não eram músicas para se ouvir, mas para
se ver – ou melhor ainda, para se ver dançadas. [...]
Atualmente, a imagem que faço da música e da dança é a de
dois indivíduos que dialogam, se aproximam e se afastam,
brigam e se harmonizam, enfim, interagem (SCHROEDER,
2000: 126).
A sinestesia é comum quando tratamos de música e dança, sendo elas artes
que compartilham o indizível, agindo como guia de sensações:
Um exemplo do poder evocativo das construções musicais
está nas trilhas sonoras dos filmes de cinema. Associadas às
imagens, as trilhas adquirem o poder de “guiar” – até onde isso
seja possível – a resposta emocional da platéia. Na dança,
algo semelhante pode acontecer: a música, conforme o modo
como é usada, pode exercer essa mesma capacidade de
conduzir a cena coreográfica por caminhos previamente
projetados ou, ao menos, auxiliar na condução (SCHROEDER,
2000: 44).
Para Mary Wigman, por exemplo “a música deve ser composta ao mesmo
tempo, numa colaboração criadora entre o coreógrafo e o compositor. Esta
‘música sob medida’ não pode ser tirada de outra previamente composta”12
em
que “o músico-intérprete atua, ou melhor, deve atual como um co-autor da
10
(SACKS, 2007: 230)
11
Citados anteriormente pelo autor.
12
(GARAUDY, 1973: 108)
peça. Na dança, a interpretação de uma coreografia ocorre quando o dançarino
se transforma na própria dança”13
.
A música produz respostas corporais naqueles que a ouvem e sentem,
segundo Graziela Rodrigues, “o pulso são as vibrações da música captadas
pelo corpo”14
e de acordo com estudos de Daniel Levitin e Perry Cook, os
humanos tem uma memória muito apurada para andamento e ritmo e “as
chamadas respostas ao ritmo na verdade precedem as batidas de compasso
externas”15
. Os corpos absorvem os padrões rítmicos, entrando no “pulso” e
seguindo as vibrações da música, em que “a tendência ao equilibro de
forças16
entre sons e movimentos se manifesta e é solucionada do mesmo
modo. E, para a organização das articulações recíprocas, a presença do pulso
firme, marcado e do pedal de tônica17
forte e audível é imprescindível”18
.
Aperte o play: As artes “musicais” e o Jogo
Dançar é vivenciar e exprimir, com o máximo de intensidade, a
relação do homem com a natureza, com a sociedade, com o
futuro e com seus deuses (GARAUDY, 1973: 14).
É entendido que desde os primórdios da humanidade, os seres vivos possuem
a necessidade de se comunicar com outros de sua espécie através da arte. Por
meio de gestos, sons, toques; ocorrem as interações entre o ser e o meio, o ser
e si mesmo, o ser e seu próximo, o ser e os seres sobrenaturais. Suas formas
de comunicação são diversas, mas discorrerei sobre as de caráter lúdico,
especificamente sobre música, dança e jogo.
Segundo Paulina Ossona, música e dança nos começos da cultura não eram
apenas uma unidade, mas também representavam uma “entrega total e
absoluta de cada fibra do ser”19
e em todas as sociedades há uma função
coletiva e comunitária essencial da música: reunir pessoas e criar laços entre
13
(SCHROEDER, 2000: 119)
14
(RODRIGUES, 2007: 76).
15
(SACKS, 2007: 233)
16
Grifo meu.
17
Nota base que sempre soe.
18
(SCHROEDER, 2000: 76).
19
(OSSONA, 1988: 22).
elas20
. Música e dança então são manifestações do homem e de sua
necessidade de comunicação e interação. “Segundo uma velha crença
chinesa, a música e a dança têm a finalidade de manter o mundo em seu
devido curso e obrigar a natureza a proteger o homem”21
, e desta necessidade
de comunicação, metaforicamente, podemos afirmar que o mundo do homem
mantem seu devido curso e a natureza o protege.
A palavra μουσιχη tem uma amplitude muito maior que nossa
"música". Além de abranger o canto e a dança com
acompanhamento musical, abrangia também todas as artes e
habilidades presididas por Apolo e as Musas. Estas são
chamadas artes "musicais", para distingui-las das artes
plásticas e mecânicas que não pertencem ao domínio das
Musas. No pensamento grego, tudo o que é "musical" se
relaciona intimamente com o ritual (HUIZINGA, 1955: 178).
Considerando que “todo ritual autêntico é obra de canto, dança e jogo”22
, em
um ritual vemos as expressões mais íntimas de um ser, onde a música e a
dança estão profundamente relacionadas, intermediando a interação entre o
ser e o mundo.
O homem primitivo dispõe de poucas palavras. Quase
somente o que ele vê é que tem nome. Para exprimir os
sentimentos, serve-se de sons e cria a música que o ajuda a
exprimir júbilo, a tristeza, o amor, os instintos belicosos, a
crença nos poderes supremos e a vontade de dançar. Para ele
é parte da vida, a música, desde a canção do berço até a
canção de morte, desde a dança ritual até a cura dos doentes
pela melodia e pelo ritmo (PAHLEN, 1966: 14).
O homem percebe sua necessidade de expressão e que, muitas vezes,
palavras não são suficientes. “Entregamo-nos aos prazeres que se seguem à
inocência. O canto e a dança foram as primeiras expressões do sentimento”23
.
Sendo esta necessidade desde seu nascimento até sua morte, acompanhando
todas fases de sua vida e seus sentimentos, sejam de dor, de alegria ou
tristeza, saudade, solidão, etc.
Além de forma de expressão, interação e comunicação, as “artes musicais”
surgem como afirmação e conhecimento de um sujeito em sua comunidade e
de algo “além”, os quais este homem se dispõe a entregar cada fibra do seu
20
(SACKS, 2007: 237).
21
(HUIZINGA, 1955: 14).
22
(HUIZINGA, 1955: 178)
23
(BATTEUX, 2009: 54).
ser, pois o “seu mundo” é sua ação, seus movimentos, seus sons, sua vida e
como ele lida com o que há ao seu redor. “Desde a origem das sociedades, é
pelas danças e pelos cantos que o homem se afirma como membro de uma
comunidade que o transcende”24
.
O jogo está situado fora da sensatez, da seriedade e não possui dever com a
necessidade, verdade ou utilidade25
, assim como a música, que possui valores
que transcendem o tangível e concreto, valores que são definidos pelas
características que designamos, como ritmo e harmonia (características
comuns também no jogo e na poesia26
). A palavra “jogo” ou “jogar” não possui
somente o caráter lúdico que esta nos remete:
Merece especial interesse, do ponto de vista semântico, o
caso do inglês play, to play. Etimologicamente, a palavra
deriva do anglo-saxão plega, plegan, significando
originariamente "jogo" ou "jogar", mas indica também um
movimento rápido, um gesto, um aperto de mãos, bater
palmas, tocar instrumentos musicais, e todos os tipos de
exercício físico. (HUIZINGA, 1955: 31).
Verificamos então que dança, música e jogo estão profundamente
relacionados, desde a origem da palavra, que não os diferencia
especificamente, sendo que as “artes musicais” são caracterizadas pela ação e
“toda atividade musical possui um caráter essencialmente lúdico, é sempre
implicitamente aceite, embora nem sempre seja explicitamente formulado”27
e
se a música está na esfera lúdica, “o mesmo se pode afirmar, e em mais alto
grau, da irmã gêmea da música, a dança”28
.
O toque do instrumento, o canto e a linguagem de movimentos
criam danças, fundem-se ações expositoras de um único
percurso interno. Muitas vezes percebemos em meio às
celebrações ouvindo o corpo e vendo o som (PEREIRA, 2011:
15).
Não é que a dança tenha alguma coisa de jogo, mas, sim, que
ela é uma parte integrante do jogo: há uma relação de
participação direta, quase de identidade essencial. A dança é
uma forma especial e especialmente perfeita do próprio jogo.
(HUIZINGA, 1955: 184).
24
(GARAUDY, 1973: 19)
25
(HUIZINGA, 1955: 178)
26
(HUIZINGA, 1955: 178)
27
(HUIZINGA, 1955: 182)
28
(HUIZINGA, 1955: 183)
Concluímos então que o jogo e as “artes musicais” são interdependentes, e
“jogo”, em sua origem semântica, está relacionado ao movimento (ação), como
a música e a dança, que são as expressões de um ser para interação e
comunicação com o mundo, mantendo-o assim em harmonia.
A sonoridade no espetáculo “Não aperte o botão”
Diversas pesquisas e oficinas foram feitas com os bailarinos em busca da
identidade sonora de nosso espetáculo. Por exemplo, na cena com as bolinhas
de gude, queríamos explorar as diversas sonoridades possíveis com o cair da
bolinha no chão (de piso flutuante, no caso das salas da ETEC), o chacoalhar
das bolinhas nas mãos, etc. Infelizmente nossa tentativa com o som ao cair das
bolinhas foi frustrada ao chegarmos no local de apresentação, pois o chão da
“tenda” (na Biblioteca de São Paulo) não nos permite a reverberação do som
desejada, então optamos pela execução de uma trilha. Temos também
momentos de fala em que a apresentadora explica as regras dos jogos, as
cenas com os palhaços conversando sobre o botão, as cenas das corridas,
como a exploração dos limites de controle de ar quando os bailarinos
competem para testarem quem consegue correr falando “Aaa” por mais tempo,
as cenas em que não há trilha intencional (cena das bolinhas e a cena inicial
com a contagem regressiva). Também no jogo “Kinetec” em que podemos
analisar como o público assimila a informação “música e dança”, pois a música
é tocada e os competidores (do público) devem reproduzir os movimentos
coreografados pelos bailarinos juntamente com a música. A sonoridade para o
botão foi decidida pelo grupo analisando as propostas dadas em brainstorm,
chegando a conclusão de que deveria ser uma buzina acionada quando o
botão é pressionado, então pausando a cena e iniciando os jogos com o
público, e após o jogo, a pausa é encerrada e a cena é retomada.
