SlideShare a Scribd company logo
1 of 105
Download to read offline
1
Não sou eu quem descrevo. Eu sou a tela.
E oculta mão colora alguém em mim.
Pus a alma no nexo de perdê-la.
E o meu princípio floresceu em Fim.

Que importa o tédio que dentro de mim gela,
E o leve Outono, e as galas, e o marfim,
E a congruência da alma que se vela
Com os sonhados pálios de cetim?

Disperso... E a hora como um leque fecha-se...
Minha alma é um arco tendo ao fundo o mar...
O tédio? A mágoa? A vida? O sonho? Deixa-se

E, abrindo as asas sobre Renovar,
A erma sombra do vôo começado
Pestaneja no campo abandonado

Fernando Pessoa




                                                 2
Prefácio – Liane


       Em um país embrutecido por um processo de emburrecimento que parece
irreversível, talvez seja difícil notar a maior qualidade de Liane Chammas: Seu
refinamento.

        Um refinamento sem afetação, que a fez sentir-se à vontade com artistas,
políticos, intelectuais, empregadas domésticas, garçons e motoristas de táxi, sem
nunca deixar de ser ela mesma.

       Um refinamento clássico, em nada parecido com a vulgaridade das
celebridades que imploram por atenção enquanto mostram suas roupas de cama
nas sempre ridículas revistas de celebridades – e que para parte da população
tornou-se o paradigma de “ser chique”.

      Liane vem de outra estirpe.

      Não espere vê-la posando na banheira em artigos da “Caras”. É impossível
imaginá-la dando entrevistas para colunistas eletrônicos em festinhas de
sociedade.

      Liane está muito acima disso.

        Além deste refinamento, convém lembrar que Liane é uma mulher bonita,
culta, bem humorada, dona de um invejável par de pernas, capaz de discutir
filosofia alemã e arte renascentista, viajada, uma artista plástica que conquistou
- mais do que o reconhecimento do público e o aplauso da crítica – algo mais
importante e difícil: a admiração de seus pares artistas.

       Liane é filha de um dos maiores empresários do planeta, um homem que
saiu do nada e tornou-se dono daquele que ainda hoje é o maior moinho de trigo
do mundo.

      Já expôs sua arte personalíssima nos EUA e na Itália, está catalogada em
todos os anuários importantes de pintores.

       A pergunta que fica é: Se Liane não precisa da atenção da mídia que é a
obsessão da maior parte das pessoas com um background parecido com o dela,
por que abandonar por um tempo os pincéis e se arriscar em uma nova forma de
arte, escrevendo um livro?

      A resposta é absurdamente simples – mas mesmo assim extremamente


                                                                              3
rara: Liane escreve porque tem o que dizer.

      Liane viveu uma vida como poucas, conhecendo de um lado luxos
inimagináveis para a maior parte das pessoas (quantas pessoas você conhece
que já tiveram Louis Armstrong cantando em seu salão de festas?) e dores
absurdas.

       No meio destes dois extremos, encontrou um caminho próprio e aprendeu
lições que generosamente divide conosco em seu primeiro livro.

      Faça um grande favor para você mesmo: Leia suas palavras.

      Com certeza, poucas vezes você teve um interlocutor tão refinado.


Renzo Mora




                                                                          4
Prólogo


       É a última vez que Mariana se hospeda no Plaza de Nova York. É março
de 2005, tremendamente frio, mesmo para os padrões nova-iorquinos, e o hotel
está prestes a fechar para se tornar um condomínio de luxo.
       Mesmo com a nostalgia de outras Novas Yorks que, de alguma forma,
conheceram diferentes Marianas, ela está especialmente feliz.
       A cidade está recebendo pela primeira vez três gerações da família – ela
própria, seus filhos, seus netos.
       A primeira visita de Mariana à cidade ocorrera quando ela tinha 17 anos,
em sua lua-de-mel. Riu consigo mesma ao lembrar que sua impressão tinha sido
a pior possível.
       Recém-saída de uma Miami paradisíaca, cercada pelos hotéis luxuosos da
orla, vizinha ao Fountainbleu, Nova York parecia hostil, gelada, perigosa. Era
uma época na qual a Times Square era dominada por traficantes, viciados,
prostitutas e assaltantes.
       Em suas primeiras ligações para o Brasil, seu sentimento, compartilhado
por amigos e familiares, era de que tinha chegado ao inferno e conhecido uma
cidade para a qual nunca mais pretendia voltar.
       Na segunda visita, quando seus filhos já estavam na pré-adolescência,
decidiu dar uma nova chance à cidade para visitar uma exposição de Picasso no
MoMa.
       Foi então que uma nova Mariana encontrou uma nova Nova York , que
a conquistou definitivamente.
       Havia uma vida, uma efervescência cultural na cidade que de alguma
forma se escondera na primeira vez – ou talvez ela, mais madura, estivesse
finalmente pronta para desvendá-la – e ficou imensamente feliz em dividir
aquela experiência com os filhos, até como contraponto da felicidade plastificada
da Disney, de onde tinham acabado de chegar.
       Desde então, Nova York entrou no seu roteiro – e em seu coração.
       Decidida a celebrar na plenitude a presença dos netos na cidade, Mariana
usufruiu sem culpa de todas as extravagâncias: breakfasts no The Pierre’s, o
melhor da gastronomia, dos museus.,dos shows dos teatros e inclusive das lojas
de brinquedos.
       Era impossível não perceber que o entristecimento pós 11 de Setembro
tinha se infiltrado no coração da cidade. Ela estava nos EUA na época do
atentado e tinha assistido com admiração ao modo como a cidade respondeu ao
episódio.
       Mas Mariana sabia por experiência própria que as grandes tragédias
cobram preços altos – ela própria sobrevivera a provas extremas e conhecia
bem o resultado: não se sai incólume delas.
       Os prédios estavam perdendo seus habitantes e se transformavam em
meras vitrines das mega-corporações, nem as galerias do SoHo que, para ela


                                                                             5
como artista, eram fundamentais para a descoberta de novos artistas e
tendências, não estavam conseguindo sobreviver e morriam aos poucos.Ela
perguntava-se como aquela cidade que a conquistara em um processo lento não
estava experimentando sua decadência final, na qual sua criatividade, seus
sabores, sua inventividade não seriam substituídos por hordas de turistas
incultos e executivos indiferentes.
        Nisto pensava Mariana quando eles se viram diante de uma manifestação
imensa de pessoas André, seu filho, que morava em Orlando, perguntou ao
enorme guarda com estilo de “South Dakota” o quê estava havendo e ele
respondeu que era uma manifestação contra a guerra.
        Seu neto Totô, com apenas 5 anos de idade, mais do que depressa,
sentiu-se no direito de somar sua opinião à dos manifestantes e começou a
gritar “No More Bush!!”, “No More Bush!!”
        Surpresa com o ímpeto do neto, mas ao mesmo tempo achando graça em
sua precocidade, Mariana pensou que             ele tinha mesmo puxado a ela.
Inconformista, sem medo de expressar sua opinião, decidido.....
Na verdade ela conseguia se enxergar em pequenos detalhes de cada um dos
netos, em Maria, em Totô, em Bebé – e a forma como estes traços tinham se
liberado e encontrado em cada um deles caminhos próprios a enternecia.
        Foi neste momento que Mariana parou para pensar no caminho que a
tinha levado até aquela cidade e no preço alto que pagara para manter juntos
os filhos e os netos amados.
        Dos relacionamentos aos quais não se acomodou, evoluindo a cada
romance, que viveu fugindo da mediocridade como só o fazem aqueles que têm
por meta viver um grande amor.
        Dos conflitos dos quais não fugiu, das injustiças que enfrentou, e do maior
desafio de todos, o que resgatou sua filha da escuridão, e que foi sua maior e
mais desgastante batalha – porém a que mais a recompensou. E de que os
momentos como aquele, nos quais se cercava das cores que enfeitavam sua
vida, faziam tudo ganhar sentido.
        Mariana pensou que havia três pilares que sustentaram sua vida até
aquele momento – a luta pela filha, a batalha contra as muitas injustiças de que
tinha sido vítima ao longo da vida – e que pretendia corrigir (como dizia Kahlil
Gibran, “para conhecer uma pessoa não olhe para o que ela já conquistou – mas
para o que ela aspira” e se havia algo que definia Mariana era sua busca por
justiça. Mariana não queria justiça. Ela PRECISAVA       de justiça, não para mudar
sua vida, mas para restabelecer o que acreditava ser certo) – e, last but not least
(por fim, mas não por último, como ela traduzia a velha frase dos ingleses), a
força redentora do bom humor, o mais poderoso bálsamo que conhecia.
        O filósofo Francis Bacon o definiu melhor do que ninguém quando disse
que, enquanto a imaginação tinha sido dada ao homem para compensá-lo por
aquilo que ele não é, o senso de humor servia para consolá-lo por aquilo que ele
é.




                                                                               6
Mariana estava convencida de que, quando não era possível encontrar uma
solução para um problema, no mínimo seria necessário encontrar alguma graça
nele.
        E em meio a tudo isso, sua arte não apenas a arte que tinha feito dela
uma pintora respeitada pelos críticos e premiada em exposições internacionais,
mas principalmente a arte de viver !
        A arte não de tirar leite das pedras, como dizia o antigo clichê, mas de
encontrar luz nas trevas, esperança no desânimo, abrigo no desamparo e força
na fragilidade.
        Picasso, um de seus pintores favoritos (e, de alguma forma, o artista cuja
obra a levara de volta para aquela cidade) costumava dizer que o papel da arte
era o de tirar a poeira que a rotina acumula em nossas almas.
        “Não é só a rotina que deixa nossa alma empoeirada” ela costuma
responder silenciosamente sempre que lembrava daquela frase. “A tristeza pode
até tirar um pedaço de nossa alma – e a arte é a única ginástica possível para o
espírito”

       Enquanto se afastavam daquela manifestação que tinha inflamado seu
neto, seus olhos também se perderam ao longe.
E, como não fazia há muito tempo, Mariana relembrou sua história, sem se
poupar nem mesmo das memórias mais difíceis, aquelas às quais era impossível
retornar sem que os olhos se enchessem de lágrimas, como a de uma casa
pegando fogo.




                                                                              7
1

Mariana está com oito anos de idade e sua casa está em chamas.
Dentro dela, algumas de suas melhores amigas, algumas das suas melhores
lembranças.
Seu irmão JR, três anos mais novo, tinha iniciado propositalmente um incêndio,
com a complacência de Lígia, a mãe de ambos, e que o fazia gargalhar com o
desespero da irmã.
A visão do fogo que consumia a casa fez com que Mariana, pela primeira vez,
rompesse a passividade habitual e partisse aos tapas para cima dele, com toda a
raiva, até ser contida por Lígia,que como de hábito se colocou ao lado do filho
.A casa incendiada era perfeita – bem diferente da casa onde Mariana vivia.
 Tinha cortinas, móveis, na cozinha um fogão rústico que enchia de calor o
ambiente, uma luz suave e aconchegante - de alguma forma, era dentro dela
que Mariana se refugiava do terror imposto pelo elo de perversidade formado
por Lígia e seu filho predileto.
Mariana tinha recebido a casa de presente de um amigo de seu pai e em toda a
sua vida jamais veria outra casa de bonecas tão perfeita quanto a que se
desfazia diante de seus olhos.
A destruição da casa começou tão logo Lígia e JR perceberam o encantamento
de Mariana por ela. O primeiro passo foi dado por Lígia, transformando a casinha
em depósito de jornais velhos e esta profanação do espaço da filha foi o sinal
verde para que JR exercitasse as ações iniciais da maldade psicótica que iria
marcá-lo para o resto da vida, culminando com o reveillon no qual, anos mais
tarde, ele apontaria um revólver para a têmpora de sua única irmã, ameaçando
matá-la.
Os jornais de Lígia foram lentamente tomando todo o espaço das bonecas e
iniciando o processo de desintegração de seu brinquedo favorito.
Mariana, para o resto da vida, ficaria intrigada com a força daquele momento – e
como, mesmo durante o permanente processo de erosão de sua auto-estima
desenvolvido por sua mãe e por seu irmão – e que incluiria perversidades muito
maiores - aquela casa de bonecas pegando fogo permaneceria como a
lembrança mais dolorida.
Olhando para trás, é bem possível que Mariana projetasse naquele lar de mentira
tudo o que o verdadeiro lhe negava – e que esta projeção fosse tão óbvia que
tenha inspirado tanto a sua destruição gradual por sua mãe quanto o golpe final
por seu irmão.




                                                                            8
O ano era 1954 e Antônio, o pai de Mariana, já era na época um dos mais
importantes empresários do país, dono de um dos três maiores grupos
econômicos do Brasil, além de um sem número de terras e propriedades. Três
anos antes, o presidente Getúlio Vargas autorizara sua família a construir uma
das maiores indústrias de alimento do mundo, coroando uma vida de trabalho
pesado,que se por um lado era extremamente bem sucedida, por outro o
roubava do convívio familiar e deixava sua filha mais velha à mercê da crueldade
da aliança entre mãe e filho.

Uma das torturas que Lígia impunha à filha era fazê-la passar fome. Na década
de cinqüenta, os médicos ainda estavam engatinhando na tipificação das
violências que os pais ,independentemente de classe social, praticam contra os
filhos.
A violência psicológica, uma das mais comuns, que inclui a segregação e a
discriminação entre irmãos e os castigos excessivos, ainda era um tabu, vista
como assunto privativo das famílias. Bem mais tarde, tentando compreender sua
vida e seu relacionamento com a mãe, Mariana aprenderia que ela estava longe
de ser a única vítima e que os abusos contra crianças eram muito mais comuns
do que imaginava e incluíam variantes ainda mais cruéis, como as síndromes do
bebê sacudido, a de Münchausen por procuração e mesmo a de Polle, nas quais
os maus tratos físicos infligidos pelos pais - geralmente pela mãe - levam a
criança a um estado permanente de prostração, risco de morte e uma maratona
infindável por médicos e hospitais.
Hoje é sabido que este tipo de violência é praticado com maior freqüência pelas
mães contra seus filhos biológicos e que os fatores que as levam a agredir física
ou psicologicamente seus filhos são a baixa auto-estima, problemas psicológicos
e psiquiátricos possivelmente herdados de sua infância, desarmonia conjugal,
alcoolismo e o uso de outras drogas, miséria, desemprego, frustrações de
realização pessoal que são descarregadas em forma de ira e violência contra
seus familiares.
Mariana estudou, compreendeu, mas sabe que existe uma distância enorme
entre entender e aceitar.
Nestas situações de violência contra crianças, os pais, mesmo que
involuntariamente, tendem a ficar ao lado das esposas e a não acreditar nas
queixas dos filhos, o que abre as portas para a continuidade dos abusos.
Este tipo de maus-tratos, principalmente o físico, ocorre com mais freqüência até
os oito anos de idade, mas no caso de Mariana haveria um desdobramento
dramático que a afetaria para o resto da vida: a diferença de tratamento entre
os irmãos viciaria JR em privilégios que ele julgava naturais e forjaria uma
personalidade patológica e amoral.




                                                                             9
2

A justificativa de Lígia para deixar Mariana passando fome era acostumá-la com
a pobreza.
A fome provoca um sofrimento insuportável. O corpo alerta para a falta de
alimento das formas mais dolorosas possíveis. O estômago se revira, acusando o
vazio. A cabeça lateja e parece querer expulsar os olhos das órbitas. A tontura
faz tudo girar. Surgem delírios.
Foram muitas as noites em que Mariana experimentaria aquela horrível
combinação de sensações, quando a mãe a mandava para cama sem jantar.
Lígia dizia que aquilo era para seu bem. Estava preparando a filha para o
inevitável dia em que seu pai perderia tudo e eles passariam fome de qualquer
maneira.
Mesmo aos oito anos, e em meio aos efeitos terríveis daquele jejum forçado,
Mariana percebia que havia algo errado nesta proximidade da ruína total pois
sua família era praticamente dona de cidades como Jaú, Tatuí ,Itapuí e Santo
André,.
   No entanto este sentimento não era páreo para a autoridade absoluta e
aterrorizante de sua mãe. : se ela queria que a filha aprendesse a viver sem
comida, Mariana não iria contestá-la.
Mesmo no recreio escolar, esta inferioridade de Mariana se manifestava.
Enquanto as outras crianças recebiam lanches apetitosos e guloseimas, Mariana
tinha que se conformar com lanches pobres, “naturais” como a mãe gostava de
chamá-los.
Quando o pai dava algum dinheiro a Mariana, ela decidia economizá-lo e
repassar à mãe, em parte para se preparar para os “inevitáveis” dia de miséria
futura, em parte para tentar “comprar" um mínimo de carinho e solidariedade da
mãe e, principalmente, do irmão: Como ele não era submetido ao mesmo
tratamento, havia uma percepção de que aquela derrocada financeira de alguma
forma o preservaria. “Será que eu sou a única que vou ficar pobre na família?”
Mariana costumava se perguntar nas longas noites em que a fome não a deixava
dormir, enquanto buscava em vão uma posição menos dolorida para dormir.
Com a sucessão de maus-tratos recebidos pela irmã, JR rapidamente entendeu


                                                                           10
que a mãe o privilegiava e tratou de levar o máximo de vantagem daquela
situação.
JR percebeu que a irmã era um membro de segunda classe daquela família e
que a melhor forma de garantir sua condição de favorito era estimular o
comportamento de Lígia em relação a Mariana.
Com isso, JR foi crescendo com a noção de que qualquer solidariedade em
relação à irmã seria um sinal de fraqueza e de ingratidão para com a clara
preferência de sua mãe.
Aquela situação absurda moldou uma miniatura de monstro ainda mais cruel que
sua autora, livre de qualquer freio moral e que quase vinte anos mais tarde iria
por meio de um golpe, desamparar todos os familiares.
Naqueles dias, Mariana seguia fazendo um regime forçado conforme o humor da
mãe e esperando dia após dia pelo momento em que seu pai adoeceria
gravemente e perderia tudo.
Não que perder tudo fosse mudá-lo.
Mesmo que isso acontecesse, Antônio seguramente continuaria a ser um
trabalhador incansável, para quem a educação precária não tinha sido obstáculo,
O mesmo filho de imigrantes libaneses cujo pai um dia fora expulso de uma
fazenda na qual fora mascatear e que diante desta humilhação decidiu comprar
aquela mesma propriedade como resposta à esta dor imposta ao pai.
Um homem simples, muito mais preocupado em ganhar dinheiro do que em
usufruir dele, cuja prioridade era oferecer segurança para a família e que nunca
percebeu que, pelo menos para sua filha mais velha, a grande ameaça estava
do lado de dentro da casa e que tudo o que ele tinha conquistado era inútil para
oferecer a ela qualquer defesa.
E para Mariana, esta ruína financeira não faria tanta diferença – afinal, ela já
vivia como pobre, mesmo dentro de uma das mais imponentes mansões da
cidade.