Nossa experiência com a trilha sonora escolhida teve base nas oficinas
realizadas com o músico André Moraes, em que exploramos os sons que
nossos corpos poderiam produzir. Vivenciamos a musicalidade em percussões
corporais, o bater palmas de diferentes formas, os sons produzidos pela boca,
o ritmo marcado de diferentes formas. Então iniciamos o processo de gravação
das vozes, nos posicionamos em um círculo e cada bailarino deveria iniciar um
som e mantê-lo na pulsação determinada pelo grupo, adicionando o som um a
um de cada bailarino, até que o último bailarino produzisse o seu som também
(como assovios, palmas, sílabas, som de beijo, percussões corporais, falas,
onomatopeias como “poim”, “psiu”), iniciando assim sobreposições de vozes,
que poderiam ser pausadas pelo “regente” que escolhia quais bailarinos
deveriam continuar executando seus sons após o momento que o último
bailarino já produzia seu som escolhido.
O espetáculo inicia-se com a contagem regressiva de um número de 1 a 50
escolhido pelo público, então os bailarinos começam a contagem (e o destaque
é dado para as vozes contando) e a música inicia-se juntamente com a
primeira cena após o número 1 ter sido dito. Já nos jogos com o público não há
trilha sonora (com exceção do jogo de “Kinetec”, em que o jogador escolhe
qual sequência irá dançar a partir da música e da “pose” dos bailarinos) pois o
foco é ouvir a voz do jogador escolhendo os números dos bailarinos (no jogo
da memória) e ouvir a reação do público e do jogador (no jogo da corrida). O
mesmo é notado nas corridas somente entre os bailarinos, que a partir do “já”
começam a correr e o último a parar deve sair do jogo, então ruídos e sons de
reação dos bailarinos e do público são desejáveis como vaias, “ihhh”, “choca!!”,
“saiu” e também a reação sonora do bailarino comemorando ao vencer a
corrida do “Aaa”. No jogo das bolinhas coloridas (que são retiradas da caixa
pelo público), a atenção de quem carrega as bolinhas sorteadas está voltada
para a música pois, para que a cena ocorra conforme o planejado, as bolinhas
devem ser entregues ao bailarino que mostra as bolinhas para os jogadores em
determinado compasso e assim deve seguir a cena, os jogadores cumprindo os
movimentos (2 “tempos” para cada movimento) em alguns compassos e
movimentando-se nos intervalos (4 “tempos” para retomar os movimentos) e ao
ouvir (na trilha-sonora) “Um, dois, três, já!”, inicia-se a segunda sequência a
partir das bolinhas sorteadas.
As esferas de contato entre música e dança e as funções da música na
dança
Jorge Luiz Schroeder29
, em sua dissertação de mestrado “A música na dança:
Reflexões de um músico”, apresenta uma reflexão descrevendo como as duas
artes lidam com suas características comuns e então, a partir desta
comparação, aponta as funções e relações entre música e dança.
Primeiramente é preciso ressaltar que em sua tese:
Antes de mais nada, quero endossar a afirmação de que a
dança é uma arte independente. Irei discorrer sobre o uso da
música na dança, mas isso não implica que eu considere a
música indispensável a ela. Sei, inclusive, que existem
dançarinos e coreógrafos que concebem a dança como
concretização da música, mas o fato de darem ênfase à
musica nas suas criações nem fazem deles menos dançarinos
e nem desqualifica suas coreografias: continuam sendo
danças, assim como a ópera que, a despeito de conter urna
representação teatral, não e considerada teatro, e sim música -
e, portanto, continuam partilhando de uma mesma essência
(SCHROEDER, 2000: 4).
Passamos a considerar então dança e música como artes independentes e que
podem ser concebidas sem a obrigatoriedade da outra. Segundo Schroeder,
ainda que elas possuam características comuns, isto não as faz idênticas, e
talvez essas “características” possam ser tratadas como “mesmos elementos”,
que elas lidam de modo bastante diverso30
.
As esferas de contato
São apontadas três esferas de contato entre música e dança, a esfera
temporal, a esfera da intensidade e a esfera do caráter.
Sobre a esfera temporal:
A música, intimada pelas articulações sonoras, pelo padrão
cronométrico de caráter mais mental, pelas respirações
frasais, pelas possibilidades instrumentais das fontes sonoras
utilizadas e pelas características de propagação dos sons no
ambiente. A dança, (...) pelo encadeamento dos movimentos,
pelo apelo corporal nos padrões de tempo, pelo caráter
metabólico e físico das suas possibilidades musculares e
29
Doutor-pesquisador na área de música, linguagem e cultura. Professor no DACO (Departamento de
Artes Corporais) – UNICAMP.
30
(SCHROEDER, 2000: 23).
energéticas, pela respiração e pulsação sanguínea do corpo.
Juntas dividem seus limites e se beneficiam dessa estratégia,
ampliando o leque de caminhos temporais a serem trilhados
(SCHROEDER, 2000: 47).
A dança assim como a música trabalha com a esfera temporal,
só que a música se utiliza de sons e a dança de movimentos.
Estes são evidenciados na dança por meio da duração,
velocidade, rítmicas, pulsações regulares ou irregulares, enfim,
toda uma dinâmica temporal carregada de intenções
expressivas (SCHROEDER, 2000: 38).
O homem adquire assim como um novo poder e toma
consciência dessa transcendência da comunidade com relação
aos indivíduos. Este poder e essa transcendência estão
ligados ao ritmo dos gestos e à comunhão que esse ritmo
permite concretizar. A dança opera essa metamorfose:
transformando os ritmos da natureza e os ritmos biológicos em
ritmos voluntários, ela humaniza a natureza e dá poder para
dominá-la (GARAUDY, 1973: 19).
Sendo a esfera temporal algo comum entre música e dança, identificamos o
tempo corporal (por meio dos movimentos, em que dança é o “movimento
configurado pelo ritmo31
) e o tempo musical (tempo “métrico”, por meio dos
sons), em que a organização temporal é caracterizada pelo pulso. A esfera
temporal é a característica do tempo, envolvendo ritmo, pulsação, velocidade,
duração, etc.
A cena das bolinhas coloridas do espetáculo “Não aperte o botão” relaciona-se
diretamente com a esfera temporal. O sorteio das bolinhas, os movimentos dos
bailarinos, a troca dos grupos, toda cena está relacionada com a trilha-sonora e
intimamente ligada à esfera temporal.
Quer uma dança seja ou não acompanhada por música, ela se
move sempre em tempo musical; o reconhecimento dessa
relação natural entre as duas artes é subjacente à sua
afinidade universal (LANGER, 1953: 208).
Sobre a esfera da intensidade32
:
A esfera da intensidade relaciona-se com a dinâmica musical e a “resposta”
corporal a este estímulo, sendo intensidade caracterizada por energia e a
31
(NANNI, Dionísia). Tendo “ritmo” como duração e divisão do tempo.
32
Embora, musicalmente, intensidade corresponda à propriedade de um som ser mais forte ou mais fraco
(volume), o termo fará referência também “à energia, à força física, ao volume dos sons e, na dança, à
energia dos movimentos e sua dinâmica” (SCHROEDER, 2000: 36).
relação motora (respondendo corporalmente) ao ter a audição sensibilizada,
em que “constatamos a existência de uma ligação direta entre a pungência dos
sons e a reação muscular”33
.
Como a música, [a dança] pode repetir um movimento, invertê-
lo, combiná-lo com seus contrastantes ou análogos e criar
seqüências como frases que podem por sua vez ser respostas
desenvolvidas, invertidas etc (OSSONA, 1988: 17).
O ritmo incita nosso corpo. A tonalidade e a melodia incitam
nosso cérebro. A convergência do ritmo com a melodia lança
uma ponte entre o cerebelo (o pequeno cérebro primitivo,
responsável pelo controle motor) e o córtex cerebral (a parte
mais desenvolvida e humana do nosso cérebro) (LEVITIN,
2010: 296).
O dançarino pode identificar um “movimento musical” que “pede” um
movimento ou reação corporal, em que o ritmo e a melodia incitam nosso
corpo, e executá-lo de diversas formas, podendo combiná-lo, invertê-lo, etc.
A esfera da intensidade pode ser notada na cena com as bolinhas de gude, em
que os bailarinos movimentam-se com movimentos circulares e movimentos
que os bailarinos associam ao movimento das bolinhas.
Sobre a esfera do caráter:
Sendo esta esfera um “ambiente sonoro”, em que “caráter” não é “tão amplo
quanto estética e nem tão restrito quanto “clima” ou “ambiência””34
. Abrangendo
as “impressões, ambientações, climas, estados de humor e de sentimentos
sugeridos pela associação música e dança”, em que cabem as reflexões “de
ordem mais estética”35
.
Ela (a música) produz uma expectativa de acontecimentos
que, reforçada pela contribuição dos outros elementos
coreográficos, adquire uma força sugestiva inusitada, que
define o ambiente e o clima em que a ação vai ocorrer
(SCHROEDER, 2000: 55).
A esfera do caráter corresponde aos tecidos sonoros (sons específicos), em
que é possível a indução de estados de ânimo, por meio da escolha detalhada
33
(SCHROEDER, 2000: 47).
34
(SCHROEDER, 2000: 46).
35
(SCHROEDER, 2000: 19).
de timbres36
, fraseados37
, articulações38
e convenções sonoras. Escolhas
musicais que proporcionam o poder da sugestão, estimulando a imaginação do
público (situando-os circunstancialmente).
[...] cenário sonoro coerente com o encaminhamento da
trama, que irá complementar os significados dos movimentos.
A música, dentre as várias funções, deve exagerar nas
nuanças, revestir as ações de dignidade magnânima,
exacerbar as emoções, alinhavar os sentimentos e orientar as
conclusões
39
. Sobretudo ajudar a homogeneizar a fruição da
trama e unificar as impressões dela oriundas, através de
convenções codificadas (SCHROEDER, 2000: 77).
Neste caso, devo discordar do autor, pois nem todos os espetáculos mais
contemporâneos tem a música como objetivo para exacerbar as emoções,
alinhavar os sentimentos, exagerar nas nuanças, etc. Considerando que, ainda
assim, a música continua com sua característica de orientar conclusões e
“ambientar” o espectador. Como, por exemplo, no processo de criação da trilha
do espetáculo “Não aperte o botão”.
A música, penetrando os espíritos da maneira a mais imaterial,
é, por excelência, meio capaz de agir sobre os movimentos da
alma, como forma supremamente volátil e fluída (COLI, 1997:
s.n.).
E a partir desta relação, cada artista define em que trechos dará ênfase aos
aspectos musicais, destacando determinadas características e servindo de
“guia” para as sensações.
As funções da música na dança
Função bloqueadora: bloqueando “estímulos do “mundo real”, “envolvendo o
público no mundo virtual que a obra oferece, fazê-lo acomodar-se numa outra
36
Característica especifica de uma fonte sonora que nos permite reconhecê-la.
37
“A separação de notas sucessivas, uma por uma ou em grupos, pelo intérprete, e a forma que é feita. O
termo “fraseado” implica em um analogia linguística ou sintática, e desde o século 18, essa analogia tem
sido incluída na discussão dos grupos de notas sucessivas, especialmente em melodias” (CHEW, 2007:
1).
38
“O termo “articulação” se refere primeiramente ao grau que o intérprete destaca notas individualmente
das outras na prática (por exemplo “staccato” e “legato”). Essa distinção entre os dois termos foi
recomendada por Keller (1955); mas articulação em um aspecto mais abrangente é tida como referência
nas maneiras de cada parte em um trabalho – de quaisquer dimensões – que são divididas (ou unidas) às
outras” (CHEW, 2007: 1).
39
Grifo meu.
dimensão, com leis e regras próprias”40
, suplantando então os sons ambiente.
Esta função pode ser considerada como aquela que anula os sons ambientes,
que possivelmente tirariam a atenção do espectador, trazendo-o para um
ambiente com “regras próprias”.
Função atrativa: “acaba por exercer uma função complementar à do bloqueio
sonoro, quase como uma consequência dele”41
, sobrepondo-se aos ruídos do
ambiente, evidenciando-se. Esta função, derivada da bloqueadora, chama
atenção para a trilha que foi definida para o espetáculo, evidenciando-se em
relação aos outros possíveis sons ou ruídos ambiente, fazendo com que o
público esteja atento à música e não se distraia com outros sons não
planejados para o espetáculo.
Função dimensionadora: “A música contribui para que haja uma delimitação
melhor do espaço cênico da dança”42
, direta e indiretamente “por meio da
qualidade de ressonâncias, ecos e reverberações (defasagem) do som nos
ambientes; e um indireto, por meio das sugestões e climas que oferece aos
espectadores.”43
Reverberação e criação de ambientes que podem ser
manipulados em estúdio, sugerindo um outro ambiente (por meio de recursos
na produção musical). O isolamento acústico, amplificação dos instrumentos e
telas absorsoras44
influenciam diretamente a percepção sonora do espectador.
Sendo assim, a característica desta função é a criação de um “ambiente
sonoro” que, por meio destes recursos, pode fazer referência ao ambiente de
uma catedral, de um estádio de futebol ou de um shopping ou bar, por
exemplo, em que é planejado este controle parcial por meio dos modos de
propagação (fenômenos acústicos que são mensuráveis ou equipamentos
específicos para cada intenção sonora), sugerindo um ambiente psicológico
(possibilidade de uma nova formatação do espaço).
40
(SCHROEDER, 2000: 51)
41
(SCHROEDER, 2000: 53)
42
(SCHROEDER, 2000: 53)
43
(SCHROEDER, 2000: 54)
44
Telas absorsoras que possuem determinado índice de absorção para determinadas freqüências (Hz),
recursos acústicos para o controle da reverberação sonora.
Ela (a música) produz uma expectativa de acontecimentos
que, reforçada pela contribuição dos outros elementos
coreográficos, adquire uma força sugestiva inusitada, que
define o ambiente e o clima em que a ação vai ocorrer
(SCHROEDER, 2000: 55).
Função fluxo temporal: “Nessa função a música oferece a oportunidade do
manuseio, também parcial, da sensação de tempo decorrido”45
. Esta função
possui como característica a possibilidade de “manipulação de tempo”, fazendo
com que o público acompanhe e tenha esta “noção” da passagem de tempo de
acordo com a proposta do espetáculo, que pode ser tratada isoladamente do
tempo cronológico, em que o público geralmente “não vê o tempo passar”, “não
sabe que horas são” ou “fica perdido no tempo”.
Através dos recursos articulatórios da linguagem [musical]
pode-se obter saltos, dilatações e contrações de tempo. Em
outras palavras, a narrativa cria uma temporalidade própria,
relativa, isolada do fluir contínuo do tempo cronológico,
absoluto (CARRASCO, 1993: 125).
Pausa: O som e o silêncio
Na música, o silêncio é o vazio que realça o som e o faz existir.
Na dança, é ilusão de imobilidade, energia potencial visível,
prontidão. Na música a imaterialidade do silêncio vira massa,
substância; na dança, o corpo imóvel vira expectativa, vira
intenção. Na música o silencio é presença, na dança, é devir”
(SCHOROEDER, 2000: 61).
O silêncio46
existe? A não execução de uma trilha-sonora em um espetáculo
(de música/dança), não significa que não haja música ou que haja “silêncio”.
John Cage47
é a primeira referência quando falamos sobre ressignificação do
conceito de silêncio. Influenciado por Robert Rauschenberg48
e suas pinturas
pretas e brancas (como um quadro branco em que “não há um foco de atenção
que cative o olhar, o que se busca são elementos, tais como sombras, poeira,
irregularidades da tela, etc. Essa ausência de um centro de interesse abre a
possiblidade de que tudo constitua um centro, sem interferência. Assim, a
45
(SCHROEDER, 2000: 56)
46
Muitas vezes entendido como sinônimo de “nada” ou ausência absoluta de sons.
47
John Milton Cage, escritor, artista, teórico musical, compositor, pesquisador da relação entre o som e o
silêncio (1912-1992).
48
Robert Rauschenberg, artista do expressionismo abstrato e pop art (1925-2008).
pintura branca converte-se numa superfície fluida, uma vez que não há um
modo de contemplação que constitua um “modelo”, qualquer olhar é bem
vindo”49
), pelas experiências na câmara anecóica (“sem eco”), em que Cage
relata:
Para certos fins de engenharia, é desejável ter uma situação
tão silenciosa quanto possível. Tal recinto é chamado câmara
anecóica, suas seis paredes são feitas de um material especial,
um quarto sem ecos. Entrei em um destes na Universidade de
Harvard há vários anos atrás e ouvi dois sons, um alto e outro
baixo. Quando os descrevi para o engenheiro encarregado, ele
me informou que o alto era o meu sistema nervoso em
operação, o baixo, o meu sangue circulando. Até que eu morra
haverá sons. E eles continuarão depois de minha morte. Não é
necessário temer pelo futuro da música (CAGE, 1961: 8).
Também influenciado pela filosofia de Henry David Thoreau:
O seu entendimento de som é tal qual uma esfera, isto é, como
borbulhas na superfície do silêncio que aparecem e vão
embora; já o silêncio, é uma superfície em movimento, uma
superfície líquida em que os sons oferecem-se à escuta.
(CAVALHEIRO, 2007: 5).
E por seus experimentos com partituras e água:
Cage estende sua mão para tocar a água e, assim, promove
uma partitura inédita. Com esse gesto, o compositor rejeita um
papel pautado no qual durante longo tempo os sons musicais
encontraram um espaço para estabelecer suas relações.
Porém, essa rejeição somente se fez possível quando o músico
soltou as partituras ao mar para que a água diluísse o espaço
musical. Pouco a pouco, as linhas que compunham o
pentagrama foram perdendo a cor até que somente o branco
permanecesse (SALGADO, s/d: 1).
Então, o conceito de “branco” une-se ao conceito de “silêncio”:
A partir dessa obra de Rauschenberg, há uma tomada de
consciência de que a noção de música pode ser renovada e
reconceitualizada ao compreender de que assim como o
branco contém todas as cores, o silêncio contém todos os
sons. Dessa forma, Cage parece entender que o branco é
pintura e o silêncio é música (CAVALHEIRO, 2007: 2).
Sendo o silêncio, então, música, a ausência de sons passa a ser entendida
como variações de silêncio50
. E a partir dos experimentos com a câmara
49
(CAVALHEIRO, 2007: 2).