                                                                            11
3

Antônio nasceu na primeira década do século XX, o segundo dos seis filhos de
Felipe, um imigrante libanês e que, aos 19 anos, se tornaria o arrimo da família
com a morte de seu pai; responsável por levar adiante o pequeno armarinho
que sustentava a todos.
Com o apoio dos irmãos, aquele pequeno comércio, iniciado com o trabalho de
mascate de ,Felipe seu pai,          se transformaria em um dos maiores
empreendimentos do país.
Já em sua curva ascendente, Antônio encontrou Lígia, sua futura esposa e mãe
de seus dois únicos filhos, uma mulher 12 anos mais jovem, mais envernizada e
refinada do que ele.
O namoro se transformou em casamento na década de 40 – ele aos 37 anos, ela
com 25. Mariana nasceu um ano depois e JR três anos mais tarde.

Quando Mariana completou quatro anos de idade, Antônio obteve do governo
Vargas a autorização para seu projeto mais ambicioso: a construção de uma
indústria de processamento de alimentos, o flagship das empresas da família,
cujo enorme sucesso asseguraria a compra de mais fazendas, tecelagens, terras
e outros negócios.
Era em meio a este cenário de enorme sucesso que a filha de um dos homens
mais poderosos do país ia dormir sem comer. Já adulta, ainda tentando se
conciliar com sua infância, Mariana compreendeu que viveu uma situação muito
semelhante à de milhões de outros brasileiros e por isso não devia se ver como
uma vítima especial.
Ela sabia que no preciso momento em que tentava administrar seu passado,
milhares de crianças tentavam, como ela mesma, pegar no sono assombradas
pela dor desesperadora que a miséria traz,
 Mariana entretanto não podia deixar de pensar que havia uma diferença
fundamental entre o caso dela e o da maior parte destas crianças: ao lado da
maior parte dessas crianças famintas havia um pai ou uma mãe na mesma
situação – e cujo desespero se agravava por ver sua prole naquela situação.
O grande diferencial no caso de Mariana foi ter esta fome imposta não pela


                                                                            12
situação social, mas voluntariamente pelo sadismo de uma mulher perturbada a
ponto de torturar a própria filha.
Mariana cedo percebeu como era falsa a noção de que crianças abusadas e
submetidas a maus-tratos fosse uma exclusividade de famílias mais pobres ou
desestruturadas pelo álcool ou pelas drogas. Pelo contrário – o dinheiro – com
seus acobertamentos, cumplicidades compradas ou impostas, intimidações,
advogados – permite o perpetuamento de alguns desses abusos ,             até por
mais tempo do que em famílias mais simples, nas quais a observação de
vizinhos e professores muitas vezes interrompe esse ciclo.
Olhando para trás, Mariana não consegue lembrar se nasceu alegre ou triste.
Tem a impressão de que a tristeza foi se impondo gradualmente, na medida em
que enfrentava as situações que a situação familiar lhe impunha.
O que ficou muito forte daquelas primeiras experiências foi uma ansiedade de
separação, que tornaria qualquer despedida um episódio extremamente
doloroso, por menor que fosse - ir à escola, ir à casa de amigos e dormir lá,
viajar com seus tios e avós nas férias e mesmo deixar seus pais. A pior dor
daquela época era sempre ver seu pai partir. Antônio era para Mariana, em seus
oito anos de idade, a única referência de aceitação, de afeto, de importância.

Ele ia sempre ao Rio de Janeiro, voando pela Real Aerovias Brasil – e, se por um
lado, ela sabia que cada volta seria recompensada por pacotes de Mentex e
malas de roupas da Casa Boneca (o que dava a desculpa ideal para que Lígia
ignorasse suas necessidades de vestiário), cada embarque era acompanhado por
um terror profundo – a possibilidade de um dia não haver uma volta.
As roupas trazidas por seu pai faziam de Mariana uma personagem estranha –
uma triste menina pobre       vestida de princesa, mas que tinha dentro de si a
beleza das cores que já começavam a enfeitar o seu caminho.
Sua figura, sua delicadeza, bondade, somadas à posição social, sempre
despertaram muita inveja entre os menos privilegiados, suas colegas e
principalmente JR, que era muito feio e sem brilho.
Embora nunca adotasse uma atitude soberba - pelo contrário, sua simplicidade
era absoluta –mesmo assim suas colegas nunca perdiam uma oportunidade de
formar grupinhos para criticá-la, principalmente quando tirava as melhores notas
ou se chegasse ao Sacré Coeur num lindo carro rabo de peixe.
Era o carro da família e sua dedicação fervorosa aos estudos era levada por sua
curiosidade. Nada era feito para humilhar suas colegas...
Um belo rabo de cavalo preso por uma fivela já era motivo para despertar a ira
das colegas, assim como uma roupa bonita podia também levar JR a fazer uso
de sua tesoura e picá-la toda
.Embora muito se fale sobre o bullying na fase escolar, uma prática na qual
valentões abusam física e psicologicamente das crianças mais fracas, poucos se
dão conta de que o bullying é uma estratégia de exclusão do diferente – que
tanto pode atingir o mais feio, mais pobre, o menos inteligente quanto
justamente o oposto.


                                                                             13
Para o excluído, não importa se a exclusão é baseada em suas características
positivas ou negativas. O resultado é o mesmo: um sentimento de rejeição, de
não pertencer ao grupo, de não ser querido.
A grande diferença é que o bullying praticado contra o mais bonito, o mais rico,
o mais inteligente ou o mais esforçado desperta ainda menos simpatia nos
educadores, mobilizando-os muito menos em sua defesa. Este tipo de bullying
cria o pior tipo de vítima: aquele que não atrai simpatia, não desperta pena – e
por isso mesmo é deixada muito mais isolada.
Para Mariana, que já sofria a rejeição da própria mãe, o acréscimo de não ser
integrada as colegas de escola resultava em uma insegurança muito forte, um
sentimento de inadequação que a fazia voltar-se cada vez mais para seu mundo
interior.
Dentro de casa, o martírio de Mariana continuava. Antes de cada viagem de seu
pai, Lígia torturava a filha com seus “péssimos pressentimentos” que
antecipavam a morte de Antônio e pedia que ela falasse com o pai para evitar
“aquela” viagem em especial, que com certeza seria a última.
Como é claro Antônio não ia deixar de viajar por causa das advertências da filha,
a culpa de vê-lo subir as escadas dos aviões era avassaladora – sentia-se como
se o estivesse mandando para uma morte certa em troca de balas e vestidos.

Mariana mais tarde veio a compreender que estava no centro de um processo de
competição que a mãe tinha estabelecido com o pai – afinal, ela era a
sofisticada, a bem educada, a mulher refinada – ele, por sua vez, era o homem
pouco letrado – mesmo que tivesse uma elegância natural de fazer inveja . a
qualquer aristocrata.Que mesmo não se comportando de acordo com os padrões
artificiais da sociedade , era ele quem estava promovendo a ascensão da família.

Ainda que os frutos futuros desta ascensão fossem compartilhados por todos,
Lígia se sentia incomodada pelo fato de que sua classe e refinamento psicóticos
fossem superados pelo pragmatismo rústico de seu marido, embora esta
postura se traduzisse em um carisma ímpar e natural que Lígia falhava em
reconhecer, dominada pelos padrões afetados de sua irmã Marisa.




                                                                             14
4

O mundo de Marisa era cercado de reis e rainhas, presidentes, artistas de
Hollywood. Não importava o fato de ela nunca ter encontrado com nenhum
deles: em seu universo, construído com filmes , revistas e colunas sociais, era
como se cada um fosse seu íntimo.
Marisa abraçou um mundo inventado, cosmopolita, refinado - mas nunca teve
iniciativa suficiente para persegui-lo em sua vida real. Ao invés disso, optou pelo
caminho mais fácil: usar o casamento de Lígia, sua irmã, como trampolim para a
projeção que sonhava.
Marisa era a segunda de seis irmãs,mulheres ,das quais Lígia era a mais velha,
seguida de Daisy, Cristina, Silvana e Leila. Dentre todas, Marisa se destacava não
apenas pelos delírios megalomaníacos como também pela grande capacidade de
manipulação, da qual a principal vítima foi a irmã Daisy, que até a morte de
Marisa tornou-se uma espécie de escrava pessoal – e porta voz das malucas
exigências de Marisa,Foi por isso impedida por Marisa de incluir quem quer que
fosse em sua vida. Qualquer namorado estava “abaixo” dela, toda amiga era
interesseira, todo contato era devidamente rebaixado e enxotado pela força de
Marisa.
Curiosamente, Daisy, que durante toda a vida de Marisa tinha sido uma mulher
excepcionalmente doce com todos, com a morte de Marisa ,viria a ocupar seu
lugar de megera de plantão, assumindo o pior da personalidade da irmã que a
dominava.
Na batalha que logo se instalou entre o lado mais simples da família de Antônio e
o refinamento frívolo e afetado representado da família de Lígia, Marisa cedo se
destacou como uma eminência parda no centro do conflito que dividia o casal.
Para elas, não bastava que ele fosse um vencedor e acumulasse sucessos e
vitórias. Tinha que se adequar ao padrão fantasioso de Marisa, corrigir seu
português, buscar amizades interesseiras, freqüentadoras de frivolidades sociais,
afastar-se de seus irmãos e origens - vistos como cafonas e grosseiros pelo lado
de sua esposa.




                                                                               15
Nesta sede por uma legitimidade artificial, Lígia e Marisa acabaram inventando
uma personagem para JR desde seus primeiros dias. Em seus planos, JR
deveria ser educado para usar a fortuna acumulada por seu pai de forma a isolar
seu ramo da família da simplicidade de Antônio e de seus irmãos, para valorizar
toda a artificialidade e superficialidade que eles ignoravam.Seria ele “el vingador”
das fracassadas.
Não ocorria a elas que por trás desta aparente ingenuidade caipira de Antônio,
com seu pragmatismo e objetividade, escondia-se o motor que tinha promovido
seu sucesso – nem que a adesão cega a estes padrões destruiria a família e seu
patrimônio.

Antônio e seu irmão Affonso dividiam o mundo em duas partes: Os “amigos de
nóis” e o resto. Aos amigos de nóis, tudo era permitido. Eram eles os parceiros
que geravam negócios. Os amigos de nóis não precisavam ser chiques,
sofisticados, educados ou intelectuais. Tinham que gostar de nóis como nós
somos. Tinham que ficar ao nosso lado.
Os amigos de nóis entendiam o complicado código de mentiras da família. Como
estímulo, o lado paterno da família de Mariana adotava o que os americanos
costumam chamar de White Lies, as mentiras inocentes que buscavam como
motivar uns aos outros.
Nos longos e fartos cafés da manhã que reuniam Antônio e seus irmãos, as
pequenas mentiras inocentes preparavam uns aos outros para as lutas do dia.e
os grandes momentos de dificuldade de qualquer espécie.
“Fulana disse que você está mais magra”.que você era a mais bonita da festa...
“Sicrana disse que você estava linda no Domingo”.e que seu ex namorado não
tirava os olhos de você.
“Beltrano disse que andam falando que você vai ser homenageado como
empresário do ano”. Tenho certeza que este mês vamos faturar o dobro do mês
passado...isto sem olhar a contabilidade só para alegrar o outro irmão
Todos os irmãos participavam, fingiam acreditar e contavam suas próprias
mentiras, já que um elogio pedia outro correspondente.
Dos amigos de nóis era esperada a cumplicidade silenciosa e absoluta para cada
uma destas mentiras massageadoras de ego. Os amigos de nóis eram quem
compravam seus produtos e alimentavam o patrimônio que financiava a
realização dos sonhos de Lígia e Marisa.Os amigos de nóis eram os que
choravam com nóis nas horas díficeis e riam com nóis nas alegrias
Pessoas que, como Antônio, valorizavam a amizade, a confiança, a honra, que
desconfiavam da frieza bem educada e do desprezo dissimulado de gente como
Marisa.
Não importava a origem ou a cultura dos amigos de nóis. Um exemplo claro
ocorreu quando um grupo de representantes da Arábia Saudita foi convidado
para um jantar com a família, na sede das empresas que era o grande salão de
festas de seu tempo até mesmo as festas oficiais.
Antônio e seus irmãos logo perceberam que os enviados, embora nadando em


                                                                                16
dinheiro, não trariam nenhum negócio para eles nem para o Brasil. Quando
convidados por um executivo do grupo a se unirem à mesa principal, Antônio
respondeu “Fica lá com eles pela gente que nóis vai ficá aqui com o prefeito que
é amigo de nóis”
Foi escolhendo ao longo do caminho quem era qualificado para ser “amigo de
nóis” que Antônio se tornou um vencedor. Como estas escolhas não coincidiam
com as personagens que povoavam os delírios de grandeza de Marisa, ela e
Lígia forjaram o vingador. E, de alguma forma, ao inventarem um papel para JR,
criaram, por contraste, também um papel para Mariana.
E neste processo, Mariana teve que procurar um refúgio para aportar sua
sensibilidade, sua simpatia pelos valores autênticos ampliada pela rejeição do
ramo sofisticado da família. O mesmo processo de criação que fez de JR o
executivo implacável e mafioso fez de Mariana uma artista.
Mesmo com esta aparente simplicidade, os irmãos Antônio e Affonso se vestiam
muito bem – alternando seus ternos de casimira inglesa com os de tropical
Antônio também apreciava as camisas de palha de seda com abotoaduras de
ouro e sapatos de cromo alemão, impecavelmente engraxados.
Exagerava um pouco no uso de seu lenço sempre perfumado e colocado no
bolsinho superior de seus paletós, fazendo disso uma marca que o identificava
de longe. Os irmãos não dispensavam ternos de linho 120 no verão,
habilidosamente costurados pelos melhores alfaiates da cidade.
Quando foi possível comprar o primeiro carro, optaram por um Cadillac 50 e
contrataram um motorista para servir à família. Depois foram comprados carros
para a família toda - e tudo o que era comprado para um, democraticamente era
comprado para todos.
Podia ser um conjunto de apartamentos no litoral paulista, as jóias para as
esposas ou mesmo a série de mansões no bairro dos Jardins – a primeira para a
mãe, depois para as irmãs e a última para o pai de Mariana, que morou em casa
de aluguel até ela completar seus 15 anos
Quem conhecia Antônio não o esquecia jamais. O modo simples que irritava
Marisa e Lígia era inesquecível para quem cruzava seu caminho – qualquer que
fosse o ambiente, impunha respeito tanto às pessoas mais simples quanto às
autoridades e aos intelectuais, respeito conquistado não tanto pela capacidade
de fazer fortuna, mas pela óbvia aura de sagacidade e sabedoria, que fizeram
dele confidente e conselheiro de pessoas dos mais diversos estratos sociais.

Muitos anos depois da morte do pai, Mariana encontrou um corretor de imóveis
em um sofisticado clube de São Paulo. Quando soube quem era seu pai, contou
a seguinte história: num certo domingo de verão estava de plantão para vender
os apartamentos de um prédio na Avenida Rebouças. Estava desolado porque já
eram sete horas (da noite? É bom esclarecer)       e não havia vendido nada,
quando chegaram os irmãos Antônio e Affonso,displicentemente O corretor,
cansado e aborrecido, bem na hora em que ia encerrar o plantão, imaginou que
além de não vender nada, ia perder tempo com um par de curiosos.


                                                                            17
Eles fizeram algumas poucas perguntas, disseram que tinham gostado da
aparência e da localização do edifício e perguntaram quanto custava.cada
apartamento. O corretor informou o preço. Eles perguntaram quantas unidades
estavam disponíveis. O corretor disse que não havia vendido nada e que em caso
de interesse eles podiam escolher qualquer umr. Os irmãos cochicharam entre
eles e disseram a frase que quase infartou o corretor de imóveis: Pode passar
amanhã no escritório que a gente vai ficar com o prédio inteiro. Tudo o que o
corretor conseguiu dizer foi: “Sim, senhores”.

Lígia não era exatamente o tipo de mãe que perderia tempo em contar histórias
para qualquer criança nem mesmo para uma filha, mas Mariana encontrou em
seus avós maternos - o avô George, um príncipe segundo ela, e sua avó Flor –
contadores entusiasmados de histórias envolventes.
De suas bocas brotavam histórias que remetiam a terras maravilhosas, que
levavam Mariana para um Líbano parte real, parte recriado pela saudade;
sempre usando o superlativo, diziam o Libano onde o ar estava impregnado dos
mais doces perfumes, as frutas que nasciam de suas árvores transpiravam mel,
as águas dos rios eram capazes de gelar uma melancia em poucos minutos, a
ponto de rompê-la,uma cereja tinha o tamanho de um melão e por aí afora
Mariana viajava naquelas histórias, embalada pela voz melódica de seu avô, que
ainda enfeitava cada narrativa com canções típicas.