50
(CAVALHEIRO, 2007: 3).
anecóica, podemos concluir que o silêncio absoluto não existe51
e em
espetáculos que possuem a não-intencionalidade sonora, o público passa a ser
co-autor da obra, por exemplo, na obra 4’33’’ (1952) de John Cage em que o
pianista David Tudor, ao sentar-se em frente ao piano, não toca as teclas do
mesmo durante quatro minutos e trinta e três segundos cronometrados:
Ao produzir uma situação de silêncio, 4’33” estaria revertendo a
direção do acesso aos sons: ao invés de se ter os aparatos
reprodutores/repetidores dirigindo-se aos sujeitos, ter-se-ia os
sujeitos buscando os sons (DURÃO, 2005: 13).
Durante esta performance, ouve-se movimentações do público, tosses,
espirros, etc:
Os sons não saem do piano, não há execução pianística. A
música consiste em todos os sons acidentais que são
produzidos no salão enquanto dura a performance da peça. Em
4’33”, há vários sons participando, mas não há um “modelo”
receptivo, a recepção é criadora da própria obra. Durante a
performance da composição, configura-se um cenário em que
se confundem o intérprete e o receptor tradicional
52
, porque
ambos (músicos e público) são agentes e receptores do
silêncio. É importante reenfatizar que o entendimento de
silêncio, para Cage, significa a ausência de sons intencionais
(CAVALHEIRO, 2007: 5).
Consequentemente, “cada performance da composição será sempre nova, pois
dependerá dos sujeitos receptores e participantes dos sons produzidos53
e que
“num amplo sentido, pode-se pré-determinar dois tipos de receptores em 4’33”:
receptores “agitados” e receptores “comportados”. No primeiro cenário, o
barulho vence; no segundo, os ruídos transformam-se em música e os ouvintes
em músicos”54
.
Ainda que haja sons intencionais em um espetáculo, a pausa faz-se
necessária:
Não há som sem pausa. O tímpano auditivo entraria em
espasmo. O som é presença e ausência, e está, por menos
que isso pareça, permeado de silêncios. Há tanto ou mais
silêncios quanto sons no som... (WISNIK, 1989: 16).
51
Visto que o nosso corpo produz som (como o sistema nervoso e a circulação sanguínea).
52
Grifos meus.
53
(CAVALHEIRO, 2007: 4).
54
(CAVALHEIRO, 2007: 4).
E mesmo quando não há som intencional, a música se faz visível no corpo do
bailarino, pelo ritmo, pela intensidade, pelos acentos:
Pode-se dizer que a música é companheira inseparável do
bailarino, desde o primeiro dia aula, e mesmo quando não é
utilizada nos espetáculos, se materializa nos movimentos, que
no silêncio, a torna perceptível, em desenhos rítmicos no
espaço, em acentos revelados pela energia empregada, em
retas e curvas, que lhe distinguem a intenção e lhe dão o
caráter, em corpos, que quais notas de diferentes pentagramas
lhe dão tessituras que se fazem ouvir em colorações diversas.
(SOARES, 2011: 70).
O silencio é materializado pela escrita musical quando se faz
necessário representá-lo pelos sinais gráficos correspondentes,
chamados de pausas. As pausas possuem status semelhante
ao das notas. Portanto, na música, o silêncio tem corpo e
dimensão análogos aos dos sons (SCHROEDER, 2000: 60).
Em um espetáculo de dança, sons e silêncio existem e são interdependentes,
caminhando paralelamente, interagindo com o público e, por vezes, fazendo-o
cúmplice do compositor e participador da obra.
Conclusão
No processo de criação do espetáculo “Não aperte o botão”, pude analisar o
efeito do “silêncio”, as funções e esferas da música na dança e a forma com
que se manifestam durante a criação também, não somente nas
apresentações; criando expectativa nos bailarinos, abrindo um leque de novas
ideias e sugestões tanto para os jogos, quanto para os movimentos, quanto
para a música, guiando determinadas sensações e movimentos
(desenvolvendo então a ideia das esferas: temporal, intensidade e caráter). As
funções que mais se destacam no espetáculo são a bloqueadora e atrativa nas
cenas com trilha sonora, pois atraem o público para o jogo, para as vozes
gravadas, para a marcação de tempo, para o “play” e para a pausa,
considerando como “pausa musical” as cenas sem trilha intencional (em que o
silêncio absoluto não existe - e outros sons: dos bailarinos, do público, sons
ambiente passam a chamar atenção). Já a função fluxo temporal é destacada
no jogo Kinetec, em que os movimentos devem ser executados no tempo
determinado, e os grupos devem se revezar ao desenrolar da música. O
espetáculo “Não aperte o botão” pode ser exemplo sobre como a música e a
dança se relacionam sem perder sua identidade. Nas cenas em que há música,
pode-se notar a resposta corporal dos bailarinos e a atenção do público para
este acontecimento; já nas cenas sem música, a atenção do público se volta
para os sons dos bailarinos e, por vezes, para os sons ambiente. Com trilha ou
não, um som sempre se destacará neste espetáculo, e não está definido em
qual momento pelos bailarinos: o som do botão. Toda e qualquer cena será
pausada ou finalizada ao soar da buzina do botão. Sendo este o som mais
relevante deste espetáculo e o que fará parte das apresentações e da
mudança de cenas todas as vezes que o público acioná-lo.
Por fim, concluo que esta pesquisa é o primeiro passo de uma longa
caminhada relacionando música e dança, algumas perguntas foram
respondidas e juntamente com as respostas, agora possuo mais perguntas.
Referências bibliográficas
BATTEUX, Charles. As belas-artes reduzidas a um mesmo princípio (2009).
BOURCIER, Paul. História da dança no ocidente (2000).
CARVALHO, Fabio Cardia. Música e dança: A sonosfera como ambiente
midiático (2005).
CAVALHEIRO, Juciane dos Santos. A voz e o silêncio em 4’33”, de John
Cage (2008).
CHEW, Geoffrew. Articulation and phrasing (Oxford Music Online) (2007).
COLI, Jorge. A necessidade de sons impuros (1997).
FOGELSANGER, Allen & AFANADOR, Kathleya. Parameters Of Perception:
Vision, Audition, and Twentieth-Century Music and Dance (2008).
GARAUDY, Roger. Dançar a vida (1973).
HUIZINGA, Johan. Homo Ludens (1955).
LANGER, Susanne. Sentimento e forma (1953).
OSSONA, Paulina. Educação para a dança (1988).
PEREIRA, Daniela Luciana Soares. Diálogos entre música e dança: A
Formação Musical do Artista da Dança (2011).
RODRIGUES, Graziela. Bailarino-pesquisador-intérprete (2007).
SACKS, Oliver. Alucinações musicais (2007).
SANCHEZ, Melina Fernandes. A dança na música: a experiência da
disciplina “Expressão Corporal, Movimento e Dança” no curso de
Licenciatura em Música da UFSCar (2008).
SCHROEDER, Jorge Luiz. A música na dança: Reflexões de um músico
(2000).

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  • 1. ETEC DE ARTES TÉCNICO EM DANÇA Stéphanie Mendes Saltoratto O espetáculo de dança: sua sonoridade Orientadora: Peticia Carvalho São Paulo/SP 2013
  • 2. Resumo O objetivo desta pesquisa é identificar a relação entre música e dança nos espetáculos de dança, relatando o processo de criação da sonoridade do espetáculo do terceiro módulo de dança da ETEC de Artes, formandos do primeiro semestre de 2013, analisando o aspecto de sons ambientes, o conceito de silêncio, música, etc. A sonoridade na dança pode existir para base de uma coreografia, como “música de fundo” e/ou como “guia” de sensações para o público, então foram analisados os caminhos que constituem a sonoridade no espetáculo, por meio de pesquisas nas áreas de Dança, Música e Produção Musical. Identificando a presença da música e da dança também no Jogo – que é a base de pesquisa do espetáculo “Não aperte o botão”. Verificou-se como música e dança lidam com dimensões comuns (“esferas de contato”1 ), como intensidade, tempo e caráter e como elas se relacionam, permitindo maior elaboração do espetáculo. A pesquisa abrange os aspectos do som ambiente (sem música, porém ainda com sons), como o caminhar, a voz, reações do público, palmas, etc. Identificando então uma característica comum da dança e da música: de revelar os sentimentos humanos. Tais relações foram experimentadas pelos alunos de dança da ETEC de Artes por meio do processo de criação do espetáculo na disciplina MECC: Montagem de Espetáculo: Criação e Composição. Também a partir do livro “Homo Ludens” (Huizinga, Johan. 1955) que foi a base para o espetáculo no Trabalho de Conclusão de Curso. Sendo de grande importância o conhecimento e o porquê de cada atitude sonora em um espetáculo, a permissão ou não do acaso, a existência do improviso tanto musical (quando ao vivo) quanto do bailarino conforme as circunstâncias; sendo relevantes para bailarinos, músicos, estudantes de arte e pesquisadores de cultura e todos aqueles interessados pelo saber. Palavras-chave: música; dança; silêncio; jogo; som. Introdução Música e dança fazem parte de minha rotina e estudos, então surgiu o interesse de uni-las em uma pesquisa, relacionando-as e analisando como elas dialogam entre si em um espetáculo de dança. Por meio de oficinas de percussão corporal e diferentes formas de emitir sons, a turma formanda em Dança da ETEC de Artes definiu a trilha sonora para o espetáculo de conclusão de curso “Não aperte o botão”, o qual pude identificar o que aqui relato, como o conceito de silêncio, como os dançarinos são influenciados pela música, relacionando música, dança e jogo. Passos e Compassos: Dança e Música Embora a poesia, a música e a dança se separem por vezes para seguir os gostos e as vontades dos homens, entretanto, 1 “Esferas de contato” descritas por Jorge Luiz Schoeder em “A música na dança: Reflexões de um Músico”: 12.