Mariana teve três primos do lado materno : Paulo, filho de sua tia Cristina, Carlos
e Renata, filhos de Silvana. Como havia muita diferença de idade entre Mariana e
seus primos, ela os tratava como irmãozinhos menores, sempre lhes dando
muito carinho, levando-os a viajar juntos nas férias, nos finais de semana e
sempre lhes lascava um beijo gostoso como mais tarde faria com os próprios
filhos.
Renata tem todos os predicados de anjo: com o sorriso sincero e a fraternidade
sempre estampados no lindo rosto, parece que nunca diz “não” e está de
prontidão para responder com palavras doces a quem lhe conta um problema.
É tão íntima de Mariana que elas se tratam por apelidos engraçados, Mariana
chama Renata de “My Star” e Renata trata Mariana de “minha chéfala”,
lembrança do tempo em que trabalharam juntas. A proximidade entre as duas é
tão grande que Renata é capaz de imitar não só a voz de Mariana como também
antecipar o que ela tem a dizer sobre diversos assuntos. Renata desenvolveu
esta técnica a um nível tal de perfeição que consegue passar trotes nos próprios
filhos de Mariana.
Carlinhos, irmão de Renata, a quem Mariana também dedica muito amor, é seu
cúmplice nas críticas, que não poupam ninguém e sempre são repletas de
referências eruditas e bem humoradas. Quando estão filosofando, seus cônjuges
precisam se afastar para não tirar a liberdade de eles voarem.
Os dois primam um pouco pela distração quando estão em processo de criação.
Certa vez Mariana recebeu sua conta com uma chamada de 57 minutos para um


                                                                               18
celular. Imaginando que o telefone estivesse sendo clonado, ligou para o número
em busca de esclarecimentos.
Atendeu uma voz de homem e Mariana lhe pediu que se identificasse. O outro
ficou furioso e exigiu que ela se identificasse primeiro ,parece que os paulistas
estão a tal ponto neuróticos com os golpes e assalto que têm medo até de dar
seu nome ,e assim ficaram um tempo discutindo para saber quem era quem até
que Mariana se adiantou e disse: “meu nome é Mariana e quero informá-lhe que
já descobri que o senhor clonou meu celular e eu estou pagando altas contas
telefônicas de ligações que o senhor tem feito”
Do outro lado, a voz respondeu: “Oi, Mariana, sou eu, Carlinhos”.
O constrangimento deu lugar às gargalhadas e a história se incorporou ao
folclore que une os primos.
Paulinho, seu outro primo, a quem Mariana amava muito e era por ela mimado
em todos os sentidos, mesmo quando adulto e com mestrado em Boston, é uma
nota triste em sua história. Paulinho era filho de sua tia Cristina, mulher de
personalidade fraca e cuja vida foi sempre um mar de tristezas.
Ela se casou por amor e teve este único filho. Certo dia, sem nenhum aviso, seu
marido foi embora de casa enquanto ela estava num chá, sem sequer se
despedir, para nunca mais voltar. Paulinho tinha 14 anos.
O sofrimento de Cristina foi mortal, pois ela adorava o marido - que por sinal era
querido pela família toda porque era uma excelente companhia, engraçado e
bem disposto. O choque foi geral, todos compartilhavam a dor de Cristina e
Paulinho, menos Marisa que sem a menor generosidade criticava a irmã por ter
sido abandonada pelo marido.
Paulinho cedo começou a trabalhar. Formou-se na Fundação Getúlio Vargas
(FGV) e logo já se responsabilizou pela mãe, que era muito despreparada tanto
para o trabalho quanto para as adversdidades da vida. O pai nunca mais voltou
ou deu noticias, mas souberam que ele tinha se casado de novo e tivera outros
filhos.
Paulinho, que fez mestrado, era muito bonito, tinha cabelos dourados e uma
simpatia imbatível. Com muito esforço e trabalho conseguiu juntar um razoável
patrimônio. Aos 33 anos reencontrou o pai, que começou a extorquir seu
dinheiro.a quem Carlinhos também não negou seu perdão e nem as
necessidades do pai.
No auge da vida e da carreira, assediado por lindas garotas, comprou uma
moto. A pedido da família resolveu vendê-la e saiu para dar uma ultima volta e
se despedir da moto. Foi a ultima volta de sua vida também, pois sofreu um
grave acidente e morreu uma semana depois.
A dor foi cruel como foi cruel a vida para Cristina.
Para Mariana, foi como se um pedaço dela mesma tivesse ido embora, não havia
como consolar Cristina. Todos os sobrinhos se desdobraram em lhe dar carinho,
mas jamais conseguiriam apagar sua dor.
Além disso, o ex-marido apareceu para pleitear sua parte na herança e até a
moto em que o filho tinha morrido. Nesta hora Mariana e seu irmão JR agiram


                                                                              19
em rara consonância e mandaram a moto para o canalha.
Cristina, maltratada pela vida, acabou morrendo precocemente e a família foi
unânime em pensar que com a morte ela estaria num lugar lindo ao lado do
filho.
Ligia era profundamente má e especialista em magoar ainda mais quem já
estava ferido. Cristina, sua irmã e mãe de Paulinho, sempre foi extremamente
sensível. Com as dores pelas quais passou, primeiro com o abandono do
marido depois com a dor incurável da perda de um filho, só lhe restava se apoiar
nos braços das irmãs e sobrinhos e até mesmo em Lígia, que cobrava qualquer
tipo de solidariedade com a maior crueldade possível. Tinha uma forte memória
voltada para o mal e o passado na ponta da língua para jogar sobre qualquer
pessoa a qualquer hora – só poupando a JR ,seu filho idolatrado
Várias vezes dizia a Cristina que a havia a ajudado financeiramente, quando
seu marido a abandonara. A mais cruel cobrança, no entanto, era sobre o
pagamento do enterro de Paulinho, pois como ele trabalhava na firma
administrada por JR, aparentemente por praxe ou direito o enterro é pago pela
empresa, assim como as providencias funerárias. Pois Lígia tinha a coragem de
repetir para Cristina: “Coitado do meu filho - até o enterro do seu foi ele que
pagou”. Cristina era incapaz de responder qualquer coisa, pois no fundo tinha
medo até de perder uma irmã malvada como esta.
Mariana nunca deixou passar batido esta colocação da mãe, chegava a gritar
mesmo com ela, brigar e tentar incutir um mínimo de humanidade naquela
mulher. A cada vez que presenciava esta cena horrorosa, sentia além de tudo
muita saudade de Paulinho e, o pior ,sua completa impotência para fazer sua
mãe ter um pouco de compaixão
Contudo, a vida é irônica e quando Lígia morreu – sem ter seu amado filho por
perto – as despesas do funeral foram imediatamente assumidas por Luís, filho
de Mariana, já que a empresa de JR estava sem caixa e o valor pago pelo neto
nunca foi revelado a ninguém .




                                                                            20
5

Com o tempo as torturas que Lígia infligia à filha se deslocaram do terreno
físico para o emocional. É bastante comum que, tão logo as crianças submetidas
a esse tipo de tratamentos ganhem a capacidade de denunciar os maus-tratos,
ou mesmo de reagir, os abusos ganhem contornos mais sutis.
Foi o que aconteceu na relação de Mariana com sua mãe. Ela já não podia fazer
a filha passar fome como aos oito anos de idade, mas ainda podia fazê-la se
sentir um estorvo naquela mansão, indesejada, inadequada, longe do modelo de
perfeição que Lígia via no filho mais novo e que conspirava para que ele se
tornasse progressivamente menos preparado para a vida, reagindo com
agressividade à menor contrariedade.
O consolo era recorrer às mães alternativas: o carinho das tias, principalmente
das irmãs de Antônio – Leta, Joana e Dorô
Tia Leta era o porto seguro, mulher solidária, bondosa e forte. Tia Dorô sempre
foi vizinha de Mariana e seus quatro filhos herdaram dela a simpatia e a arte do
acolhimento. O filho mais velho de Dorô, Wilson, mal podia esperar pelo final do
jantar para atravessar a rua e encontrar o tio Antônio, a quem divertia com
deliciosas histórias, que enfeitava a exaustão. Wilson se tornou um respeitado
médico, construindo uma carreira respeitável e honrando o carinho e a amizade
que Antônio lhe dedicava, um amor quase paternal e totalmente correspondido.
Era como se Antônio projetasse nele o filho ideal que nunca conseguiu encontrar
em JR.
Por serem vizinhos muito próximos e morarem em um ambiente repleto de
música, calor humano e alegria, era comum que suas portas estivessem sempre
abertas para a prima. As trocas de visitas eram constantes e sempre deliciosas,
especialmente aos domingos à noite, quando o marido de tia Dorô,tio Michel,
preparava pessoalmente sua deliciosa receita de Kabab, que era desfrutada por
todos. Ele próprio era o responsável por enrolar a carne assada no pão sírio e
levar até cada membro da família, que nunca conseguia parar no primeiro, uma
refeição cheia de sabor, risos, temperos e histórias e que envolvia a todos,


                                                                            21
menos Lígia, que se alheava à alegria coletiva, ensimesmada em seus
pensamentos mórbidos.
Joana era a mais sensível, artista. Foi através da convivência com Joana que
Mariana encontrou o mais poderoso bálsamo para amainar a dor da rejeição
materna: Descobriu que com lápis e papel podia desenhar mundos alternativos.
Percebeu que tinha a habilidade de traçar paisagens, pessoas, animais e que
aquele presente não podia ser tirado dela. Ao contrário de uma casa de bonecas,
que podia ser incendiada, a arte se reforçava a cada mau-trato, a cada gesto de
indiferença. Era o seu escudo, devolvendo beleza a cada agressão, respondendo
com graça a cada insulto.
Mas a arte, mesmo sendo um apoio poderoso, tinha um limite para proteger
Mariana. Ela precisava se afastar de tudo aquilo, conquistar sua vida,
materializar as esperanças e a liberdade que inventava com seus pincéis. O
único caminho para uma menina recém-saída da adolescência naqueles anos
conservadores era o casamento.

Mariana tinha se apaixonado pela primeira vez aos doze anos de idade. Estava
com Daizy em uma sorveteria e seus olhos cruzaram rapidamente com Júlio, um
jovem pouco mais velho do que ela e membro de uma respeitada família da
comunidade. Voltou para a casa com o coração sobressaltado – o que só piorou
quando Júlio ligou para a casa dela.
Morta de medo da reação do pai, pediu que ele não ligasse mais e pouco tempo
depois o viu namorando uma garota mais velha.
Foi assim que Mariana descobriu a reviravolta no estômago e o coração
disparado que acompanham uma paixão. E foi ao não sentir nenhuma destas
coisas que ela descobriu que Tiago não era a paixão de sua vida.
Não que houvesse algo de errado com ele. Tiago era fino, bonito, alto,
sofisticado. Mas faltava nele algo que provocasse o descompasso que Mariana
tinha descoberto naquela primeira paixão de menina.
Ainda assim, Tiago era um caminho para escapar da casa onde nunca tinha sido
bem-vinda. E, com o sentimento de baixa estima incutido pelo tratamento da
mãe, Mariana nem se sentia digna de um amor como aquele da sorveteria, como
ela se lembraria daquele fugaz encontro com Júlio.
O casamento de Mariana teve tudo digno de um conto de fadas – festas,
recepções, lua de mel internacional... Como nem tudo é perfeito, faltou apenas o
“foram felizes para sempre...”
Mariana se casou aos dezessete anos, sem conhecer nada da vida, isolada do
mundo tanto pela rigidez do pai quanto pelo sentimento de inadequação
meticulosamente cultivado pela mãe. Nestas condições, Tiago parecia a melhor
alternativa para fugir de um lar opressivo e se descobrir como indivíduo,
escapando das garras de sua mãe e de seu irmão.
O fato de perceber que estava “usando” Tiago como passaporte para a liberdade
criou um sentimento de culpa que a transformou na mais devotada das esposas,
um esforço compensatório.


                                                                            22
Tiago vinha de uma família na qual o refinamento freqüentemente se confundia
com a hipocrisia. Era uma família desacostumada com demonstrações de
afetividade, onde tudo era tratado em voz baixa, os problemas nunca eram
abordados de frente e os conflitos, ao invés de         serem resolvidos, eram
abafados.
O casamento, que já partiu de um sentimento morno, não iria melhorar com o
tempo.
A festa, entretanto, contrastando com a falta de emoção, foi excepcionalmente
suntuosa; afinal, era um acontecimento o enlace dos filhos de duas das mais
respeitadas famílias da comunidade, que reuniu a elite financeira e política
nacional, já que o pai de Mariana estava no meio de seu mandato como
deputado federal e contava com o respeito de quem exercia o poder do país.
A família de Tiago representava o lado fino da comunidade, uma família com
ares imperiais, para a qual a finesse morava na fronteira da frieza. A de Mariana,
por sua vez, representava a força do trabalho, a força do capital.
             A dupla comemoração

 De tempos em tempos, Mariana recebia presentes muito caros de pessoas que
nem ela nem a mãe conseguiam identificar.
Só na festa, ao recepcionar os convidados, elas entenderam que Antônio e tio
Affonso haviam “falsificado” convites para mandar para os “Amigos de nóis”,
parceiros de negócios afluentes e fora do radar da lista VIP elaborada pela ala
materna da família. Estes convidados, pessoas simples que tinham progredido
com esforço e ao lado das quais Antônio se sentia muito mais à vontade,
contribuíram muito para injetar vida na festa.
 Foi mais uma das muitas peças que Antônio e o irmão Affonso costumavam
aprontar em absoluta cumplicidade e silêncio. Houve outros episódios, que se
incorporaram ao folclore familiar.
O “causo dos colchões” foi um deles. Anos atrás, quando administravam sua loja
de armarinhos em uma cidade com 5000 habitantes, os irmãos receberam cerca
de 200 colchões como pagamento de uma dívida.
Sem ter o que fazer com este elefante branco, Antônio atravessou a rua e
ofereceu os colchões para o Seu Renato, dono de uma loja concorrente. Seu
Renato respondeu que vendia no máximo um ou dois colchões por ano – e que
não tinha nenhum interesse em adquirir 200 unidades.
Foi quando a dupla Antônio e Affonso se reuniu para arquitetar um plano de
marketing. Pediram aos amigos para parar na loja do Seu Renato e perguntar se
ele tinha colchões para vender. O esquema durou alguns dias ,e finalmente
Antônio voltou à loja de Seu Renato para repetir a oferta.
Impressionado com o súbito aumento de demanda, Seu Renato concordou em
arrematar o lote.
Muitos anos depois, Mariana voltaria à loja do Seu Renato,na pequena cidade já
com seus filhos . Ele a reconheceu e recebeu com todo carinho, brincou com
suas crianças e convidou a todos para o acompanharem até o sótão. Lá


                                                                              23
dentro,para susto de todos mostrou uns 180 colchões;era, o saldo daquela
história. Mariana e seus filhos muito sem graça ,sairam segurando os risos e
acabaram dando gargalhadas na praça em frente. Aquela estratégia ingênua,
mas muito sagaz , bem armada pelo pai e pelo tio que jamais frequentaram uma
escola de marketing. era mesmo digna de muita admiração,e a graça era a
feição patética de seu Renato que já convivia com aquela montanha de colchões
há mais de 30 anos.

Voltando para casa, os filhos de Mariana cercaram o avô, que os presenteou com
detalhes da operação “colchões” e outras divertidas histórias, que tornavam seus
laços ainda mais estreitos e carinhosos.
 Outra história clássica dos irmãos, muito parecida com a do casamento de
Mariana, foi a recepção a um grupo de empresários estrangeiros em visita às
empresas do grupo. Como era hábito, encomendou-se ao buffett uma
quantidade enorme de comida, um exército de garçons – quando finalmente
perceberam que o grupo convidado era muito pequeno.
Sem que ninguém soubesse, os irmãos decidiram que não ia faltar gente na
festa: foram até à rádio local, onde tinham muitos amigos, e inventaram uma
festa comemorativa para a qual toda a população estava convidada. Em pouco
tempo, as imediações da indústria estavam lotadas de pessoas simples, usando
as melhores roupas que tinham em seus armários.
Subitamente, o problema de falta de convidados transformou-se em outro, ainda
pior: como alimentar o que parecia ser metade da cidade. A solução veio mais
uma vez da inventividade dos irmãos: a entrada foi servida para um grupo mais
seleto, o prato principal para os convidados ao centro e as sobremesas para
matar a fome dos convidados de última hora. Todos foram servidos ao mesmo
tempo graças a estratégia dos garçons e maîtres e os convidados meio confusos
nem ousaram imaginar o quê se passara achando isto sim que aquele jeito de
servir era a mais moderna e extravagante do momento
Como a festa foi muito bonita, contando com um luxuoso show de um dos mais
famosos empresários da noite e a presença de uma miss em via de se tornar
uma das mais importantes atrizes do país, tudo acabou virando festa e risos. – e
Antônio e Affonso quietinhos num canto como dois moleques travessos fingiram
não saber de nada,mas para a familia que sempre esperava qualquer coisa dos
irmãos imprevisíveis reconheceram em suas expressões a peça que haviam
aprontado.
Felizmente, no casamento de Mariana os convidados inesperados não foram
problema nenhum. Um dos irmãos de Antônio, Alfredo, afetado por problemas
de alcoolismo, mas extremamente doce, saiu de manhã, já um pouco alto e
eufórico com o pedido da sobrinha para ser seu padrinho de casamento,Ele era
habitualmente convidado para padrinho de casamentos no interior de onde
nunca saiu,seus presentes sempre foram carneiros,porcos peru bem a moda da
roça.
 Inesperadamente voltou mais tarde trazendo um carro 0Km como presente de


                                                                            24
última hora – um Karman Ghia vermelho ano 63.o qual nem a sobrinha podia
dirigir pois tinha apenas 17 anos,mas para alegria de todos o belo carro ficou ali
estacionado na frente da casa alimentando o orgulho de tio Alfredo que pela
primeira vez deixou de presentear alguém com os porcos e carneiros da faz
fazendas

Um dos aspectos mais constrangedores para Mariana – mas que infelizmente
eram parte da tradição – foi a exposição dos presentes de casamento –numa ala
da casa dedicada a exibir os presentes recebidos pelos noivos, incluindo muitas
jóias.pratarias,objetos de arte e os Grandes presentes dos amigos de nós que
sempre eram maiores no tamanho e nos valores.
O constrangimento de Mariana com aquele museu dos presentes                 fora
ultrapassado apenas por um evento anterior: a exposição do enxoval completo,
incluindo a “camisola do dia”, em um chá oferecido para a fina flor das mulheres
da sociedade, que se enchiam de quitutes diante do espetáculo da intimidade
devassada da noiva embaraçada – calcinhas combinando com lençóis
combinando com toalhas de banho combinando com fronhas, em uma sucessão
infindável, em meio aos mordomos uniformizados servindo doces e bebidas
quentes nas mais finas louças e pratarias.A patrocinadora deste evento foi tia
Dorô que não concebia deixar por menos aquilo que a primeira sobrinha que se
casava levava na sua grande bagagem de futura esposa.Tia Dorô também era
muito leve e este gosto era mais criativo do que protocolar.
Era difícil para Mariana imaginar, mesmo nas tribos mais primitivas, algum rito
de passagem que exibisse, com toda pompa e circunstância, o traje com o qual
uma de suas virgens seria iniciada, mas aparentemente, desde que a camisola
fosse da grife de uma grande bordadeira, a sociedade da época considerava a
exposição normal.
Mariana já começava a manifestar a rebeldia que o tratamento materno
alimentara e que a tornaria cada vez mais avessa às formalidades sociais
convencionais; aquela exposição, devassando sua privacidade, embora habitual,
já lhe provocava mais estranheza do que o orgulho comum às noivas de seu
círculo social.