  • 3. como a natureza criou seus princípios para permanecerem unidos e para contribuírem a um mesmo fim – que é o de levar nossas ideias e sentimentos, tais como são, ao espírito e ao coração daqueles a quem queremos comunicá-los -, essas três artes nunca têm mais encanto do que quando estão reunidas (BATTEUX, 2009: 147). A relação entre música e dança existe desde os primórdios da comunicação do homem, ocorrendo como expressão do sentimento2 . Sendo música e dança interdependentes, “numa relação de quase simbiose”3 , relacionadas, segundo Dalcroze: “A dança e a música sempre estiveram associadas em todas as épocas. Essa união foi singularmente afrouxada no concurso do século passado”. A música, por exemplo, “compreendia o canto, a dança, a versificação e a declamação”4 e a dança “nasce dessa necessidade de dizer o indizível, de conhecer o desconhecido, de estar em relação com o outro”5 . Estas artes tem por característica expressar o que não é possível colocar em palavras: “[...] Os tons da voz e os gestos têm sobre ela muitas vantagens: seu uso é mais natural. Recorremos a eles quando nos faltam palavras”6 . E, na relação com o outro, “isto é ainda mais evidente para outras artes como a música ou a dança. O coro da tragédia grega primitiva cantava e dançava para expressar e transmitir o que as palavras e a mímica não podiam expressar e transmitir”7 . E quando passamos a nos referir a dança e música separadamente, podemos diferenciá-las da seguinte forma: Esta é a diferença fundamental entre música e dança: a primeira é uma forma auditiva, e a segunda uma forma visual; dessa diferença derivam quase todas as impossibilidades de identificar uma com a outra (OSSONA, 1988: 23). “Música e dança não são construções, são acontecimentos e, portanto, envolvem todos os procedimentos sensíveis implicados nessa condição”8 sendo a música capaz de embutir sequências9 , “além dos movimentos 2 (BATTEUX, 2009: 54). 3 (PEREIRA, 2011: 16). 4 (BATTEUX, 2009: 134). 5 (GARAUDY, 1973: 8). 6 (BATTEUX, 2009: 135). 7 (GARAUDY, 1973: 22). 8 (SCHROEDER, 2000: 46). 9 (SACKS, 2007: 231). “Embutir sequências” no sentido de “cobrar” respostas corporais de quem ouve.
  • 4. repetitivos de andar e dançar, a música pode permitir habilidades de organizar”10 , mantendo na mente um “grande volume de informações”, sendo este o “poder narrativo ou mneumônico da música”. [A palavra, o gesto e a voz]11 Essas três expressões têm aqui, não apenas todas as graças e toda a força natural, mas ainda toda a perfeição que a arte pode acrescentar-lhes, quero dizer, a medida, o movimento, a modulação e a harmonia, e é a versificação, a música e a dança que constituem a maior perfeição possível das palavras, dos tons da voz e dos gestos (BATTEUX, 2009: 136). Música e dança somam-se, completam-se, mas não perdendo suas respectivas identidades (sendo auditiva e visual, por exemplo). A expressividade de ambas aumenta potencialmente. Muitas das minhas primeiras composições para dança necessitavam, para se realizarem completamente, da presença da dança; não eram músicas para se ouvir, mas para se ver – ou melhor ainda, para se ver dançadas. [...] Atualmente, a imagem que faço da música e da dança é a de dois indivíduos que dialogam, se aproximam e se afastam, brigam e se harmonizam, enfim, interagem (SCHROEDER, 2000: 126). A sinestesia é comum quando tratamos de música e dança, sendo elas artes que compartilham o indizível, agindo como guia de sensações: Um exemplo do poder evocativo das construções musicais está nas trilhas sonoras dos filmes de cinema. Associadas às imagens, as trilhas adquirem o poder de “guiar” – até onde isso seja possível – a resposta emocional da platéia. Na dança, algo semelhante pode acontecer: a música, conforme o modo como é usada, pode exercer essa mesma capacidade de conduzir a cena coreográfica por caminhos previamente projetados ou, ao menos, auxiliar na condução (SCHROEDER, 2000: 44). Para Mary Wigman, por exemplo “a música deve ser composta ao mesmo tempo, numa colaboração criadora entre o coreógrafo e o compositor. Esta ‘música sob medida’ não pode ser tirada de outra previamente composta”12 em que “o músico-intérprete atua, ou melhor, deve atual como um co-autor da 10 (SACKS, 2007: 230) 11 Citados anteriormente pelo autor. 12 (GARAUDY, 1973: 108)
  • 5. peça. Na dança, a interpretação de uma coreografia ocorre quando o dançarino se transforma na própria dança”13 . A música produz respostas corporais naqueles que a ouvem e sentem, segundo Graziela Rodrigues, “o pulso são as vibrações da música captadas pelo corpo”14 e de acordo com estudos de Daniel Levitin e Perry Cook, os humanos tem uma memória muito apurada para andamento e ritmo e “as chamadas respostas ao ritmo na verdade precedem as batidas de compasso externas”15 . Os corpos absorvem os padrões rítmicos, entrando no “pulso” e seguindo as vibrações da música, em que “a tendência ao equilibro de forças16 entre sons e movimentos se manifesta e é solucionada do mesmo modo. E, para a organização das articulações recíprocas, a presença do pulso firme, marcado e do pedal de tônica17 forte e audível é imprescindível”18 . Aperte o play: As artes “musicais” e o Jogo Dançar é vivenciar e exprimir, com o máximo de intensidade, a relação do homem com a natureza, com a sociedade, com o futuro e com seus deuses (GARAUDY, 1973: 14). É entendido que desde os primórdios da humanidade, os seres vivos possuem a necessidade de se comunicar com outros de sua espécie através da arte. Por meio de gestos, sons, toques; ocorrem as interações entre o ser e o meio, o ser e si mesmo, o ser e seu próximo, o ser e os seres sobrenaturais. Suas formas de comunicação são diversas, mas discorrerei sobre as de caráter lúdico, especificamente sobre música, dança e jogo. Segundo Paulina Ossona, música e dança nos começos da cultura não eram apenas uma unidade, mas também representavam uma “entrega total e absoluta de cada fibra do ser”19 e em todas as sociedades há uma função coletiva e comunitária essencial da música: reunir pessoas e criar laços entre 13 (SCHROEDER, 2000: 119) 14 (RODRIGUES, 2007: 76). 15 (SACKS, 2007: 233) 16 Grifo meu. 17 Nota base que sempre soe. 18 (SCHROEDER, 2000: 76). 19 (OSSONA, 1988: 22).
  • 6. elas20 . Música e dança então são manifestações do homem e de sua necessidade de comunicação e interação. “Segundo uma velha crença chinesa, a música e a dança têm a finalidade de manter o mundo em seu devido curso e obrigar a natureza a proteger o homem”21 , e desta necessidade de comunicação, metaforicamente, podemos afirmar que o mundo do homem mantem seu devido curso e a natureza o protege. A palavra μουσιχη tem uma amplitude muito maior que nossa "música". Além de abranger o canto e a dança com acompanhamento musical, abrangia também todas as artes e habilidades presididas por Apolo e as Musas. Estas são chamadas artes "musicais", para distingui-las das artes plásticas e mecânicas que não pertencem ao domínio das Musas. No pensamento grego, tudo o que é "musical" se relaciona intimamente com o ritual (HUIZINGA, 1955: 178). Considerando que “todo ritual autêntico é obra de canto, dança e jogo”22 , em um ritual vemos as expressões mais íntimas de um ser, onde a música e a dança estão profundamente relacionadas, intermediando a interação entre o ser e o mundo. O homem primitivo dispõe de poucas palavras. Quase somente o que ele vê é que tem nome. Para exprimir os sentimentos, serve-se de sons e cria a música que o ajuda a exprimir júbilo, a tristeza, o amor, os instintos belicosos, a crença nos poderes supremos e a vontade de dançar. Para ele é parte da vida, a música, desde a canção do berço até a canção de morte, desde a dança ritual até a cura dos doentes pela melodia e pelo ritmo (PAHLEN, 1966: 14). O homem percebe sua necessidade de expressão e que, muitas vezes, palavras não são suficientes. “Entregamo-nos aos prazeres que se seguem à inocência. O canto e a dança foram as primeiras expressões do sentimento”23 . Sendo esta necessidade desde seu nascimento até sua morte, acompanhando todas fases de sua vida e seus sentimentos, sejam de dor, de alegria ou tristeza, saudade, solidão, etc. Além de forma de expressão, interação e comunicação, as “artes musicais” surgem como afirmação e conhecimento de um sujeito em sua comunidade e de algo “além”, os quais este homem se dispõe a entregar cada fibra do seu 20 (SACKS, 2007: 237). 21 (HUIZINGA, 1955: 14). 22 (HUIZINGA, 1955: 178) 23 (BATTEUX, 2009: 54).