A principal lembrança que Mariana guardaria da lua de mel foi do tempo em que
ficou chorando escondida de Tiago.por ter assumido uma responsabilidade tão
grande com sua tenra idade

 Para ele,ao contrário que vinha de uma família respeitada, mas sem a mesma
condição econômica tão grande como a de Mariana, colocar seu sobrenome na
filha mais velha de Antônio era um feito considerável. Com o casamento,
rompeu-se a discrição imposta pelo código de sua família e vieram a visibilidade,
a possibilidade de gastar seu dinheiro com aquilo que quisesse, o acesso às
festas de alta sociedade – que Mariana apenas tolerava – e mesmo um cargo de
destaque na empresa.


                                                                              25
Mariana começou a se acomodar com aquilo que ela imaginava seria sua vida
sentimental: uma relação sem grandes arrebatamentos afetivos ou sexuais, sem
grandes emoções, estável e vagamente chata.
Vieram os três filhos – Cássia, Luís e André – que deram a Mariana todas as
razões para achar que seu casamento tinha valido a pena. Paralelamente, sua
carreira como artista plástica começava a decolar. A arte de Mariana nunca teve
um propósito claramente comercial, era, antes e acima de tudo, um meio de
expressão de suas convicções e estética
Foi neste processo que seus trabalhos foram descobertos meio que
acidentalmente . Ela estava decorando sua casa com um grupo de arquitetos do
Rio de Janeiro. Um deles viu, vários quadros encostados na parede
acanhadamente e logo quis saber de quem era a autoria daquelas obras
.Mariana assumiu a maternidade dos quadros.
 Rapidamente este grupo, com grande visibilidade e trânsito no meio cultural do
Rio, provocou sua primeira exposição individual de destaque.
No dia da abertura da exposição, Mariana tentava chegar ao espaço da
vernissage e intuiu que seria um fracasso: a rua em Ipanema onde ficava a
galeria estava intransitável e ela imaginou que ninguém enfrentaria aquele
trânsito para ver os quadros de uma artista desconhecida.
Quando finalmente entrou na galeria, assustou-se ao perceber que o trânsito
tinha sido provocado por ela mesma: eram as pessoas interessadas em seu
trabalho que estavam congestionando a rua que dava acesso à galeria.
O trabalho de relações públicas, desenvolvido por seus descobridores, resultara
em uma nota dos mais influentes colunistas sociais da cidade, bem como uma
boa acolhida dos críticos de arte, provocando assim um enorme interesse por
sua obra ; conseqüência ; uma galeria lotada.pela charmosa sociedade carioca.
Antônio, na época já doente e impossibilitado de ir ao Rio para a vernissage,
atuou nos bastidores e, sem que ela soubesse, estimulou alguns dos amigos de
nóis a comprar seus trabalhos, dando um impulso comercial importante para sua
carreira.
Neste processo, por meio de sua arte – e não das realizações de sua família –
Mariana começou a se tornar mais conhecida na mídia. Tiago percebeu, mesmo
com a projeção que o casamento lhe proporcionara, que ainda havia novas
esferas sociais a serem conquistadas e as pinturas de sua esposa eram uma
nova carta de trânsito.
De repente, Mariana e Tiago         foram convidados para festas, recepções,
cruzavam com figuras do meio artístico, rostos que até então só tinham visto em
colunas sociais. Era um mundo do qual Mariana podia ter desfrutado desde
sempre, mas pelo qual nunca tinha se interessado, e que agora corria atrás dela
em função da visibilidade de sua arte, cobrando sua presença.
Seu deslumbramento com aquilo era nenhum – estava feliz com o
reconhecimento de seu trabalho, mas nunca tinha perdido a perspectiva do fato
de que ela permanecia sua mais rigorosa crítica – e a opinião positiva dos outros
era, no limite, um reforço agradável.


                                                                             26
Esta situação a expôs não apenas como artista, mas também como mulher.
Finalmente madura - afetiva, sexual e artisticamente - Mariana mais do que
nunca começava a atrair outras pessoas. Uma dessas pessoas foi um jornalista
contatado para dar em São Paulo o mesmo impulso que os jornais cariocas
tinham dado a sua carreira no Rio.
Este jornalista, bastante influente, começou a assediá-la mais agressivamente.
Não que ele fosse especialmente atraente, principalmente comparado à beleza
clássica de um homem como Tiago. Mas, como alguns homens que sabem não
serem especialmente bonitos, ele tinha desenvolvido um charme excepcional,
uma capacidade de dizer exatamente o que uma mulher quer ouvir, de elogiar
exatamente o que uma mulher quer ver valorizado. Enfim – um profissional da
sedução, cuja prova mais evidente era a beleza excepcional de sua esposa.
O cerco a Mariana começou de forma sutil: alguns elogios, um abraço um pouco
mais apertado do que o normal, gestos que ficavam em uma zona nebulosa
entre a corte e a gentileza. Progressivamente a sutileza foi deixada de lado e as
intenções do jornalista começaram a se tornar mais óbvias. Gracejos sussurrados
no ouvido. Uma mão boba em um jantar com a presença dos cônjuges de
ambos. Telefonemas no meio da tarde.
A reação inicial de Mariana foi de medo: tão logo o jornalista se mostrou mais
agressivo, ela imediatamente dividiu com Tiago o que estava acontecendo.Afinal
Tiago foi praticamente seu primeiro namorado e ela não tinha a menor
experiência em se desvencilhar deste tipo de situação
Foi quando Mariana percebeu o poder que a maternidade tem de dessexualizar
uma mulher. Tiago desdenhou daquele flerte, interpretando-o como parte do
jogo de cena social – aos seus olhos, era como se fosse impossível alguém se
interessar por uma dona de casa como a mulher dele.
Em outras palavras, ele já tinha perdido a capacidade de ver nela um ser
sexuado, atraente – Mariana, embora no auge de seu poder de atração, era para
ele apenas a mãe de seus três filhos e ele não estava disposto a abrir mão da
presença nas festinhas da sociedade em função deste assédio que ela vinha
sofrendo, nem sequer abdicar da companhia do jornalista que, afinal, era a
principal fonte de convites para estas festas.
Subitamente, a culpa que a amarrava ao casamento começou a se desintegrar e
se transformar em indignação. Todo o empenho que ela tinha colocado para se
tornar a esposa perfeita tinha de alguma forma conspirado para criar um cenário
nelson-rodrigueano, aquele no qual parece uma tara desejar sexualmente a mãe
dos próprios filhos.
Mariana resistiu ao assédio insistente do jornalista – e de outros que vieram no
caminho. Mas entendeu que seu casamento tinha morrido.




                                                                             27
6

Mesmo reconhecendo as limitações afetivas dos laços que a ligavam a Tiago,
Mariana sabia que o casamento era um abrigo seguro para o jogo insano que
sua mãe e seu irmão continuavam mantendo. O fato de Tiago ter sido escolhido
para um alto cargo executivo na empresa familiar realimentava sua proximidade
com a banda doentia da família.

A precariedade da saúde de Antônio, sempre uma carta certa para abalar
Mariana – e que Lígia tinha aprendido a colocar na mesa desde cedo -
continuava a ser usada como um elemento opressor.
Todos sabiam que Antônio era cardiopata e diabético – e aquilo, nas palavras de
Lígia, eram razões para que ele trabalhasse menos – não para se preservar, mas
para minar sua escalada.
E Mariana era chantageada para levar até ele estes apelos de redução do ritmo
de trabalho – arcando ainda com o ônus de não ser ouvida e, ao fracassar, ser
cúmplice no programa de suicídio que ele, na visão de Lígia, estava envolvido.
Quando solteira, Mariana chegava a passar horas ao seu lado, observando sua
respiração ritmada, desesperada com a perspectiva de que a qualquer momento
ela poderia testemunhar seu último suspiro.
Antônio era levado aos mais diferentes médicos que se contradiziam entre si
impondo sofridas restrições que comprometiam sua alegria de viver.
Pão, sal, doces, frutas. Tudo o que era prazeroso ,era cortado da vida dele. Com
o endosso dos médicos, Lígia se fortalecia como dona da situação e
transformava sua casa em um campo de concentração.
Mariana, sem voz ativa, agia às escondidas, contrabandeando alimentos
gostosos para o pai, contando suas mentirinhas, lendo o jornal e cercando-o de
atenção e carinho toda vez que a mãe saía de casa.Tio Affonso também era
diabético;,tudo que o pai e o tio gostavam Mariana lhes oferecia,era cética sobre
as opiniões médicas assim como desacreditava em Lígia e JR e suas boas
intenções.Ela sempre soube que seus mimos ao pai e tio queridos eram dados
com tanto amor que não interfeririam na glicose de ambos.Ela acreditava que
era o amor que curava .
Antônio, fragilizado pela doença, ficava à mercê da tirania da esposa e da


                                                                             28
crueldade do filho, que não o poupavam e criavam tratamentos inúteis e sofridos
para “o seu bem”, relembrando Mariana das noites em que passava fome,
também para “o seu bem”.
Um dos pequenos consolos de Mariana ao ver o pai naquele estado era saber
que ela podia, de vez em quando, levar escondido um bom
 arroz doce, seu doce predileto, sabendo que não era esse pequeno prazer que
ia piorar seu estado.
Com a pressão psicológica de Lígia, Mariana passou seus 32 primeiros anos de
vida esperando pela morte de Antônio e tendo que enfrentar a possibilidade da
perda brutal de seu único norte.
 Os efeitos da atitude repressora de Lígia sobre a filha eram tão fortes que
Mariana não se lembra de ter gargalhado até a idade de 30 anos. Conversando
com um divertido grupo de amigos cariocas, ela se surpreendeu gargalhando
gostosamente para então se dar conta de que até então suas manifestações de
alegria eram os sorrisos contidos e envergonhados típicos de uma mulher
reprimida.Aquela noite quente no Rio foi mais um marco inesquecível em sua
vida

 Às vezes, durante os últimos anos de vida de Antônio, Mariana se surpreendia
pedindo a Deus que acabasse logo com aquela angústia – e que já que era
inevitável que ela tivesse que encarar o enorme vazio deixado pela falta de seu
pai, que fosse logo, que esperar pelo pior era sofrer em câmera lenta e que seria
melhor mergulhar logo no abismo, poupando seu pai querido de tanto
sofrimento. A morte, que Lígia sadicamente gostava de antecipar para Mariana,
acabou acontecendo em 1978, quando Antônio tinha 70 anos.
Mariana dependia profundamente do amor de Antônio para ancorar um mínimo
de auto-estima. Era o amor dele que fazia com que ela encontrasse algum valor
na sua vida, o contraponto para a rejeição de Lígia. Por isso, Mariana tentava se
preparar para o momento da despedida, que sabia inevitável, da melhor forma
que pudesse.

O coração de Antônio resistia, mas estava cansado. Mariana se lembraria para
sempre de uma de suas últimas conversas com o pai, quando ele tomou as mãos
dela nas suas e confessou: “Seu irmão está me matando”.foram palavras que ela
não compreendeu naquele momento.
As crises histéricas, a violência e a prepotência de JR seguramente deixavam
suas marcas não apenas no pai, mas em toda a família. A única a não acusar o
golpe era Lígia – afinal, o filho estava apenas cumprindo o papel para o qual ela
o preparara a vida inteira.
Quando finalmente chegou a hora da despedida para a qual Mariana tinha se
preparado sua vida inteira, percebeu que suas precárias medidas para aquele
momento não tinham servido para nada. A dor real era ainda pior do que a dor
que a mãe a fizera imaginar desde criança.
A visão do pai morto, do herói que a fazia se sentir aceita, amada e


                                                                             29
minimamente bem-vinda em sua própria casa era um impacto ainda maior do
que ele podia antecipar em seus piores pesadelos.
Desta vez não haveria Mentex, não haveria mala com vestidos rosas.
Desta vez não haveria volta.

 O maior engano de Mariana foi o de pensar que aquela seria a pior dor que ela
iria viver .
Dos três filhos que constituíram o saldo mais positivo de seu casamento com
Tiago, um deles iria cobrar o preço emocional mais alto com que ela teria que
arcar em sua vida.
Mas isso ocorreria muitos anos mais tarde e naquele momento parecia, para
Mariana, que nunca haveria nenhuma outra experiência capaz de reprisar a
sufocante e devastadora emoção daquele momento.
Antônio foi um homem admirado, mas também amado – dois adjetivos que
raramente se encontram. Seus amigos, seus funcionários, seus irmãos, seus
eleitores – foram muitos os que choraram a morte de um homem simples sem
ser simplório, determinado sem ser impiedoso, vitorioso sem ser indiferente.
A cerimônia foi coberta de pompa e de honras, como era de se esperar no
enterro de um grande homem. Mas havia uma corrente subterrânea de dor
legítima, de perda real que contagiava todos os presentes.
Mas ninguém choraria por tanto tempo quanto Mariana, que experimentava
uma solidão avassaladora ao lado da sepultura do pai. Nem mesmo a lembrança
das coisas positivas deixadas por seu pai – como o grande legado da abertura
do crédito feminino através de seu banco, um passo histórico na luta pela
emancipação feminina – servia como consolo.
Desamparada, aquela jovem formada no Sacré Coeur de Marie, educada em
francês para sempre agir com feminilidade, finesse e savoir faire, teria que
abdicar daquele padrão ultrapassado de comportamento frágil para enfrentar de
frente a truculência dos que imaginavam dominá-la, dos que pensavam que
aquele recolhimento podia ser confundido com conformismo.




                                                                          30
7

Mariana costumava pensar que nossa sensibilidade e astúcia sempre se
desenvolvem na direta proporção dos desafios que enfrentamos. Os americanos
costumam dizer “It’s always something ...” - há sempre alguma coisa, quando
não é saúde é dinheiro, quando não é dinheiro é a vida afetiva. Certamente, o
tamanho dos desafios e a qualidade das respostas que damos a eles variam
enormemente, mas o que Mariana tinha aprendido ao longo da vida é que não
há fórmula para se preservar da inventividade do destino em nos oferecer
reviravoltas.
Alguns parecem querer contornar os problemas, adiar seu enfrentamento, como
se isto os preservasse de reencontrá-los no futuro. Mariana, marcada pelo
confronto com a crueldade da mãe, não tinha tido opção senão a de encarar os
problemas e, sempre que possível, encontrar uma forma de manter o senso de
humor, sempre a melhor vingança.
Quando seu pai morreu, o relacionamento com o irmão JR já estava longe de ser
perfeito. Mariana sabia que ele tinha um gênio péssimo, uma predisposição
natural para a crueldade e para a violência, mas curiosamente nunca tinha
desconfiado de sua honestidade.
Seu narcisismo e sua relação edipiana nunca resolvida com a mãe só se
confirmaram com a mulher que ele escolheu para casar. A esposa de JR,
Rogéria, era uma mulher lindíssima, a típica esposa-troféu que um herdeiro e
empreendedor como ele deveria exibir para a sociedade. Mulher ambiciosa,
exibicionista e, como muitas na sociedade, capaz de listar todas as casas de alta-
costura de Paris e nenhum livro que tivesse lido ao longo da vida.
Havia uma humilhação sutil (e talvez involuntária) no fato de ela – mesmo
altíssima – sempre usar saltos altos que a deixavam muito maior que JR, mas
aparentemente Mariana era a única a perceber.


                                                                              31
O problema da esposa-troféu é que ela deve ser admirada - mas sempre
superficialmente. Mariana se espantava com o fato de parecer faltar nelas
justamente a substância capaz de alimentar as grandes paixões, o elemento
humano que torna um ser humano capaz de encantar em outro nível que não o
meramente físico e externo
Mariana, com o distanciamento auto-imposto das cerimônias sociais, via com
uma perspectiva privilegiada como esta falta de “alma” destas esposas-troféu
típicas cria um padrão de comportamento recorrente na sociedade: os
agrupamentos de machos-alfa com suas fêmeas ocas, núcleos extremamente
unidos e resistentes a “misturas”, quase impermeáveis, com direito assegurado
aos machos a flertes com fêmeas de padrão “inferior” – secretárias, assistentes
etc - e mesmo as ocasionais prostitutas de luxo.
Este comportamento permissivo faz deles seres doentiamente possessivos e
ciumentos com seus troféus, talvez pelo temor de que elas em algum momento
os desafiem com o mesmo tipo de atitude. A possibilidade de ser traído,
alimentada pela negligência contumaz dos deveres conjugais, domésticos só é
menos pior do que a de perder dinheiro.
É óbvio que mesmo entre estes grupinhos de machos-alfa existe uma disputa
para ver quem é o maior – e os parâmetros da disputa devem ser os mais
óbvios, superficiais e mensuráveis possíveis – Quem viaja mais, quem mora
melhor, quem tem o maior iate, quem gasta mais para adornar a esposa-troféu,
quem tem mais amantes, quem saiu com a capa da Playboy naquele mês.
Mariana observava divertida como, para alguns homens, a disputa para ver
quem tem o maior pênis nunca acaba nos vestiários do pré-primário e esta
relação doentia, ao invés de repugná-los com sua infantilidade, cria uma relação
de co-dependência que os aprisiona em um universo de artificialidade e
brinquedos caros e inúteis.
Os critérios de amizade são sempre subordinados às regras inflexíveis deste jogo
– ao contrário das amizades verdadeiras, construídas com base na solidariedade,
nos interesses comuns e nas compatibilidades, estas são embasadas
exclusivamente no “jogo”. Existe uma ânsia secreta em ver o outro cair – e
qualquer ajuda neste momento é vista como crédito extra (“além de ter o maior
jatinho, ainda dei uma grana para o fulaninho, que perdeu tudo” pode se gabar
o macho-alfa na reunião seguinte, enquanto sorri para o colunista social).