  • 7. ser, pois o “seu mundo” é sua ação, seus movimentos, seus sons, sua vida e como ele lida com o que há ao seu redor. “Desde a origem das sociedades, é pelas danças e pelos cantos que o homem se afirma como membro de uma comunidade que o transcende”24 . O jogo está situado fora da sensatez, da seriedade e não possui dever com a necessidade, verdade ou utilidade25 , assim como a música, que possui valores que transcendem o tangível e concreto, valores que são definidos pelas características que designamos, como ritmo e harmonia (características comuns também no jogo e na poesia26 ). A palavra “jogo” ou “jogar” não possui somente o caráter lúdico que esta nos remete: Merece especial interesse, do ponto de vista semântico, o caso do inglês play, to play. Etimologicamente, a palavra deriva do anglo-saxão plega, plegan, significando originariamente "jogo" ou "jogar", mas indica também um movimento rápido, um gesto, um aperto de mãos, bater palmas, tocar instrumentos musicais, e todos os tipos de exercício físico. (HUIZINGA, 1955: 31). Verificamos então que dança, música e jogo estão profundamente relacionados, desde a origem da palavra, que não os diferencia especificamente, sendo que as “artes musicais” são caracterizadas pela ação e “toda atividade musical possui um caráter essencialmente lúdico, é sempre implicitamente aceite, embora nem sempre seja explicitamente formulado”27 e se a música está na esfera lúdica, “o mesmo se pode afirmar, e em mais alto grau, da irmã gêmea da música, a dança”28 . O toque do instrumento, o canto e a linguagem de movimentos criam danças, fundem-se ações expositoras de um único percurso interno. Muitas vezes percebemos em meio às celebrações ouvindo o corpo e vendo o som (PEREIRA, 2011: 15). Não é que a dança tenha alguma coisa de jogo, mas, sim, que ela é uma parte integrante do jogo: há uma relação de participação direta, quase de identidade essencial. A dança é uma forma especial e especialmente perfeita do próprio jogo. (HUIZINGA, 1955: 184). 24 (GARAUDY, 1973: 19) 25 (HUIZINGA, 1955: 178) 26 (HUIZINGA, 1955: 178) 27 (HUIZINGA, 1955: 182) 28 (HUIZINGA, 1955: 183)
  • 8. Concluímos então que o jogo e as “artes musicais” são interdependentes, e “jogo”, em sua origem semântica, está relacionado ao movimento (ação), como a música e a dança, que são as expressões de um ser para interação e comunicação com o mundo, mantendo-o assim em harmonia. A sonoridade no espetáculo “Não aperte o botão” Diversas pesquisas e oficinas foram feitas com os bailarinos em busca da identidade sonora de nosso espetáculo. Por exemplo, na cena com as bolinhas de gude, queríamos explorar as diversas sonoridades possíveis com o cair da bolinha no chão (de piso flutuante, no caso das salas da ETEC), o chacoalhar das bolinhas nas mãos, etc. Infelizmente nossa tentativa com o som ao cair das bolinhas foi frustrada ao chegarmos no local de apresentação, pois o chão da “tenda” (na Biblioteca de São Paulo) não nos permite a reverberação do som desejada, então optamos pela execução de uma trilha. Temos também momentos de fala em que a apresentadora explica as regras dos jogos, as cenas com os palhaços conversando sobre o botão, as cenas das corridas, como a exploração dos limites de controle de ar quando os bailarinos competem para testarem quem consegue correr falando “Aaa” por mais tempo, as cenas em que não há trilha intencional (cena das bolinhas e a cena inicial com a contagem regressiva). Também no jogo “Kinetec” em que podemos analisar como o público assimila a informação “música e dança”, pois a música é tocada e os competidores (do público) devem reproduzir os movimentos coreografados pelos bailarinos juntamente com a música. A sonoridade para o botão foi decidida pelo grupo analisando as propostas dadas em brainstorm, chegando a conclusão de que deveria ser uma buzina acionada quando o botão é pressionado, então pausando a cena e iniciando os jogos com o público, e após o jogo, a pausa é encerrada e a cena é retomada. Nossa experiência com a trilha sonora escolhida teve base nas oficinas realizadas com o músico André Moraes, em que exploramos os sons que nossos corpos poderiam produzir. Vivenciamos a musicalidade em percussões corporais, o bater palmas de diferentes formas, os sons produzidos pela boca, o ritmo marcado de diferentes formas. Então iniciamos o processo de gravação
  • 9. das vozes, nos posicionamos em um círculo e cada bailarino deveria iniciar um som e mantê-lo na pulsação determinada pelo grupo, adicionando o som um a um de cada bailarino, até que o último bailarino produzisse o seu som também (como assovios, palmas, sílabas, som de beijo, percussões corporais, falas, onomatopeias como “poim”, “psiu”), iniciando assim sobreposições de vozes, que poderiam ser pausadas pelo “regente” que escolhia quais bailarinos deveriam continuar executando seus sons após o momento que o último bailarino já produzia seu som escolhido. O espetáculo inicia-se com a contagem regressiva de um número de 1 a 50 escolhido pelo público, então os bailarinos começam a contagem (e o destaque é dado para as vozes contando) e a música inicia-se juntamente com a primeira cena após o número 1 ter sido dito. Já nos jogos com o público não há trilha sonora (com exceção do jogo de “Kinetec”, em que o jogador escolhe qual sequência irá dançar a partir da música e da “pose” dos bailarinos) pois o foco é ouvir a voz do jogador escolhendo os números dos bailarinos (no jogo da memória) e ouvir a reação do público e do jogador (no jogo da corrida). O mesmo é notado nas corridas somente entre os bailarinos, que a partir do “já” começam a correr e o último a parar deve sair do jogo, então ruídos e sons de reação dos bailarinos e do público são desejáveis como vaias, “ihhh”, “choca!!”, “saiu” e também a reação sonora do bailarino comemorando ao vencer a corrida do “Aaa”. No jogo das bolinhas coloridas (que são retiradas da caixa pelo público), a atenção de quem carrega as bolinhas sorteadas está voltada para a música pois, para que a cena ocorra conforme o planejado, as bolinhas devem ser entregues ao bailarino que mostra as bolinhas para os jogadores em determinado compasso e assim deve seguir a cena, os jogadores cumprindo os movimentos (2 “tempos” para cada movimento) em alguns compassos e movimentando-se nos intervalos (4 “tempos” para retomar os movimentos) e ao ouvir (na trilha-sonora) “Um, dois, três, já!”, inicia-se a segunda sequência a partir das bolinhas sorteadas. As esferas de contato entre música e dança e as funções da música na dança
  • 10. Jorge Luiz Schroeder29 , em sua dissertação de mestrado “A música na dança: Reflexões de um músico”, apresenta uma reflexão descrevendo como as duas artes lidam com suas características comuns e então, a partir desta comparação, aponta as funções e relações entre música e dança. Primeiramente é preciso ressaltar que em sua tese: Antes de mais nada, quero endossar a afirmação de que a dança é uma arte independente. Irei discorrer sobre o uso da música na dança, mas isso não implica que eu considere a música indispensável a ela. Sei, inclusive, que existem dançarinos e coreógrafos que concebem a dança como concretização da música, mas o fato de darem ênfase à musica nas suas criações nem fazem deles menos dançarinos e nem desqualifica suas coreografias: continuam sendo danças, assim como a ópera que, a despeito de conter urna representação teatral, não e considerada teatro, e sim música - e, portanto, continuam partilhando de uma mesma essência (SCHROEDER, 2000: 4). Passamos a considerar então dança e música como artes independentes e que podem ser concebidas sem a obrigatoriedade da outra. Segundo Schroeder, ainda que elas possuam características comuns, isto não as faz idênticas, e talvez essas “características” possam ser tratadas como “mesmos elementos”, que elas lidam de modo bastante diverso30 . As esferas de contato São apontadas três esferas de contato entre música e dança, a esfera temporal, a esfera da intensidade e a esfera do caráter. Sobre a esfera temporal: A música, intimada pelas articulações sonoras, pelo padrão cronométrico de caráter mais mental, pelas respirações frasais, pelas possibilidades instrumentais das fontes sonoras utilizadas e pelas características de propagação dos sons no ambiente. A dança, (...) pelo encadeamento dos movimentos, pelo apelo corporal nos padrões de tempo, pelo caráter metabólico e físico das suas possibilidades musculares e 29 Doutor-pesquisador na área de música, linguagem e cultura. Professor no DACO (Departamento de Artes Corporais) – UNICAMP. 30 (SCHROEDER, 2000: 23).
  • 11. energéticas, pela respiração e pulsação sanguínea do corpo. Juntas dividem seus limites e se beneficiam dessa estratégia, ampliando o leque de caminhos temporais a serem trilhados (SCHROEDER, 2000: 47). A dança assim como a música trabalha com a esfera temporal, só que a música se utiliza de sons e a dança de movimentos. Estes são evidenciados na dança por meio da duração, velocidade, rítmicas, pulsações regulares ou irregulares, enfim, toda uma dinâmica temporal carregada de intenções expressivas (SCHROEDER, 2000: 38). O homem adquire assim como um novo poder e toma consciência dessa transcendência da comunidade com relação aos indivíduos. Este poder e essa transcendência estão ligados ao ritmo dos gestos e à comunhão que esse ritmo permite concretizar. A dança opera essa metamorfose: transformando os ritmos da natureza e os ritmos biológicos em ritmos voluntários, ela humaniza a natureza e dá poder para dominá-la (GARAUDY, 1973: 19). Sendo a esfera temporal algo comum entre música e dança, identificamos o tempo corporal (por meio dos movimentos, em que dança é o “movimento configurado pelo ritmo31 ) e o tempo musical (tempo “métrico”, por meio dos sons), em que a organização temporal é caracterizada pelo pulso. A esfera temporal é a característica do tempo, envolvendo ritmo, pulsação, velocidade, duração, etc. A cena das bolinhas coloridas do espetáculo “Não aperte o botão” relaciona-se diretamente com a esfera temporal. O sorteio das bolinhas, os movimentos dos bailarinos, a troca dos grupos, toda cena está relacionada com a trilha-sonora e intimamente ligada à esfera temporal. Quer uma dança seja ou não acompanhada por música, ela se move sempre em tempo musical; o reconhecimento dessa relação natural entre as duas artes é subjacente à sua afinidade universal (LANGER, 1953: 208). Sobre a esfera da intensidade32 : A esfera da intensidade relaciona-se com a dinâmica musical e a “resposta” corporal a este estímulo, sendo intensidade caracterizada por energia e a 31 (NANNI, Dionísia). Tendo “ritmo” como duração e divisão do tempo. 32 Embora, musicalmente, intensidade corresponda à propriedade de um som ser mais forte ou mais fraco (volume), o termo fará referência também “à energia, à força física, ao volume dos sons e, na dança, à energia dos movimentos e sua dinâmica” (SCHROEDER, 2000: 36).