Mariana, mesmo pertencendo àquela classe social, lembrava-se dos livros de
Scott Fitzgerald nos quais tinha lido que os muito ricos são diferentes do resto.
Um antropólogo talvez se encantasse com as particularidades desta tribo. Lígia
reconhecia em Rogéria, esposa de JR, justamente o modelo de brinquedo que
ele deveria ter “comprado” para perpetuar sua prole.
Mais de uma vez, enquanto JR usava o dinheiro que tinha roubado de Mariana
para decorar seu troféu com griffes e jóias – além das plásticas e personal
trainers ocasionais que evitavam a deterioração de seu investimento – sua mãe
sugeria que Mariana a usasse como referência!!! (“Veja como a mulher do seu


                                                                             32
irmão está cada dia mais linda” era a frase-chave de sua relação com a mãe,
especialmente em momentos de maior depressão.)
Como este jogo aprisiona seus participantes, qualquer atitude – roubar, jogar,
mentir, destruir vidas – tudo é aceitável. O único demérito é perder.
O filósofo alemão Arthur Schopenhauer dizia que a compaixão era a base de
toda a moralidade. Talvez sua mãe, ao subtrair desde cedo de JR a possibilidade
do aprendizado de qualquer nível de empatia, tivesse selado para sempre o
destino de sua noção de moral.




8

Rogéria ,a cunhada de Mariana nasceu em uma família rica que perdeu tudo. O
pai, Cezar, era um jogador compulsivo e a mãe, Irene, talvez estabelecendo os
critérios que orientaram a formação de uma nova geração de autênticas
esposas-troféu, tinha abandonado o marido e as duas filhas para morar com um
médico no interior de São Paulo, Otavio
Quando Otavio decidiu se mudar para São Paulo, todos passaram a morar na
mesma casa – as duas filhas do primeiro casamento, o ex-marido, o novo marido
e Irene, dona da última casa que tinha restado como patrimônio familiar.
No jogo da alta roda, perder ou ganhar posição é comum e um fenômeno que
Mariana observou foi que, com freqüência, a perda de dinheiro torna as pessoas
ainda mais esnobes – como se elas se agarrassem, desesperadas, ao último elo
do universo que habitavam. A família pouco usual de Rogéria, esposa de JR, não
era exceção à regra.
Mesmo que aquele lar com duas figuras paternas não fosse exatamente um lar
tradicional, nem por isso eles deixavam de olhar para seus pares com uma
atitude superior, que não poupava nem mesmo Antônio, seu bilhete de primeira
classe de volta para o status econômico perdido.

Contra a vontade de seu pai, JR casou com seu troféu e Mariana foi a
encarregada de organizar a festa. O presente do lado da noiva veio em etapas:
todas as contas relativas à roupa da noiva, da mãe da noiva, da irmã mais nova,
da mãe do pai do padastro etc.
A família de Rogéria se esmerou – em um prazo recorde – em gastar o máximo
possível, quase que se vingando do período de privação que tinham
experimentado. O casamento foi a desculpa ideal para repor em seus guarda-
roupas os trabalhos dos costureiros famosos que antes pareciam tão
inacessíveis, as jóias que tinham desaparecido do cofre em tempos difíceis.


                                                                           33
Movido por seu senso de honra old fashion e não querendo ser um fator de
discórdia no início da vida de casado se seu filho, Antônio se calou e assumiu
todas as despesas dos novos agregados.
Durante os encontros familiares, era quase cômico ver como aquelas pessoas,
ainda que vestindo as roupas compradas por Antônio, se esforçavam para
disfarçar o desprezo por sua simplicidade caipira.
Já para Lígia estava tudo bem. Se o dinheiro da família tinha que ser usado para
patrocinar uma princesa para seu filho, não havia problema. JR tinha encontrado
uma mulher bonita o suficiente para seu status social – e vazia o suficiente para
não ameaçar sua posição de domínio do filho. Era o que bastava para ela.

Para Antônio, entretanto, a conta da festa seria apenas a primeira parcela da
escolha excepcionalmente cara de seu filho. JR, que com seu destempero
habitual, obrigou o pai a comprar a casa de um famoso empresário do ramo das
comunicações para substituir a já luxuosa mansão com a qual ele o tinha
presenteado.
Infelizmente, se JR não tinha herdado a simplicidade e modéstia de Antônio,
também não herdou sua habilidade para os negócios – e a maior parte dos
terrenos agregados à propriedade foram mais tarde penhorados por bancos.
Apesar de todas os indícios acumulados ao longo de sua vida, que vinham desde
antes do incêndio de sua casa de bonecas, Mariana ingenuamente não
desconfiava da honestidade de JR
Ele foi o padrinho de sua filha Cássia e mesmo depois do rompimento definitivo
entre os irmãos, esta foi uma função da qual ele nunca abdicou, exercendo-o
com surpreendentes carinho e responsabilidade.
Antônio, seu pai, enquanto vivo parecia funcionar como um freio moral para JR e
as famílias dos dois irmãos mantinham uma certa funcionabilidade, o que incluía
programas comuns, viagens em grupo, festas...

O principal ponto de discórdia era o papel de Tiago na empresa, que por sua
posição,era permanentemente confrontado por Jr e até pelo estilo de seu pai.
Tiago se via como a força capaz de renovar o estilo administrativo da empresa,
um ponto de equilíbrio entre a administração “antiga” de Antônio e a
impetuosidade suicida de JR.
Esta visão de “talento administrativo” não era compartilhada por mais ninguém
na empresa, nem dentro nem fora da família, e Tiago seguia pregando no
deserto suas idéias salvadoras. Um dos problemas com Tiago era sua
incapacidade de penetrar no código das mentiras brancas de Antônio e seus
irmãos.
Era típico, nos momentos de desânimo, Affonso aparecer na sala do irmão com
um papel na mão e anunciar vitorioso “Ô, Antônio, hoje a gente tem 2 milhão
para receber...” Tiago imediatamente entrava com o balde de água fria “É,
pessoal, mas a folha de pagamento é de 2,3 milhões...”
“Você tinha que lembrar isso” reclamava Affonso com um muxoxo. É óbvio que


                                                                             34
nenhum deles ignorava o tamanho das despesas. O que eles queriam era se
contaminar mutuamente, ainda que por um breve minuto, com o lado positivo
dos negócios – benefício que Tiago estava sempre disposto a negar, talvez em
um esforço para valorizar suas sempre ignoradas idéias para a administração.

A morte de Antônio liberou Mariana para encerrar um casamento sem amor no
qual tinha entrado principalmente para usá-lo como passaporte para a liberdade.
Mas a morte do pai também serviu para que JR pudesse liberar seu lado negro
com maior desenvoltura.
Livre da sombra do pai, JR agora podia abraçar o poder que, Lígia lhe ensinara
desde criança,que era apenas seu – não importa quem tivesse que ser
atropelado por causa disso.




9

Quando , Mariana se sentiu finalmente livre para se tornar dona de sua vida e se
separar ,não que ela quisesse buscar outra pessoa para sua vida – ela apenas
entendia que cumprira um ciclo – conseguira sair da casa dos pais, encontrar
respeito como artista plástica e tinha três filhos crescidos que amava, fruto
daquele casamento.todavia não via mais sentido em amarrar Tiago a uma
relação sem amor e decidiu aprofundar sua independência e usar o tempo livre
para trabalhar ainda mais a sua arte e para respirar.

Neste processo de solidão, Vera, uma amiga, insistiu para que Mariana
integrasse o seu grupo para sair de casa, ir a restaurantes. Sempre inimiga de
frivolidades, em um primeiro momento não estava disposta a sair de seu bunker.
Queria mais, era usar todo o tempo livre para mergulhar em si mesma, se
descobrir como pessoa – já que estava sozinha pela primeira vez e podia
desfrutar de uma embriagadora sensação de liberdade.
Neste tempo, mais do que nunca, sua grande companheira e amante foi sua
arte. Mariana costuma dizer que não vive da arte, mas para a arte. Isto é
verdadeiro em sua vida desde que começou a pintar em um pedaço de gangorra
quebrada em seu jardim.aos 7 anos de idade
Desde bem pequena, Mariana acompanhava tia Joana aos estúdios de arte, de
escultura de cerâmica e exposições. Tinha menos de 6 anos e estes já eram seus
melhores momentos de infância.

Mariana acompanhou na mais tenrra idade, com atenção de adulta, todas as
transações da doação que seu pai fez ao Museu de Arte de São Paulo (Masp) de
um quadro de Cèzanne. Ela ia e vinha com seu pai para ver o quadro, sua
chegada, sua colocação e, quando ninguém olhava, passava as mãozinhas nos


                                                                            35
seus contornos, hipnotizada por aquele universo emoldurado que a transportava
para aquele outro mundo paralelo.
Certa vez sua mãe recebeu como propaganda do perfume Fleur de Rocaille de
Marcel Rochas um cartão de papel poroso perfumado com o perfume divino e
impresso nele um quadro de Renoir com bailarinas. O cartão caiu em suas mãos
e passou a fazer parte de sua vida, o cartão se combinando com aquele perfume
delicioso e com as bailarinas de Renoir, tinha um efeito inebriante. Ele foi
colocado em seu diário – e transportado para cada uma de suas novas versões
até o perfume desaparecer e as figuras desbotarem.
Tudo que poderia afastá-la de seu caminho artístico foi severamente rejeitado:
festinhas, literatura fútil e mesmo as matinês dos sábados à tarde com as
amigas – e agora, tinha todo o tempo e liberdade do mundo para mergulhar em
telas e pincéis.
Como sua mãe sempre se colocava contra qualquer coisa que lhe desse um
mínimo de alegria na vida, também assim foi com a pintura. Achava que ela
devia se ocupar de coisas mais “sérias”, como economia, para ajudar nos
negócios de família – os mesmos negócios que anos mais tarde ela ajudaria a
colocar exclusivamente nas mãos do filho.
Mas o chamado da arte foi mais forte que as objeções da mãe e Mariana cada
vez mais se envolvia com o mundo que ela criava nas telas. Proibida pela mãe
de pintar em casa, Mariana descobriu uma professora de pintura que se
prontificou a ensiná-la aos sábados, fora de seu horário habitual.
Mariana se lembra com emoção da primeira visita a uma loja de artigos para
pintura no centro de São Paulo ;de como entrou lá sem saber muito bem o que
deveria comprar; de como as vendedoras a apoiaram, recomendando telas,
pincéis e tintas, além de sua pioneira caixa de pintura, caixa esta que ela iria
“sujar” com grande orgulho; e por fim que cada mancha de tinta seria um troféu
adicional em sua escalada de artista.
Seus primeiros trabalhos, totalmente abstratos, não demoraram a aparecer e,
mesmo com a falta de apoio da mãe, Mariana decidiu dividir com ela os
primeiros resultados de sua arte. Lígia reagiu com desdém ao trabalho da filha e
reforçou a proibição, desta vez baseada na recente morte de sua tia Joana, a
outra artista da família , fonte de inspiração para Mariana, cujo diagnóstico da
causa mortis tinha sido intoxicação por tinta.
Mariana também ficou traumatizada com o episódio até que sua professora
alemã sugeriu que ela trocasse a tinta a óleo pela aquarela. Não era bem o que
ela queria – afinal, os grandes pintores trabalhavam com óleo – mas entre a
aquarela e se afastar da arte, a primeira alternativa era a menos ruim.
Enquanto Lígia pensava que a filha seguia o caminho tradicional da juventude de
sua geração – um cinema à tarde na Rua Augusta, seguido de um hot dog e um
hot fudge nut – Mariana estava escondida com sua professora, descobrindo
cores e traços.
O dinheiro para pagar as aulas Mariana arrumava com seu pai ou com o tio
Affonso, sem precisar dar nenhuma explicação – para eles, bastava saber que


                                                                            36
Mariana estava feliz - desde que dentro dos rigorosos padrões de
comportamento de uma moça de boa família da época.
Esse era um lado do pai com o qual ela tinha de conviver – de um lado o político
liberal, o banqueiro responsável pelo pioneiro crédito para as mulheres, de outro
o pai de família arquiconservador.
Já tio Affonso era mais liberal e, portanto, confidente de Mariana, fazendo o filtro
do que deveria ou não chegar até os ouvidos do pai.
Mariana, já com treze anos, se realizava com os primeiros passos de sua arte
quando surgiu um conflito com sua professora. Ela estava trabalhando em um
quadro de orquídeas rotineiro, um exercício que nem de longe estava exigindo o
melhor dela.
A pintura ficou incompleta e, uma semana depois, quando Mariana voltou para a
aula, sua professora tinha uma surpresa: terminara o trabalho por ela.
Mariana se encheu de brios e disse para a professora que jamais se toca no
trabalho de outro artista. Isto dito, passou a mão em seu trabalho e nunca mais
voltou para as aulas.
A partir daí, surgiu a precoce autodidata, disposta a percorrer com total
liberdade os caminhos da criação e que agora, sozinha pela primeira vez em sua
vida, voltava a explorar com alegria juvenil.
Como toda artista Mariana tinha suas crises. Volta e meia se deparava com
dúvidas sobre seu trabalho. Ser artista implica em criar,pintar e criar mais e se
expressar mais ,se distanciar um pouco dos deveres maternais,além de ficar à
mercê da boa vontade dos críticos e especialistas ,além dos marchands

Consolava-a a história de Van Gogh, o atormentado artista que nunca vendeu
uma obra sequer durante a vida. Ou a reação de Picasso, quando um crítico
disse que qualquer criança poderia pintar seus quadros e ele respondeu
orgulhosamente, dizendo que tinha levado a vida inteira para aprender
justamente a pintar como uma criança.
Enfim – ser artista consiste em se blindar contra a rejeição e tolerar os eventuais
atentados à auto-estima. Mas, mesmo nos seus momentos de maior
insegurança, surgiam coincidências que a colocavam de novo na rota.
Como a vez em que um colunável, dono de uma faculdade, comparecera a uma
de suas exposições e comprado um quadro. Quando a obra foi entregue, o
grosseiro milionário disse que não tinha comprado nada e mandou devolver
,Tinha feito aquela compra fictícia apenas para registrar sua presença naquele
ambiente sofisticado.
Mariana ficou arrasada com a reação e colocou-o de volta na exposição
Pouco tempo depois, uma deliciosa visita do professor Bardi ,responsável pelo
melhor museu de arte do Brasil o MASP, se encantou com o mesmo quadro
rejeitado por aquele bossal e decidiu incorporá-lo ao acervo do museu , onde
está exposto orgulhosamente ao lado de alguns dos mestres da pintura mundial.

Outra coincidência aconteceu quando de sua primeira exposição individual nos


                                                                                37
EUA, no Museum of Art de Orlando.
Mariana estava ansiosa e intimidada pela fama de severidade dos curadores do
museu. Ao chegar,para a primeira entrevista sua amiga Sol apresentou-a à uma
moça que estava na recepção, Sol foi logo falando ela é carioca!. Tímida e
compenetrada, Mariana cumprimentou a compatriota e aguardou a chamada do
board da instituição.
Com eles, passou por um crivo meticuloso que resultou em um convite para uma
série de exposições. Aliviada e feliz com a reação dos curadores, Mariana saiu e
atendeu ao pedido da recepcionista para ver seu arquivo fotográfico de
trabalhos.
A moça passava os olhos pelos trabalhos e fazia elogios gentis, até que
paralisou-se diante de um trabalho. Com lágrimas nos olhos, a moça virou-se
para Mariana e disse: “Esta é minha mãe”.
Mariana não entendeu o que estava havendo e foi ver do que ela estava falando.
A imagem que a tinha comovido era uma colagem tipicamente carioca, pintada
em seu apartamento em frente ao Bar Garota de Ipanema, toda azulada
trazendo ao fundo o Pão de Açúcar e recortes de jornal repintados com camadas
de velaturas brancas.
Um dos recortes era da coluna do Zózimo no JB, para Mariana a essência do Rio.
Neste recorte a menina reconheceu a foto da mãe, uma das locomotivas da
sociedade carioca, morta havia dois anos.
Foi uma emoção muito forte, levar para tão longe uma lembrança daquela mãe
ausente, e uma coincidência que reforçava o poder de comoção de sua obra.
Mariana ainda em dúvida precisou usar uma lupa para ler melhor o nome
daquela bela mulher ,Maria Inês Piano como dissera Taís.
Comovida mandou fazer uma grande gravura do quadro e presenteou a nova
amiga.Isto as uniu bastante a ponto de passarem juntas as comemorações
natalinas ,Thanks Given e aniversários

Outra história envolvendo sua arte teve como palco a cidade de Paris.
Entre os árabes e seus descendentes existe uma comunhão imediata que os une
em qualquer parte do mundo. A hospitalidade dos árabes é célebre e uma
característica que passa de pai para filho há gerações.
Quando um árabe convida outro para visitá-lo em sua casa, ele logo diz AH LAU
SALA. Em uma tradução mais simples, quer dizer “bem-vindo”. Mas a frase tem
um caráter muito mais abrangente – significa que o visitante deve se sentir como
se estivesse em sua própria casa, que será recebido como se estivesse no seio
de sua própria família, com todo carinho e fartura dignos de um filho querido.
Este sentido de comunhão e aceitação foi fundamental quando os primeiros
imigrantes chegaram ao Brasil e foram acolhidos pelos pioneiros com o mesmo
AH LAU SALA que ouviam em sua terra natal.
 Na década de 1990, Mariana estava participando de uma exposição coletiva de
gravuras em Paris. Como é comum em coletivas, parte dos trabalhos não foi
vendida. Mariana pediu ao marchand que os trabalhos não vendidos não fossem