  • 12. relação motora (respondendo corporalmente) ao ter a audição sensibilizada, em que “constatamos a existência de uma ligação direta entre a pungência dos sons e a reação muscular”33 . Como a música, [a dança] pode repetir um movimento, invertê- lo, combiná-lo com seus contrastantes ou análogos e criar seqüências como frases que podem por sua vez ser respostas desenvolvidas, invertidas etc (OSSONA, 1988: 17). O ritmo incita nosso corpo. A tonalidade e a melodia incitam nosso cérebro. A convergência do ritmo com a melodia lança uma ponte entre o cerebelo (o pequeno cérebro primitivo, responsável pelo controle motor) e o córtex cerebral (a parte mais desenvolvida e humana do nosso cérebro) (LEVITIN, 2010: 296). O dançarino pode identificar um “movimento musical” que “pede” um movimento ou reação corporal, em que o ritmo e a melodia incitam nosso corpo, e executá-lo de diversas formas, podendo combiná-lo, invertê-lo, etc. A esfera da intensidade pode ser notada na cena com as bolinhas de gude, em que os bailarinos movimentam-se com movimentos circulares e movimentos que os bailarinos associam ao movimento das bolinhas. Sobre a esfera do caráter: Sendo esta esfera um “ambiente sonoro”, em que “caráter” não é “tão amplo quanto estética e nem tão restrito quanto “clima” ou “ambiência””34 . Abrangendo as “impressões, ambientações, climas, estados de humor e de sentimentos sugeridos pela associação música e dança”, em que cabem as reflexões “de ordem mais estética”35 . Ela (a música) produz uma expectativa de acontecimentos que, reforçada pela contribuição dos outros elementos coreográficos, adquire uma força sugestiva inusitada, que define o ambiente e o clima em que a ação vai ocorrer (SCHROEDER, 2000: 55). A esfera do caráter corresponde aos tecidos sonoros (sons específicos), em que é possível a indução de estados de ânimo, por meio da escolha detalhada 33 (SCHROEDER, 2000: 47). 34 (SCHROEDER, 2000: 46). 35 (SCHROEDER, 2000: 19).
  • 13. de timbres36 , fraseados37 , articulações38 e convenções sonoras. Escolhas musicais que proporcionam o poder da sugestão, estimulando a imaginação do público (situando-os circunstancialmente). [...] cenário sonoro coerente com o encaminhamento da trama, que irá complementar os significados dos movimentos. A música, dentre as várias funções, deve exagerar nas nuanças, revestir as ações de dignidade magnânima, exacerbar as emoções, alinhavar os sentimentos e orientar as conclusões 39 . Sobretudo ajudar a homogeneizar a fruição da trama e unificar as impressões dela oriundas, através de convenções codificadas (SCHROEDER, 2000: 77). Neste caso, devo discordar do autor, pois nem todos os espetáculos mais contemporâneos tem a música como objetivo para exacerbar as emoções, alinhavar os sentimentos, exagerar nas nuanças, etc. Considerando que, ainda assim, a música continua com sua característica de orientar conclusões e “ambientar” o espectador. Como, por exemplo, no processo de criação da trilha do espetáculo “Não aperte o botão”. A música, penetrando os espíritos da maneira a mais imaterial, é, por excelência, meio capaz de agir sobre os movimentos da alma, como forma supremamente volátil e fluída (COLI, 1997: s.n.). E a partir desta relação, cada artista define em que trechos dará ênfase aos aspectos musicais, destacando determinadas características e servindo de “guia” para as sensações. As funções da música na dança Função bloqueadora: bloqueando “estímulos do “mundo real”, “envolvendo o público no mundo virtual que a obra oferece, fazê-lo acomodar-se numa outra 36 Característica especifica de uma fonte sonora que nos permite reconhecê-la. 37 “A separação de notas sucessivas, uma por uma ou em grupos, pelo intérprete, e a forma que é feita. O termo “fraseado” implica em um analogia linguística ou sintática, e desde o século 18, essa analogia tem sido incluída na discussão dos grupos de notas sucessivas, especialmente em melodias” (CHEW, 2007: 1). 38 “O termo “articulação” se refere primeiramente ao grau que o intérprete destaca notas individualmente das outras na prática (por exemplo “staccato” e “legato”). Essa distinção entre os dois termos foi recomendada por Keller (1955); mas articulação em um aspecto mais abrangente é tida como referência nas maneiras de cada parte em um trabalho – de quaisquer dimensões – que são divididas (ou unidas) às outras” (CHEW, 2007: 1). 39 Grifo meu.
  • 14. dimensão, com leis e regras próprias”40 , suplantando então os sons ambiente. Esta função pode ser considerada como aquela que anula os sons ambientes, que possivelmente tirariam a atenção do espectador, trazendo-o para um ambiente com “regras próprias”. Função atrativa: “acaba por exercer uma função complementar à do bloqueio sonoro, quase como uma consequência dele”41 , sobrepondo-se aos ruídos do ambiente, evidenciando-se. Esta função, derivada da bloqueadora, chama atenção para a trilha que foi definida para o espetáculo, evidenciando-se em relação aos outros possíveis sons ou ruídos ambiente, fazendo com que o público esteja atento à música e não se distraia com outros sons não planejados para o espetáculo. Função dimensionadora: “A música contribui para que haja uma delimitação melhor do espaço cênico da dança”42 , direta e indiretamente “por meio da qualidade de ressonâncias, ecos e reverberações (defasagem) do som nos ambientes; e um indireto, por meio das sugestões e climas que oferece aos espectadores.”43 Reverberação e criação de ambientes que podem ser manipulados em estúdio, sugerindo um outro ambiente (por meio de recursos na produção musical). O isolamento acústico, amplificação dos instrumentos e telas absorsoras44 influenciam diretamente a percepção sonora do espectador. Sendo assim, a característica desta função é a criação de um “ambiente sonoro” que, por meio destes recursos, pode fazer referência ao ambiente de uma catedral, de um estádio de futebol ou de um shopping ou bar, por exemplo, em que é planejado este controle parcial por meio dos modos de propagação (fenômenos acústicos que são mensuráveis ou equipamentos específicos para cada intenção sonora), sugerindo um ambiente psicológico (possibilidade de uma nova formatação do espaço). 40 (SCHROEDER, 2000: 51) 41 (SCHROEDER, 2000: 53) 42 (SCHROEDER, 2000: 53) 43 (SCHROEDER, 2000: 54) 44 Telas absorsoras que possuem determinado índice de absorção para determinadas freqüências (Hz), recursos acústicos para o controle da reverberação sonora.
  • 15. Ela (a música) produz uma expectativa de acontecimentos que, reforçada pela contribuição dos outros elementos coreográficos, adquire uma força sugestiva inusitada, que define o ambiente e o clima em que a ação vai ocorrer (SCHROEDER, 2000: 55). Função fluxo temporal: “Nessa função a música oferece a oportunidade do manuseio, também parcial, da sensação de tempo decorrido”45 . Esta função possui como característica a possibilidade de “manipulação de tempo”, fazendo com que o público acompanhe e tenha esta “noção” da passagem de tempo de acordo com a proposta do espetáculo, que pode ser tratada isoladamente do tempo cronológico, em que o público geralmente “não vê o tempo passar”, “não sabe que horas são” ou “fica perdido no tempo”. Através dos recursos articulatórios da linguagem [musical] pode-se obter saltos, dilatações e contrações de tempo. Em outras palavras, a narrativa cria uma temporalidade própria, relativa, isolada do fluir contínuo do tempo cronológico, absoluto (CARRASCO, 1993: 125). Pausa: O som e o silêncio Na música, o silêncio é o vazio que realça o som e o faz existir. Na dança, é ilusão de imobilidade, energia potencial visível, prontidão. Na música a imaterialidade do silêncio vira massa, substância; na dança, o corpo imóvel vira expectativa, vira intenção. Na música o silencio é presença, na dança, é devir” (SCHOROEDER, 2000: 61). O silêncio46 existe? A não execução de uma trilha-sonora em um espetáculo (de música/dança), não significa que não haja música ou que haja “silêncio”. John Cage47 é a primeira referência quando falamos sobre ressignificação do conceito de silêncio. Influenciado por Robert Rauschenberg48 e suas pinturas pretas e brancas (como um quadro branco em que “não há um foco de atenção que cative o olhar, o que se busca são elementos, tais como sombras, poeira, irregularidades da tela, etc. Essa ausência de um centro de interesse abre a possiblidade de que tudo constitua um centro, sem interferência. Assim, a 45 (SCHROEDER, 2000: 56) 46 Muitas vezes entendido como sinônimo de “nada” ou ausência absoluta de sons. 47 John Milton Cage, escritor, artista, teórico musical, compositor, pesquisador da relação entre o som e o silêncio (1912-1992). 48 Robert Rauschenberg, artista do expressionismo abstrato e pop art (1925-2008).