                                                                            38
encaminhados de volta para o Brasil, já que a alfândega local é extremamente
rigorosa com trabalhos de arte e os taxa severamente – o que é irônico quando
se pensa que o país assume que qualquer obra de arte realizada por um
brasileiro é patrimônio nacional.
Mariana decidiu passar no marchand para recolher ela própria suas obras e não
tinham sido vendidas. Na mesma época, na Rive Gauche, ao lado da Sorbone,
estava sendo aberto Le Musée du Monde Arabe, uma construção suntuosa que
abrigava todas as grandes contribuições dos árabes para a cultura mundial –
mapas, poemas, quadros, músicas...
Mariana passou na galeria, abraçou o marchand e colocou seus trabalhos em um
tubo de transporte. Era outono e fazia um frio violento, o céu estava cinza e as
pessoas vestidas com muito charme. Um cheirinho gostoso de pão quente a
envolveu e a levou até uma barraquinha tipicamente parisiense que vendia
sanduíches na baguete acompanhados com copos de vinho tinto.
Enquanto comia as delícias oferecidas por aquela barraca ao ar livre, um francês
começou a puxar conversa. Perguntou o que Mariana levava naquele tubo, ela
contou que era uma artista plástica brasileira de descendência árabe e
descobriu que seu interlocutor também era artista plástico e descendente de
árabes.
Entre os dois instalou-se imediatamente um clima de AH LAU SALA e ele contou
a ela que no recém inaugurado museu do mundo árabe estava se realizando
uma exposição com obras de descendentes de libaneses radicados na França
com o tema” Pela Paz.” Ele a incentivou a ir até lá mostrar as gravuras que
tinha em suas mãos e se apresentar ao curador como artista e tentar participar
da exposição.
O diretor ficou emocionado com sua adesão e como era brasileira, foi colocada
em uma categoria Hors Concours. Deu a ela o endereço de um amigo para
enquadrar as gravuras em caráter de emergência, de forma que as obras foram
incorporadas à exposição no mesmo dia.
A vernissage estava repleta de pessoas muito bem vestidas, algumas com
vestidos longos adamascados e muitas jóias.
 Foi também servido um delicioso jantar, com música ao fundo, porque onde há
uma comemoração entre árabes não faltam a música e a dança, típica que pode
ser a belly dance ou um dabque, uma popular dança folclórica em grupo sempre
puxada por um homem com um lenço branco na mão incentivando os animados
movimentos.
Voltando ao hotel, Mariana recebeu uma ligação de sua mãe. Ligia estava
cobrando a visita da filha ao novo museu sobre o qual ela tinha lido nos jornais
brasileiros. Mariana respondeu que não apenas já conhecia o museu como
quatro de suas obras já estavam exposta lá.
Mariana é uma artista que não foge ao padrão daqueles que criam arte. A
mesma sensibilidade que os atrai para a arte os faz constantemente duvidar da
qualidade de seu trabalho. Leonardo da Vinci, quase ao final da vida, costumava
dizer ”Ofendi a Deus e à humanidade porque meu trabalho não alcançou o nível


                                                                            39
de qualidade que deveria”.
No livro “Cartas a um jovem poeta” Rainer Maria Rilke, que além de filósofo foi
marchand de Rodin, em uma de suas cartas ao jovem que estava em dúvida se
deveria ser mesmo poeta ou seguir a carreira militar, dizia: “Se você sentir que
não escrever desperta em você a mesma sensação da falta de oxigênio ou de
água, se de seu coração brotar uma chama que          te impele a escrever, não
tenha dúvidas: seja um poeta, do contrário, seja um soldado”.
Mas sempre que as inseguranças a dominavam, esses reforços faziam-nas
desaparecer, quase como se a arte mandasse pequenos recados à artista. E foi
em razão do enorme apelo da arte que ela seguiu firmemente em sua decisão
de, nos meses que se seguiram ao fim de seu casamento, nunca mais colocar
ninguém em sua vida e viver exclusivamente para a pintura.
Quando finalmente decidiu “voltar ao mundo dos vivos”, foi para ajudar a amiga
Vera a conhecer, em um ambiente seguro e livre de pressões, um cobiçado
arquiteto chamado Diogo. A idéia era oferecer uma reunião para a qual o
arquiteto fosse convidado e Vera aproveitasse para tentar atraí-lo sem a pressão
de um encontro ou de um single’s bar.
Meio a contragosto, Mariana aceitou o papel de cupido que Vera tinha lhe
proposto como um primeiro passo de volta à vida social. Mas quando Mariana
conheceu Diogo, seu propósito de se tornar uma freira enclausurada sem hábito
caiu por terra.
As três pessoas envolvidas naquela armadilha perceberam a mesma coisa: Diogo
não tinha o menor interesse por Vera e havia um clima no ar entre ele e
Mariana.
Mariana viu em Diogo exatamente o que faltava em Tiago: charme, brilho
próprio, uma carreira de sucesso, o início humilde superado com talento e um
lado heróico que no, conjunto, formava um todo irresistível. Diogo tinha sua
assinatura em importantes obras na cidade de São Paulo.
Como todo grande artista de seu tempo, foi preso pela ditadura e torturado.
Recém-saída de uma relação e ainda lidando com a morte do pai, a primeira
reação de Mariana foi fugir daquilo. Por mais que tivesse amadurecido nesta sua
fase solo, ainda lhe parecia muito distante a perspectiva de embarcar em um
novo romance, por mais atraente que fosse a idéia.
Mas novos telefonemas e convites de Diogo mostraram que era inútil – para não
dizer estúpido – abrir mão das possibilidades daquele relacionamento. Mariana
procurou Vera – sua amiga originalmente interessada no arquiteto - e disse que
ele a havia convidado para jantar, mas que não iria se ela ainda estivesse
interessada nele.
Vera foi gentil, disse que havia percebido a atração entre os dois e que estava
deixando o caminho livre. Logo depois deste gesto de grandeza, Vera fez chegar
a todas as pessoas relacionadas com Mariana – incluindo sua mãe, ex-marido e
JR – a informação de que ela estava se envolvendo com um notório comunista
(mesmo que para ela isto fosse OK).
Enfim – o fato de Mariana ser mulher não a impedia de reconhecer a verdade da


                                                                            40
À Chave
À Chave
À Chave
À Chave
À Chave
À Chave
À Chave
À Chave
À Chave
À Chave
À Chave
À Chave
À Chave
À Chave
À Chave
À Chave
À Chave
À Chave
À Chave
À Chave
À Chave
À Chave
À Chave
À Chave
À Chave
À Chave
À Chave
À Chave
À Chave
À Chave
À Chave
À Chave
À Chave
À Chave
À Chave
À Chave
À Chave
À Chave
À Chave
À Chave
À Chave
À Chave
À Chave
À Chave
À Chave
À Chave
À Chave
À Chave
À Chave
À Chave
À Chave
À Chave
À Chave
À Chave
À Chave
À Chave
À Chave
À Chave
À Chave
À Chave
À Chave
À Chave
À Chave
À Chave
À Chave

More Related Content

What's hot

Encarnação
EncarnaçãoEncarnação
EncarnaçãoLRede
 
E-book de Almeida Garrett, Camões
E-book de Almeida Garrett, CamõesE-book de Almeida Garrett, Camões
E-book de Almeida Garrett, CamõesCarla Crespo
 
Palavra Perdida - Oya Baydar
Palavra Perdida - Oya BaydarPalavra Perdida - Oya Baydar
Palavra Perdida - Oya BaydarSá Editora
 
A morte e a morte de Quincas Berro Dágua
A morte e a morte de Quincas Berro DáguaA morte e a morte de Quincas Berro Dágua
A morte e a morte de Quincas Berro DáguaThiago Xavier
 
A morte e a morte de quincas berro d água
A morte e a morte de quincas berro d águaA morte e a morte de quincas berro d água
A morte e a morte de quincas berro d águaAna Paula Medeiros
 
Ameopoema outubro 2013 especial a3 pdf
Ameopoema outubro 2013 especial a3 pdfAmeopoema outubro 2013 especial a3 pdf
Ameopoema outubro 2013 especial a3 pdfCarolisb
 
Pré modernismo on line
Pré modernismo on linePré modernismo on line
Pré modernismo on lineandreguerra
 
C:\Fakepath\Romantismo – O EspaçO Urbano Na Prosa Portuguesa
C:\Fakepath\Romantismo – O EspaçO Urbano Na Prosa PortuguesaC:\Fakepath\Romantismo – O EspaçO Urbano Na Prosa Portuguesa
C:\Fakepath\Romantismo – O EspaçO Urbano Na Prosa PortuguesaEneida da Rosa
 
Suplemento Acre 1ª edição janeiro março 2012
 Suplemento Acre 1ª edição janeiro março 2012 Suplemento Acre 1ª edição janeiro março 2012
Suplemento Acre 1ª edição janeiro março 2012AMEOPOEMA Editora
 
Romantismo - panorama mundial e Brasileiro
Romantismo - panorama mundial e Brasileiro Romantismo - panorama mundial e Brasileiro
Romantismo - panorama mundial e Brasileiro Barbara Falcão
 
Antologia Poética de um Segundo de Inspiração
Antologia Poética de um Segundo de InspiraçãoAntologia Poética de um Segundo de Inspiração
Antologia Poética de um Segundo de InspiraçãoRoberto Dalmo
 
Entrevista a Luiz Rosemberg Filho
Entrevista a Luiz Rosemberg FilhoEntrevista a Luiz Rosemberg Filho
Entrevista a Luiz Rosemberg FilhoBárbara Morais
 
Artur azevedo cavação
Artur azevedo   cavaçãoArtur azevedo   cavação
Artur azevedo cavaçãoTulipa Zoá
 
PI² - Politicamente Incorreto Ao Quadrado - Numero 5
PI² - Politicamente Incorreto Ao Quadrado - Numero 5PI² - Politicamente Incorreto Ao Quadrado - Numero 5
PI² - Politicamente Incorreto Ao Quadrado - Numero 5Luiz Carlos Barata Cichetto
 

What's hot (19)

Chicos 41 - Dezembro 2014
Chicos 41 - Dezembro 2014Chicos 41 - Dezembro 2014
Chicos 41 - Dezembro 2014
 
Encarnação
EncarnaçãoEncarnação
Encarnação
 
E-book de Almeida Garrett, Camões
E-book de Almeida Garrett, CamõesE-book de Almeida Garrett, Camões
E-book de Almeida Garrett, Camões
 
Palavra Perdida - Oya Baydar
Palavra Perdida - Oya BaydarPalavra Perdida - Oya Baydar
Palavra Perdida - Oya Baydar
 
A morte e a morte de Quincas Berro Dágua
A morte e a morte de Quincas Berro DáguaA morte e a morte de Quincas Berro Dágua
A morte e a morte de Quincas Berro Dágua
 
A morte e a morte de quincas berro d água
A morte e a morte de quincas berro d águaA morte e a morte de quincas berro d água
A morte e a morte de quincas berro d água
 
A morte e a morte de quincas berro d'água (1)
A morte e a morte de quincas berro d'água (1)A morte e a morte de quincas berro d'água (1)
A morte e a morte de quincas berro d'água (1)
 
Ameopoema outubro 2013 especial a3 pdf
Ameopoema outubro 2013 especial a3 pdfAmeopoema outubro 2013 especial a3 pdf
Ameopoema outubro 2013 especial a3 pdf
 
Pré modernismo on line
Pré modernismo on linePré modernismo on line
Pré modernismo on line
 
Sobre as Asas
Sobre as AsasSobre as Asas
Sobre as Asas
 
C:\Fakepath\Romantismo – O EspaçO Urbano Na Prosa Portuguesa
C:\Fakepath\Romantismo – O EspaçO Urbano Na Prosa PortuguesaC:\Fakepath\Romantismo – O EspaçO Urbano Na Prosa Portuguesa
C:\Fakepath\Romantismo – O EspaçO Urbano Na Prosa Portuguesa
 
Suplemento Acre 1ª edição janeiro março 2012
 Suplemento Acre 1ª edição janeiro março 2012 Suplemento Acre 1ª edição janeiro março 2012
Suplemento Acre 1ª edição janeiro março 2012
 
Romantismo - panorama mundial e Brasileiro
Romantismo - panorama mundial e Brasileiro Romantismo - panorama mundial e Brasileiro
Romantismo - panorama mundial e Brasileiro
 
Antologia Poética de um Segundo de Inspiração
Antologia Poética de um Segundo de InspiraçãoAntologia Poética de um Segundo de Inspiração
Antologia Poética de um Segundo de Inspiração
 
Entrevista a Luiz Rosemberg Filho
Entrevista a Luiz Rosemberg FilhoEntrevista a Luiz Rosemberg Filho
Entrevista a Luiz Rosemberg Filho
 
Aromas
AromasAromas
Aromas
 
Artur azevedo cavação
Artur azevedo   cavaçãoArtur azevedo   cavação
Artur azevedo cavação
 
PI² - Politicamente Incorreto Ao Quadrado - Numero 5
PI² - Politicamente Incorreto Ao Quadrado - Numero 5PI² - Politicamente Incorreto Ao Quadrado - Numero 5
PI² - Politicamente Incorreto Ao Quadrado - Numero 5
 
Pcinicas
PcinicasPcinicas
Pcinicas
 

Similar to À Chave

Livros da literatura brasileira
Livros da literatura brasileiraLivros da literatura brasileira
Livros da literatura brasileiraGabriel Martins
 
Caminhos modernistas - a geração poética de 30
Caminhos modernistas - a geração poética de 30Caminhos modernistas - a geração poética de 30
Caminhos modernistas - a geração poética de 30Walace Cestari
 
Antologia poética e alguns de seus poetas
Antologia poética e alguns de seus poetas Antologia poética e alguns de seus poetas
Antologia poética e alguns de seus poetas Vinicius Soco
 
David Arrigucci Jr. - O cacto e as Ruínas
David Arrigucci Jr. - O cacto e as RuínasDavid Arrigucci Jr. - O cacto e as Ruínas
David Arrigucci Jr. - O cacto e as RuínasGiselle Campos Romero
 
2°Tarefa-Lìngua Portuguesa
2°Tarefa-Lìngua Portuguesa2°Tarefa-Lìngua Portuguesa
2°Tarefa-Lìngua PortuguesaNatalia Salgado
 
Quarto de despejo_ diário de uma favelada ( PDFDrive ).pdf
Quarto de despejo_ diário de uma favelada ( PDFDrive ).pdfQuarto de despejo_ diário de uma favelada ( PDFDrive ).pdf
Quarto de despejo_ diário de uma favelada ( PDFDrive ).pdfROSIANERODRIGUESALVE1
 
10 livros para se ler
10 livros para se ler10 livros para se ler
10 livros para se lerDavid Souza
 
Aula - A poesia brasileira de 1930 a 1945.pptx
Aula - A poesia brasileira de 1930 a 1945.pptxAula - A poesia brasileira de 1930 a 1945.pptx
Aula - A poesia brasileira de 1930 a 1945.pptxMariaGabriellaFlores
 
Carlos Drummond de Andrade
Carlos Drummond de AndradeCarlos Drummond de Andrade
Carlos Drummond de AndradeAdriana Masson
 

Similar to À Chave (20)

Modernismo
ModernismoModernismo
Modernismo
 
Modernismo
ModernismoModernismo
Modernismo
 
Livros da literatura brasileira
Livros da literatura brasileiraLivros da literatura brasileira
Livros da literatura brasileira
 
Caminhos modernistas - a geração poética de 30
Caminhos modernistas - a geração poética de 30Caminhos modernistas - a geração poética de 30
Caminhos modernistas - a geração poética de 30
 
Antologia poética e alguns de seus poetas
Antologia poética e alguns de seus poetas Antologia poética e alguns de seus poetas
Antologia poética e alguns de seus poetas
 
Modernismo 1ª fase
Modernismo 1ª faseModernismo 1ª fase
Modernismo 1ª fase
 
David Arrigucci Jr. - O cacto e as Ruínas
David Arrigucci Jr. - O cacto e as RuínasDavid Arrigucci Jr. - O cacto e as Ruínas
David Arrigucci Jr. - O cacto e as Ruínas
 
Um Dialogo com Corona
Um Dialogo com CoronaUm Dialogo com Corona
Um Dialogo com Corona
 
Modernismo
ModernismoModernismo
Modernismo
 
2°Tarefa-Lìngua Portuguesa
2°Tarefa-Lìngua Portuguesa2°Tarefa-Lìngua Portuguesa
2°Tarefa-Lìngua Portuguesa
 
Cronicas futuro
Cronicas futuroCronicas futuro
Cronicas futuro
 
Vinicius de moraes
Vinicius de moraesVinicius de moraes
Vinicius de moraes
 
Quarto de despejo_ diário de uma favelada ( PDFDrive ).pdf
Quarto de despejo_ diário de uma favelada ( PDFDrive ).pdfQuarto de despejo_ diário de uma favelada ( PDFDrive ).pdf
Quarto de despejo_ diário de uma favelada ( PDFDrive ).pdf
 
Antologia poética
Antologia poéticaAntologia poética
Antologia poética
 
10 livros para se ler
10 livros para se ler10 livros para se ler
10 livros para se ler
 
Aula - A poesia brasileira de 1930 a 1945.pptx
Aula - A poesia brasileira de 1930 a 1945.pptxAula - A poesia brasileira de 1930 a 1945.pptx
Aula - A poesia brasileira de 1930 a 1945.pptx
 
Carlos Drummond de Andrade
Carlos Drummond de AndradeCarlos Drummond de Andrade
Carlos Drummond de Andrade
 
Antologia poética
Antologia poéticaAntologia poética
Antologia poética
 
Keilla
KeillaKeilla
Keilla
 
Keilla
KeillaKeilla
Keilla
 

Recently uploaded

FASE 1 MÉTODO LUMA E PONTO. TUDO SOBRE REDAÇÃO
FASE 1 MÉTODO LUMA E PONTO. TUDO SOBRE REDAÇÃOFASE 1 MÉTODO LUMA E PONTO. TUDO SOBRE REDAÇÃO
FASE 1 MÉTODO LUMA E PONTO. TUDO SOBRE REDAÇÃOAulasgravadas3
 
PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: LEITURA DE IMAGENS, GRÁFICOS E MA...
PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: LEITURA DE IMAGENS, GRÁFICOS E MA...PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: LEITURA DE IMAGENS, GRÁFICOS E MA...
PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: LEITURA DE IMAGENS, GRÁFICOS E MA...azulassessoria9
 