  • 16. pintura branca converte-se numa superfície fluida, uma vez que não há um modo de contemplação que constitua um “modelo”, qualquer olhar é bem vindo”49 ), pelas experiências na câmara anecóica (“sem eco”), em que Cage relata: Para certos fins de engenharia, é desejável ter uma situação tão silenciosa quanto possível. Tal recinto é chamado câmara anecóica, suas seis paredes são feitas de um material especial, um quarto sem ecos. Entrei em um destes na Universidade de Harvard há vários anos atrás e ouvi dois sons, um alto e outro baixo. Quando os descrevi para o engenheiro encarregado, ele me informou que o alto era o meu sistema nervoso em operação, o baixo, o meu sangue circulando. Até que eu morra haverá sons. E eles continuarão depois de minha morte. Não é necessário temer pelo futuro da música (CAGE, 1961: 8). Também influenciado pela filosofia de Henry David Thoreau: O seu entendimento de som é tal qual uma esfera, isto é, como borbulhas na superfície do silêncio que aparecem e vão embora; já o silêncio, é uma superfície em movimento, uma superfície líquida em que os sons oferecem-se à escuta. (CAVALHEIRO, 2007: 5). E por seus experimentos com partituras e água: Cage estende sua mão para tocar a água e, assim, promove uma partitura inédita. Com esse gesto, o compositor rejeita um papel pautado no qual durante longo tempo os sons musicais encontraram um espaço para estabelecer suas relações. Porém, essa rejeição somente se fez possível quando o músico soltou as partituras ao mar para que a água diluísse o espaço musical. Pouco a pouco, as linhas que compunham o pentagrama foram perdendo a cor até que somente o branco permanecesse (SALGADO, s/d: 1). Então, o conceito de “branco” une-se ao conceito de “silêncio”: A partir dessa obra de Rauschenberg, há uma tomada de consciência de que a noção de música pode ser renovada e reconceitualizada ao compreender de que assim como o branco contém todas as cores, o silêncio contém todos os sons. Dessa forma, Cage parece entender que o branco é pintura e o silêncio é música (CAVALHEIRO, 2007: 2). Sendo o silêncio, então, música, a ausência de sons passa a ser entendida como variações de silêncio50 . E a partir dos experimentos com a câmara 49 (CAVALHEIRO, 2007: 2). 50 (CAVALHEIRO, 2007: 3).
  • 17. anecóica, podemos concluir que o silêncio absoluto não existe51 e em espetáculos que possuem a não-intencionalidade sonora, o público passa a ser co-autor da obra, por exemplo, na obra 4’33’’ (1952) de John Cage em que o pianista David Tudor, ao sentar-se em frente ao piano, não toca as teclas do mesmo durante quatro minutos e trinta e três segundos cronometrados: Ao produzir uma situação de silêncio, 4’33” estaria revertendo a direção do acesso aos sons: ao invés de se ter os aparatos reprodutores/repetidores dirigindo-se aos sujeitos, ter-se-ia os sujeitos buscando os sons (DURÃO, 2005: 13). Durante esta performance, ouve-se movimentações do público, tosses, espirros, etc: Os sons não saem do piano, não há execução pianística. A música consiste em todos os sons acidentais que são produzidos no salão enquanto dura a performance da peça. Em 4’33”, há vários sons participando, mas não há um “modelo” receptivo, a recepção é criadora da própria obra. Durante a performance da composição, configura-se um cenário em que se confundem o intérprete e o receptor tradicional 52 , porque ambos (músicos e público) são agentes e receptores do silêncio. É importante reenfatizar que o entendimento de silêncio, para Cage, significa a ausência de sons intencionais (CAVALHEIRO, 2007: 5). Consequentemente, “cada performance da composição será sempre nova, pois dependerá dos sujeitos receptores e participantes dos sons produzidos53 e que “num amplo sentido, pode-se pré-determinar dois tipos de receptores em 4’33”: receptores “agitados” e receptores “comportados”. No primeiro cenário, o barulho vence; no segundo, os ruídos transformam-se em música e os ouvintes em músicos”54 . Ainda que haja sons intencionais em um espetáculo, a pausa faz-se necessária: Não há som sem pausa. O tímpano auditivo entraria em espasmo. O som é presença e ausência, e está, por menos que isso pareça, permeado de silêncios. Há tanto ou mais silêncios quanto sons no som... (WISNIK, 1989: 16). 51 Visto que o nosso corpo produz som (como o sistema nervoso e a circulação sanguínea). 52 Grifos meus. 53 (CAVALHEIRO, 2007: 4). 54 (CAVALHEIRO, 2007: 4).
  • 18. E mesmo quando não há som intencional, a música se faz visível no corpo do bailarino, pelo ritmo, pela intensidade, pelos acentos: Pode-se dizer que a música é companheira inseparável do bailarino, desde o primeiro dia aula, e mesmo quando não é utilizada nos espetáculos, se materializa nos movimentos, que no silêncio, a torna perceptível, em desenhos rítmicos no espaço, em acentos revelados pela energia empregada, em retas e curvas, que lhe distinguem a intenção e lhe dão o caráter, em corpos, que quais notas de diferentes pentagramas lhe dão tessituras que se fazem ouvir em colorações diversas. (SOARES, 2011: 70). O silencio é materializado pela escrita musical quando se faz necessário representá-lo pelos sinais gráficos correspondentes, chamados de pausas. As pausas possuem status semelhante ao das notas. Portanto, na música, o silêncio tem corpo e dimensão análogos aos dos sons (SCHROEDER, 2000: 60). Em um espetáculo de dança, sons e silêncio existem e são interdependentes, caminhando paralelamente, interagindo com o público e, por vezes, fazendo-o cúmplice do compositor e participador da obra. Conclusão No processo de criação do espetáculo “Não aperte o botão”, pude analisar o efeito do “silêncio”, as funções e esferas da música na dança e a forma com que se manifestam durante a criação também, não somente nas apresentações; criando expectativa nos bailarinos, abrindo um leque de novas ideias e sugestões tanto para os jogos, quanto para os movimentos, quanto para a música, guiando determinadas sensações e movimentos (desenvolvendo então a ideia das esferas: temporal, intensidade e caráter). As funções que mais se destacam no espetáculo são a bloqueadora e atrativa nas cenas com trilha sonora, pois atraem o público para o jogo, para as vozes gravadas, para a marcação de tempo, para o “play” e para a pausa, considerando como “pausa musical” as cenas sem trilha intencional (em que o silêncio absoluto não existe - e outros sons: dos bailarinos, do público, sons ambiente passam a chamar atenção). Já a função fluxo temporal é destacada no jogo Kinetec, em que os movimentos devem ser executados no tempo determinado, e os grupos devem se revezar ao desenrolar da música. O
  • 19. espetáculo “Não aperte o botão” pode ser exemplo sobre como a música e a dança se relacionam sem perder sua identidade. Nas cenas em que há música, pode-se notar a resposta corporal dos bailarinos e a atenção do público para este acontecimento; já nas cenas sem música, a atenção do público se volta para os sons dos bailarinos e, por vezes, para os sons ambiente. Com trilha ou não, um som sempre se destacará neste espetáculo, e não está definido em qual momento pelos bailarinos: o som do botão. Toda e qualquer cena será pausada ou finalizada ao soar da buzina do botão. Sendo este o som mais relevante deste espetáculo e o que fará parte das apresentações e da mudança de cenas todas as vezes que o público acioná-lo. Por fim, concluo que esta pesquisa é o primeiro passo de uma longa caminhada relacionando música e dança, algumas perguntas foram respondidas e juntamente com as respostas, agora possuo mais perguntas. Referências bibliográficas BATTEUX, Charles. As belas-artes reduzidas a um mesmo princípio (2009). BOURCIER, Paul. História da dança no ocidente (2000). CARVALHO, Fabio Cardia. Música e dança: A sonosfera como ambiente midiático (2005). CAVALHEIRO, Juciane dos Santos. A voz e o silêncio em 4’33”, de John Cage (2008). CHEW, Geoffrew. Articulation and phrasing (Oxford Music Online) (2007). COLI, Jorge. A necessidade de sons impuros (1997). FOGELSANGER, Allen & AFANADOR, Kathleya. Parameters Of Perception: Vision, Audition, and Twentieth-Century Music and Dance (2008). GARAUDY, Roger. Dançar a vida (1973). HUIZINGA, Johan. Homo Ludens (1955). LANGER, Susanne. Sentimento e forma (1953). OSSONA, Paulina. Educação para a dança (1988). PEREIRA, Daniela Luciana Soares. Diálogos entre música e dança: A Formação Musical do Artista da Dança (2011). RODRIGUES, Graziela. Bailarino-pesquisador-intérprete (2007). SACKS, Oliver. Alucinações musicais (2007).
  • 20. SANCHEZ, Melina Fernandes. A dança na música: a experiência da disciplina “Expressão Corporal, Movimento e Dança” no curso de Licenciatura em Música da UFSCar (2008). SCHROEDER, Jorge Luiz. A música na dança: Reflexões de um músico (2000).