2° ano_PLANO_DE_CURSO em PDF referente ao 2° ano do Ensino fundamental
2° ano_PLANO_DE_CURSO em PDF referente ao 2° ano do Ensino fundamental2° ano_PLANO_DE_CURSO em PDF referente ao 2° ano do Ensino fundamental
2° ano_PLANO_DE_CURSO em PDF referente ao 2° ano do Ensino fundamentalAntônia marta Silvestre da Silva
 
A QUATRO MÃOS - MARILDA CASTANHA . pdf
A QUATRO MÃOS  -  MARILDA CASTANHA . pdfA QUATRO MÃOS  -  MARILDA CASTANHA . pdf
A QUATRO MÃOS - MARILDA CASTANHA . pdfAna Lemos
 
Rota das Ribeiras Camp, Projeto Nós Propomos!
Rota das Ribeiras Camp, Projeto Nós Propomos!Rota das Ribeiras Camp, Projeto Nós Propomos!
Rota das Ribeiras Camp, Projeto Nós Propomos!Ilda Bicacro
 
Historia da Arte europeia e não só. .pdf
Historia da Arte europeia e não só. .pdfHistoria da Arte europeia e não só. .pdf
Historia da Arte europeia e não só. .pdfEmanuel Pio
 
Ficha de trabalho com palavras- simples e complexas.pdf
Ficha de trabalho com palavras- simples e complexas.pdfFicha de trabalho com palavras- simples e complexas.pdf
Ficha de trabalho com palavras- simples e complexas.pdfFtimaMoreira35
 
"É melhor praticar para a nota" - Como avaliar comportamentos em contextos de...
"É melhor praticar para a nota" - Como avaliar comportamentos em contextos de..."É melhor praticar para a nota" - Como avaliar comportamentos em contextos de...
"É melhor praticar para a nota" - Como avaliar comportamentos em contextos de...Rosalina Simão Nunes
 
Construção (C)erta - Nós Propomos! Sertã
Construção (C)erta - Nós Propomos! SertãConstrução (C)erta - Nós Propomos! Sertã
Construção (C)erta - Nós Propomos! SertãIlda Bicacro
 
PRÉDIOS HISTÓRICOS DE ASSARÉ Prof. Francisco Leite.pdf
PRÉDIOS HISTÓRICOS DE ASSARÉ Prof. Francisco Leite.pdfPRÉDIOS HISTÓRICOS DE ASSARÉ Prof. Francisco Leite.pdf
PRÉDIOS HISTÓRICOS DE ASSARÉ Prof. Francisco Leite.pdfprofesfrancleite
 
Dicionário de Genealogia, autor Gilber Rubim Rangel
Dicionário de Genealogia, autor Gilber Rubim RangelDicionário de Genealogia, autor Gilber Rubim Rangel
Dicionário de Genealogia, autor Gilber Rubim RangelGilber Rubim Rangel
 
Projeto de Extensão - ENGENHARIA DE SOFTWARE - BACHARELADO.pdf
Projeto de Extensão - ENGENHARIA DE SOFTWARE - BACHARELADO.pdfProjeto de Extensão - ENGENHARIA DE SOFTWARE - BACHARELADO.pdf
Projeto de Extensão - ENGENHARIA DE SOFTWARE - BACHARELADO.pdfHELENO FAVACHO
 
Slides sobre as Funções da Linguagem.pptx
Slides sobre as Funções da Linguagem.pptxSlides sobre as Funções da Linguagem.pptx
Slides sobre as Funções da Linguagem.pptxMauricioOliveira258223
 
11oC_-_Mural_de_Portugues_4m35.pptxTrabalho do Ensino Profissional turma do 1...
11oC_-_Mural_de_Portugues_4m35.pptxTrabalho do Ensino Profissional turma do 1...11oC_-_Mural_de_Portugues_4m35.pptxTrabalho do Ensino Profissional turma do 1...
11oC_-_Mural_de_Portugues_4m35.pptxTrabalho do Ensino Profissional turma do 1...licinioBorges
 
Urso Castanho, Urso Castanho, o que vês aqui?
Urso Castanho, Urso Castanho, o que vês aqui?Urso Castanho, Urso Castanho, o que vês aqui?
Urso Castanho, Urso Castanho, o que vês aqui?AnabelaGuerreiro7
 
DeClara n.º 75 Abril 2024 - O Jornal digital do Agrupamento de Escolas Clara ...
DeClara n.º 75 Abril 2024 - O Jornal digital do Agrupamento de Escolas Clara ...DeClara n.º 75 Abril 2024 - O Jornal digital do Agrupamento de Escolas Clara ...
DeClara n.º 75 Abril 2024 - O Jornal digital do Agrupamento de Escolas Clara ...IsabelPereira2010
 
5 bloco 7 ano - Ensino Relogioso- Lideres Religiosos _ Passei Direto.pdf
5 bloco 7 ano - Ensino Relogioso- Lideres Religiosos _ Passei Direto.pdf5 bloco 7 ano - Ensino Relogioso- Lideres Religiosos _ Passei Direto.pdf
5 bloco 7 ano - Ensino Relogioso- Lideres Religiosos _ Passei Direto.pdfLeloIurk1
 
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS GESTÃO DA APRENDIZAGEM
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS GESTÃO DA APRENDIZAGEMPRÁTICAS PEDAGÓGICAS GESTÃO DA APRENDIZAGEM
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS GESTÃO DA APRENDIZAGEMHELENO FAVACHO
 
Análise poema país de abril (Mauel alegre)
Análise poema país de abril (Mauel alegre)Análise poema país de abril (Mauel alegre)
Análise poema país de abril (Mauel alegre)ElliotFerreira
 

Recently uploaded (20)

FASE 1 MÉTODO LUMA E PONTO. TUDO SOBRE REDAÇÃO
FASE 1 MÉTODO LUMA E PONTO. TUDO SOBRE REDAÇÃOFASE 1 MÉTODO LUMA E PONTO. TUDO SOBRE REDAÇÃO
FASE 1 MÉTODO LUMA E PONTO. TUDO SOBRE REDAÇÃO
 
PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: LEITURA DE IMAGENS, GRÁFICOS E MA...
PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: LEITURA DE IMAGENS, GRÁFICOS E MA...PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: LEITURA DE IMAGENS, GRÁFICOS E MA...
PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: LEITURA DE IMAGENS, GRÁFICOS E MA...
 
2° ano_PLANO_DE_CURSO em PDF referente ao 2° ano do Ensino fundamental
2° ano_PLANO_DE_CURSO em PDF referente ao 2° ano do Ensino fundamental2° ano_PLANO_DE_CURSO em PDF referente ao 2° ano do Ensino fundamental
2° ano_PLANO_DE_CURSO em PDF referente ao 2° ano do Ensino fundamental
 
A QUATRO MÃOS - MARILDA CASTANHA . pdf
A QUATRO MÃOS  -  MARILDA CASTANHA . pdfA QUATRO MÃOS  -  MARILDA CASTANHA . pdf
A QUATRO MÃOS - MARILDA CASTANHA . pdf
 
Rota das Ribeiras Camp, Projeto Nós Propomos!
Rota das Ribeiras Camp, Projeto Nós Propomos!Rota das Ribeiras Camp, Projeto Nós Propomos!
Rota das Ribeiras Camp, Projeto Nós Propomos!
 
Historia da Arte europeia e não só. .pdf
Historia da Arte europeia e não só. .pdfHistoria da Arte europeia e não só. .pdf
Historia da Arte europeia e não só. .pdf
 
Ficha de trabalho com palavras- simples e complexas.pdf
Ficha de trabalho com palavras- simples e complexas.pdfFicha de trabalho com palavras- simples e complexas.pdf
Ficha de trabalho com palavras- simples e complexas.pdf
 
"É melhor praticar para a nota" - Como avaliar comportamentos em contextos de...
"É melhor praticar para a nota" - Como avaliar comportamentos em contextos de..."É melhor praticar para a nota" - Como avaliar comportamentos em contextos de...
"É melhor praticar para a nota" - Como avaliar comportamentos em contextos de...
 
Construção (C)erta - Nós Propomos! Sertã
Construção (C)erta - Nós Propomos! SertãConstrução (C)erta - Nós Propomos! Sertã
Construção (C)erta - Nós Propomos! Sertã
 
PRÉDIOS HISTÓRICOS DE ASSARÉ Prof. Francisco Leite.pdf
PRÉDIOS HISTÓRICOS DE ASSARÉ Prof. Francisco Leite.pdfPRÉDIOS HISTÓRICOS DE ASSARÉ Prof. Francisco Leite.pdf
PRÉDIOS HISTÓRICOS DE ASSARÉ Prof. Francisco Leite.pdf
 
Dicionário de Genealogia, autor Gilber Rubim Rangel
Dicionário de Genealogia, autor Gilber Rubim RangelDicionário de Genealogia, autor Gilber Rubim Rangel
Dicionário de Genealogia, autor Gilber Rubim Rangel
 
Projeto de Extensão - ENGENHARIA DE SOFTWARE - BACHARELADO.pdf
Projeto de Extensão - ENGENHARIA DE SOFTWARE - BACHARELADO.pdfProjeto de Extensão - ENGENHARIA DE SOFTWARE - BACHARELADO.pdf
Projeto de Extensão - ENGENHARIA DE SOFTWARE - BACHARELADO.pdf
 
Slides sobre as Funções da Linguagem.pptx
Slides sobre as Funções da Linguagem.pptxSlides sobre as Funções da Linguagem.pptx
Slides sobre as Funções da Linguagem.pptx
 
11oC_-_Mural_de_Portugues_4m35.pptxTrabalho do Ensino Profissional turma do 1...
11oC_-_Mural_de_Portugues_4m35.pptxTrabalho do Ensino Profissional turma do 1...11oC_-_Mural_de_Portugues_4m35.pptxTrabalho do Ensino Profissional turma do 1...
11oC_-_Mural_de_Portugues_4m35.pptxTrabalho do Ensino Profissional turma do 1...
 
Aula sobre o Imperialismo Europeu no século XIX
Aula sobre o Imperialismo Europeu no século XIXAula sobre o Imperialismo Europeu no século XIX
Aula sobre o Imperialismo Europeu no século XIX
 
Urso Castanho, Urso Castanho, o que vês aqui?
Urso Castanho, Urso Castanho, o que vês aqui?Urso Castanho, Urso Castanho, o que vês aqui?
Urso Castanho, Urso Castanho, o que vês aqui?
 
DeClara n.º 75 Abril 2024 - O Jornal digital do Agrupamento de Escolas Clara ...
DeClara n.º 75 Abril 2024 - O Jornal digital do Agrupamento de Escolas Clara ...DeClara n.º 75 Abril 2024 - O Jornal digital do Agrupamento de Escolas Clara ...
DeClara n.º 75 Abril 2024 - O Jornal digital do Agrupamento de Escolas Clara ...
 
5 bloco 7 ano - Ensino Relogioso- Lideres Religiosos _ Passei Direto.pdf
5 bloco 7 ano - Ensino Relogioso- Lideres Religiosos _ Passei Direto.pdf5 bloco 7 ano - Ensino Relogioso- Lideres Religiosos _ Passei Direto.pdf
5 bloco 7 ano - Ensino Relogioso- Lideres Religiosos _ Passei Direto.pdf
 
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS GESTÃO DA APRENDIZAGEM
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS GESTÃO DA APRENDIZAGEMPRÁTICAS PEDAGÓGICAS GESTÃO DA APRENDIZAGEM
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS GESTÃO DA APRENDIZAGEM
 
Análise poema país de abril (Mauel alegre)
Análise poema país de abril (Mauel alegre)Análise poema país de abril (Mauel alegre)
Análise poema país de abril (Mauel alegre)
 

À Chave

  • 1. 1
  • 2. Não sou eu quem descrevo. Eu sou a tela. E oculta mão colora alguém em mim. Pus a alma no nexo de perdê-la. E o meu princípio floresceu em Fim. Que importa o tédio que dentro de mim gela, E o leve Outono, e as galas, e o marfim, E a congruência da alma que se vela Com os sonhados pálios de cetim? Disperso... E a hora como um leque fecha-se... Minha alma é um arco tendo ao fundo o mar... O tédio? A mágoa? A vida? O sonho? Deixa-se E, abrindo as asas sobre Renovar, A erma sombra do vôo começado Pestaneja no campo abandonado Fernando Pessoa 2
  • 3. Prefácio – Liane Em um país embrutecido por um processo de emburrecimento que parece irreversível, talvez seja difícil notar a maior qualidade de Liane Chammas: Seu refinamento. Um refinamento sem afetação, que a fez sentir-se à vontade com artistas, políticos, intelectuais, empregadas domésticas, garçons e motoristas de táxi, sem nunca deixar de ser ela mesma. Um refinamento clássico, em nada parecido com a vulgaridade das celebridades que imploram por atenção enquanto mostram suas roupas de cama nas sempre ridículas revistas de celebridades – e que para parte da população tornou-se o paradigma de “ser chique”. Liane vem de outra estirpe. Não espere vê-la posando na banheira em artigos da “Caras”. É impossível imaginá-la dando entrevistas para colunistas eletrônicos em festinhas de sociedade. Liane está muito acima disso. Além deste refinamento, convém lembrar que Liane é uma mulher bonita, culta, bem humorada, dona de um invejável par de pernas, capaz de discutir filosofia alemã e arte renascentista, viajada, uma artista plástica que conquistou - mais do que o reconhecimento do público e o aplauso da crítica – algo mais importante e difícil: a admiração de seus pares artistas. Liane é filha de um dos maiores empresários do planeta, um homem que saiu do nada e tornou-se dono daquele que ainda hoje é o maior moinho de trigo do mundo. Já expôs sua arte personalíssima nos EUA e na Itália, está catalogada em todos os anuários importantes de pintores. A pergunta que fica é: Se Liane não precisa da atenção da mídia que é a obsessão da maior parte das pessoas com um background parecido com o dela, por que abandonar por um tempo os pincéis e se arriscar em uma nova forma de arte, escrevendo um livro? A resposta é absurdamente simples – mas mesmo assim extremamente 3
  • 4. rara: Liane escreve porque tem o que dizer. Liane viveu uma vida como poucas, conhecendo de um lado luxos inimagináveis para a maior parte das pessoas (quantas pessoas você conhece que já tiveram Louis Armstrong cantando em seu salão de festas?) e dores absurdas. No meio destes dois extremos, encontrou um caminho próprio e aprendeu lições que generosamente divide conosco em seu primeiro livro. Faça um grande favor para você mesmo: Leia suas palavras. Com certeza, poucas vezes você teve um interlocutor tão refinado. Renzo Mora 4
  • 5. Prólogo É a última vez que Mariana se hospeda no Plaza de Nova York. É março de 2005, tremendamente frio, mesmo para os padrões nova-iorquinos, e o hotel está prestes a fechar para se tornar um condomínio de luxo. Mesmo com a nostalgia de outras Novas Yorks que, de alguma forma, conheceram diferentes Marianas, ela está especialmente feliz. A cidade está recebendo pela primeira vez três gerações da família – ela própria, seus filhos, seus netos. A primeira visita de Mariana à cidade ocorrera quando ela tinha 17 anos, em sua lua-de-mel. Riu consigo mesma ao lembrar que sua impressão tinha sido a pior possível. Recém-saída de uma Miami paradisíaca, cercada pelos hotéis luxuosos da orla, vizinha ao Fountainbleu, Nova York parecia hostil, gelada, perigosa. Era uma época na qual a Times Square era dominada por traficantes, viciados, prostitutas e assaltantes. Em suas primeiras ligações para o Brasil, seu sentimento, compartilhado por amigos e familiares, era de que tinha chegado ao inferno e conhecido uma cidade para a qual nunca mais pretendia voltar. Na segunda visita, quando seus filhos já estavam na pré-adolescência, decidiu dar uma nova chance à cidade para visitar uma exposição de Picasso no MoMa. Foi então que uma nova Mariana encontrou uma nova Nova York , que a conquistou definitivamente. Havia uma vida, uma efervescência cultural na cidade que de alguma forma se escondera na primeira vez – ou talvez ela, mais madura, estivesse finalmente pronta para desvendá-la – e ficou imensamente feliz em dividir aquela experiência com os filhos, até como contraponto da felicidade plastificada da Disney, de onde tinham acabado de chegar. Desde então, Nova York entrou no seu roteiro – e em seu coração. Decidida a celebrar na plenitude a presença dos netos na cidade, Mariana usufruiu sem culpa de todas as extravagâncias: breakfasts no The Pierre’s, o melhor da gastronomia, dos museus.,dos shows dos teatros e inclusive das lojas de brinquedos. Era impossível não perceber que o entristecimento pós 11 de Setembro tinha se infiltrado no coração da cidade. Ela estava nos EUA na época do atentado e tinha assistido com admiração ao modo como a cidade respondeu ao episódio. Mas Mariana sabia por experiência própria que as grandes tragédias cobram preços altos – ela própria sobrevivera a provas extremas e conhecia bem o resultado: não se sai incólume delas. Os prédios estavam perdendo seus habitantes e se transformavam em meras vitrines das mega-corporações, nem as galerias do SoHo que, para ela 5
  • 6. como artista, eram fundamentais para a descoberta de novos artistas e tendências, não estavam conseguindo sobreviver e morriam aos poucos.Ela perguntava-se como aquela cidade que a conquistara em um processo lento não estava experimentando sua decadência final, na qual sua criatividade, seus sabores, sua inventividade não seriam substituídos por hordas de turistas incultos e executivos indiferentes. Nisto pensava Mariana quando eles se viram diante de uma manifestação imensa de pessoas André, seu filho, que morava em Orlando, perguntou ao enorme guarda com estilo de “South Dakota” o quê estava havendo e ele respondeu que era uma manifestação contra a guerra. Seu neto Totô, com apenas 5 anos de idade, mais do que depressa, sentiu-se no direito de somar sua opinião à dos manifestantes e começou a gritar “No More Bush!!”, “No More Bush!!” Surpresa com o ímpeto do neto, mas ao mesmo tempo achando graça em sua precocidade, Mariana pensou que ele tinha mesmo puxado a ela. Inconformista, sem medo de expressar sua opinião, decidido..... Na verdade ela conseguia se enxergar em pequenos detalhes de cada um dos netos, em Maria, em Totô, em Bebé – e a forma como estes traços tinham se liberado e encontrado em cada um deles caminhos próprios a enternecia. Foi neste momento que Mariana parou para pensar no caminho que a tinha levado até aquela cidade e no preço alto que pagara para manter juntos os filhos e os netos amados. Dos relacionamentos aos quais não se acomodou, evoluindo a cada romance, que viveu fugindo da mediocridade como só o fazem aqueles que têm por meta viver um grande amor. Dos conflitos dos quais não fugiu, das injustiças que enfrentou, e do maior desafio de todos, o que resgatou sua filha da escuridão, e que foi sua maior e mais desgastante batalha – porém a que mais a recompensou. E de que os momentos como aquele, nos quais se cercava das cores que enfeitavam sua vida, faziam tudo ganhar sentido. Mariana pensou que havia três pilares que sustentaram sua vida até aquele momento – a luta pela filha, a batalha contra as muitas injustiças de que tinha sido vítima ao longo da vida – e que pretendia corrigir (como dizia Kahlil Gibran, “para conhecer uma pessoa não olhe para o que ela já conquistou – mas para o que ela aspira” e se havia algo que definia Mariana era sua busca por justiça. Mariana não queria justiça. Ela PRECISAVA de justiça, não para mudar sua vida, mas para restabelecer o que acreditava ser certo) – e, last but not least (por fim, mas não por último, como ela traduzia a velha frase dos ingleses), a força redentora do bom humor, o mais poderoso bálsamo que conhecia. O filósofo Francis Bacon o definiu melhor do que ninguém quando disse que, enquanto a imaginação tinha sido dada ao homem para compensá-lo por aquilo que ele não é, o senso de humor servia para consolá-lo por aquilo que ele é. 6
  • 7. Mariana estava convencida de que, quando não era possível encontrar uma solução para um problema, no mínimo seria necessário encontrar alguma graça nele. E em meio a tudo isso, sua arte não apenas a arte que tinha feito dela uma pintora respeitada pelos críticos e premiada em exposições internacionais, mas principalmente a arte de viver ! A arte não de tirar leite das pedras, como dizia o antigo clichê, mas de encontrar luz nas trevas, esperança no desânimo, abrigo no desamparo e força na fragilidade. Picasso, um de seus pintores favoritos (e, de alguma forma, o artista cuja obra a levara de volta para aquela cidade) costumava dizer que o papel da arte era o de tirar a poeira que a rotina acumula em nossas almas. “Não é só a rotina que deixa nossa alma empoeirada” ela costuma responder silenciosamente sempre que lembrava daquela frase. “A tristeza pode até tirar um pedaço de nossa alma – e a arte é a única ginástica possível para o espírito” Enquanto se afastavam daquela manifestação que tinha inflamado seu neto, seus olhos também se perderam ao longe. E, como não fazia há muito tempo, Mariana relembrou sua história, sem se poupar nem mesmo das memórias mais difíceis, aquelas às quais era impossível retornar sem que os olhos se enchessem de lágrimas, como a de uma casa pegando fogo. 7
  • 8. 1 Mariana está com oito anos de idade e sua casa está em chamas. Dentro dela, algumas de suas melhores amigas, algumas das suas melhores lembranças. Seu irmão JR, três anos mais novo, tinha iniciado propositalmente um incêndio, com a complacência de Lígia, a mãe de ambos, e que o fazia gargalhar com o desespero da irmã. A visão do fogo que consumia a casa fez com que Mariana, pela primeira vez, rompesse a passividade habitual e partisse aos tapas para cima dele, com toda a raiva, até ser contida por Lígia,que como de hábito se colocou ao lado do filho .A casa incendiada era perfeita – bem diferente da casa onde Mariana vivia. Tinha cortinas, móveis, na cozinha um fogão rústico que enchia de calor o ambiente, uma luz suave e aconchegante - de alguma forma, era dentro dela que Mariana se refugiava do terror imposto pelo elo de perversidade formado por Lígia e seu filho predileto. Mariana tinha recebido a casa de presente de um amigo de seu pai e em toda a sua vida jamais veria outra casa de bonecas tão perfeita quanto a que se desfazia diante de seus olhos. A destruição da casa começou tão logo Lígia e JR perceberam o encantamento de Mariana por ela. O primeiro passo foi dado por Lígia, transformando a casinha em depósito de jornais velhos e esta profanação do espaço da filha foi o sinal verde para que JR exercitasse as ações iniciais da maldade psicótica que iria marcá-lo para o resto da vida, culminando com o reveillon no qual, anos mais tarde, ele apontaria um revólver para a têmpora de sua única irmã, ameaçando matá-la. Os jornais de Lígia foram lentamente tomando todo o espaço das bonecas e iniciando o processo de desintegração de seu brinquedo favorito. Mariana, para o resto da vida, ficaria intrigada com a força daquele momento – e como, mesmo durante o permanente processo de erosão de sua auto-estima desenvolvido por sua mãe e por seu irmão – e que incluiria perversidades muito maiores - aquela casa de bonecas pegando fogo permaneceria como a lembrança mais dolorida. Olhando para trás, é bem possível que Mariana projetasse naquele lar de mentira tudo o que o verdadeiro lhe negava – e que esta projeção fosse tão óbvia que tenha inspirado tanto a sua destruição gradual por sua mãe quanto o golpe final por seu irmão. 8
  • 9. O ano era 1954 e Antônio, o pai de Mariana, já era na época um dos mais importantes empresários do país, dono de um dos três maiores grupos econômicos do Brasil, além de um sem número de terras e propriedades. Três anos antes, o presidente Getúlio Vargas autorizara sua família a construir uma das maiores indústrias de alimento do mundo, coroando uma vida de trabalho pesado,que se por um lado era extremamente bem sucedida, por outro o roubava do convívio familiar e deixava sua filha mais velha à mercê da crueldade da aliança entre mãe e filho. Uma das torturas que Lígia impunha à filha era fazê-la passar fome. Na década de cinqüenta, os médicos ainda estavam engatinhando na tipificação das violências que os pais ,independentemente de classe social, praticam contra os filhos. A violência psicológica, uma das mais comuns, que inclui a segregação e a discriminação entre irmãos e os castigos excessivos, ainda era um tabu, vista como assunto privativo das famílias. Bem mais tarde, tentando compreender sua vida e seu relacionamento com a mãe, Mariana aprenderia que ela estava longe de ser a única vítima e que os abusos contra crianças eram muito mais comuns do que imaginava e incluíam variantes ainda mais cruéis, como as síndromes do bebê sacudido, a de Münchausen por procuração e mesmo a de Polle, nas quais os maus tratos físicos infligidos pelos pais - geralmente pela mãe - levam a criança a um estado permanente de prostração, risco de morte e uma maratona infindável por médicos e hospitais. Hoje é sabido que este tipo de violência é praticado com maior freqüência pelas mães contra seus filhos biológicos e que os fatores que as levam a agredir física ou psicologicamente seus filhos são a baixa auto-estima, problemas psicológicos e psiquiátricos possivelmente herdados de sua infância, desarmonia conjugal, alcoolismo e o uso de outras drogas, miséria, desemprego, frustrações de realização pessoal que são descarregadas em forma de ira e violência contra seus familiares. Mariana estudou, compreendeu, mas sabe que existe uma distância enorme entre entender e aceitar. Nestas situações de violência contra crianças, os pais, mesmo que involuntariamente, tendem a ficar ao lado das esposas e a não acreditar nas queixas dos filhos, o que abre as portas para a continuidade dos abusos. Este tipo de maus-tratos, principalmente o físico, ocorre com mais freqüência até os oito anos de idade, mas no caso de Mariana haveria um desdobramento dramático que a afetaria para o resto da vida: a diferença de tratamento entre os irmãos viciaria JR em privilégios que ele julgava naturais e forjaria uma personalidade patológica e amoral. 9
  • 10. 2 A justificativa de Lígia para deixar Mariana passando fome era acostumá-la com a pobreza. A fome provoca um sofrimento insuportável. O corpo alerta para a falta de alimento das formas mais dolorosas possíveis. O estômago se revira, acusando o vazio. A cabeça lateja e parece querer expulsar os olhos das órbitas. A tontura faz tudo girar. Surgem delírios. Foram muitas as noites em que Mariana experimentaria aquela horrível combinação de sensações, quando a mãe a mandava para cama sem jantar. Lígia dizia que aquilo era para seu bem. Estava preparando a filha para o inevitável dia em que seu pai perderia tudo e eles passariam fome de qualquer maneira. Mesmo aos oito anos, e em meio aos efeitos terríveis daquele jejum forçado, Mariana percebia que havia algo errado nesta proximidade da ruína total pois sua família era praticamente dona de cidades como Jaú, Tatuí ,Itapuí e Santo André,. No entanto este sentimento não era páreo para a autoridade absoluta e aterrorizante de sua mãe. : se ela queria que a filha aprendesse a viver sem comida, Mariana não iria contestá-la. Mesmo no recreio escolar, esta inferioridade de Mariana se manifestava. Enquanto as outras crianças recebiam lanches apetitosos e guloseimas, Mariana tinha que se conformar com lanches pobres, “naturais” como a mãe gostava de chamá-los. Quando o pai dava algum dinheiro a Mariana, ela decidia economizá-lo e repassar à mãe, em parte para se preparar para os “inevitáveis” dia de miséria futura, em parte para tentar “comprar" um mínimo de carinho e solidariedade da mãe e, principalmente, do irmão: Como ele não era submetido ao mesmo tratamento, havia uma percepção de que aquela derrocada financeira de alguma forma o preservaria. “Será que eu sou a única que vou ficar pobre na família?” Mariana costumava se perguntar nas longas noites em que a fome não a deixava dormir, enquanto buscava em vão uma posição menos dolorida para dormir. Com a sucessão de maus-tratos recebidos pela irmã, JR rapidamente entendeu 10
  • 11. que a mãe o privilegiava e tratou de levar o máximo de vantagem daquela situação. JR percebeu que a irmã era um membro de segunda classe daquela família e que a melhor forma de garantir sua condição de favorito era estimular o comportamento de Lígia em relação a Mariana. Com isso, JR foi crescendo com a noção de que qualquer solidariedade em relação à irmã seria um sinal de fraqueza e de ingratidão para com a clara preferência de sua mãe. Aquela situação absurda moldou uma miniatura de monstro ainda mais cruel que sua autora, livre de qualquer freio moral e que quase vinte anos mais tarde iria por meio de um golpe, desamparar todos os familiares. Naqueles dias, Mariana seguia fazendo um regime forçado conforme o humor da mãe e esperando dia após dia pelo momento em que seu pai adoeceria gravemente e perderia tudo. Não que perder tudo fosse mudá-lo. Mesmo que isso acontecesse, Antônio seguramente continuaria a ser um trabalhador incansável, para quem a educação precária não tinha sido obstáculo, O mesmo filho de imigrantes libaneses cujo pai um dia fora expulso de uma fazenda na qual fora mascatear e que diante desta humilhação decidiu comprar aquela mesma propriedade como resposta à esta dor imposta ao pai. Um homem simples, muito mais preocupado em ganhar dinheiro do que em usufruir dele, cuja prioridade era oferecer segurança para a família e que nunca percebeu que, pelo menos para sua filha mais velha, a grande ameaça estava do lado de dentro da casa e que tudo o que ele tinha conquistado era inútil para oferecer a ela qualquer defesa. E para Mariana, esta ruína financeira não faria tanta diferença – afinal, ela já vivia como pobre, mesmo dentro de uma das mais imponentes mansões da cidade. 11
  • 12. 3 Antônio nasceu na primeira década do século XX, o segundo dos seis filhos de Felipe, um imigrante libanês e que, aos 19 anos, se tornaria o arrimo da família com a morte de seu pai; responsável por levar adiante o pequeno armarinho que sustentava a todos. Com o apoio dos irmãos, aquele pequeno comércio, iniciado com o trabalho de mascate de ,Felipe seu pai, se transformaria em um dos maiores empreendimentos do país. Já em sua curva ascendente, Antônio encontrou Lígia, sua futura esposa e mãe de seus dois únicos filhos, uma mulher 12 anos mais jovem, mais envernizada e refinada do que ele. O namoro se transformou em casamento na década de 40 – ele aos 37 anos, ela com 25. Mariana nasceu um ano depois e JR três anos mais tarde. Quando Mariana completou quatro anos de idade, Antônio obteve do governo Vargas a autorização para seu projeto mais ambicioso: a construção de uma indústria de processamento de alimentos, o flagship das empresas da família, cujo enorme sucesso asseguraria a compra de mais fazendas, tecelagens, terras e outros negócios. Era em meio a este cenário de enorme sucesso que a filha de um dos homens mais poderosos do país ia dormir sem comer. Já adulta, ainda tentando se conciliar com sua infância, Mariana compreendeu que viveu uma situação muito semelhante à de milhões de outros brasileiros e por isso não devia se ver como uma vítima especial. Ela sabia que no preciso momento em que tentava administrar seu passado, milhares de crianças tentavam, como ela mesma, pegar no sono assombradas pela dor desesperadora que a miséria traz, Mariana entretanto não podia deixar de pensar que havia uma diferença fundamental entre o caso dela e o da maior parte destas crianças: ao lado da maior parte dessas crianças famintas havia um pai ou uma mãe na mesma situação – e cujo desespero se agravava por ver sua prole naquela situação. O grande diferencial no caso de Mariana foi ter esta fome imposta não pela 12
  • 13. situação social, mas voluntariamente pelo sadismo de uma mulher perturbada a ponto de torturar a própria filha. Mariana cedo percebeu como era falsa a noção de que crianças abusadas e submetidas a maus-tratos fosse uma exclusividade de famílias mais pobres ou desestruturadas pelo álcool ou pelas drogas. Pelo contrário – o dinheiro – com seus acobertamentos, cumplicidades compradas ou impostas, intimidações, advogados – permite o perpetuamento de alguns desses abusos , até por mais tempo do que em famílias mais simples, nas quais a observação de vizinhos e professores muitas vezes interrompe esse ciclo. Olhando para trás, Mariana não consegue lembrar se nasceu alegre ou triste. Tem a impressão de que a tristeza foi se impondo gradualmente, na medida em que enfrentava as situações que a situação familiar lhe impunha. O que ficou muito forte daquelas primeiras experiências foi uma ansiedade de separação, que tornaria qualquer despedida um episódio extremamente doloroso, por menor que fosse - ir à escola, ir à casa de amigos e dormir lá, viajar com seus tios e avós nas férias e mesmo deixar seus pais. A pior dor daquela época era sempre ver seu pai partir. Antônio era para Mariana, em seus oito anos de idade, a única referência de aceitação, de afeto, de importância. Ele ia sempre ao Rio de Janeiro, voando pela Real Aerovias Brasil – e, se por um lado, ela sabia que cada volta seria recompensada por pacotes de Mentex e malas de roupas da Casa Boneca (o que dava a desculpa ideal para que Lígia ignorasse suas necessidades de vestiário), cada embarque era acompanhado por um terror profundo – a possibilidade de um dia não haver uma volta. As roupas trazidas por seu pai faziam de Mariana uma personagem estranha – uma triste menina pobre vestida de princesa, mas que tinha dentro de si a beleza das cores que já começavam a enfeitar o seu caminho. Sua figura, sua delicadeza, bondade, somadas à posição social, sempre despertaram muita inveja entre os menos privilegiados, suas colegas e principalmente JR, que era muito feio e sem brilho. Embora nunca adotasse uma atitude soberba - pelo contrário, sua simplicidade era absoluta –mesmo assim suas colegas nunca perdiam uma oportunidade de formar grupinhos para criticá-la, principalmente quando tirava as melhores notas ou se chegasse ao Sacré Coeur num lindo carro rabo de peixe. Era o carro da família e sua dedicação fervorosa aos estudos era levada por sua curiosidade. Nada era feito para humilhar suas colegas... Um belo rabo de cavalo preso por uma fivela já era motivo para despertar a ira das colegas, assim como uma roupa bonita podia também levar JR a fazer uso de sua tesoura e picá-la toda .Embora muito se fale sobre o bullying na fase escolar, uma prática na qual valentões abusam física e psicologicamente das crianças mais fracas, poucos se dão conta de que o bullying é uma estratégia de exclusão do diferente – que tanto pode atingir o mais feio, mais pobre, o menos inteligente quanto justamente o oposto. 13
  • 14. Para o excluído, não importa se a exclusão é baseada em suas características positivas ou negativas. O resultado é o mesmo: um sentimento de rejeição, de não pertencer ao grupo, de não ser querido. A grande diferença é que o bullying praticado contra o mais bonito, o mais rico, o mais inteligente ou o mais esforçado desperta ainda menos simpatia nos educadores, mobilizando-os muito menos em sua defesa. Este tipo de bullying cria o pior tipo de vítima: aquele que não atrai simpatia, não desperta pena – e por isso mesmo é deixada muito mais isolada. Para Mariana, que já sofria a rejeição da própria mãe, o acréscimo de não ser integrada as colegas de escola resultava em uma insegurança muito forte, um sentimento de inadequação que a fazia voltar-se cada vez mais para seu mundo interior. Dentro de casa, o martírio de Mariana continuava. Antes de cada viagem de seu pai, Lígia torturava a filha com seus “péssimos pressentimentos” que antecipavam a morte de Antônio e pedia que ela falasse com o pai para evitar “aquela” viagem em especial, que com certeza seria a última. Como é claro Antônio não ia deixar de viajar por causa das advertências da filha, a culpa de vê-lo subir as escadas dos aviões era avassaladora – sentia-se como se o estivesse mandando para uma morte certa em troca de balas e vestidos. Mariana mais tarde veio a compreender que estava no centro de um processo de competição que a mãe tinha estabelecido com o pai – afinal, ela era a sofisticada, a bem educada, a mulher refinada – ele, por sua vez, era o homem pouco letrado – mesmo que tivesse uma elegância natural de fazer inveja . a qualquer aristocrata.Que mesmo não se comportando de acordo com os padrões artificiais da sociedade , era ele quem estava promovendo a ascensão da família. Ainda que os frutos futuros desta ascensão fossem compartilhados por todos, Lígia se sentia incomodada pelo fato de que sua classe e refinamento psicóticos fossem superados pelo pragmatismo rústico de seu marido, embora esta postura se traduzisse em um carisma ímpar e natural que Lígia falhava em reconhecer, dominada pelos padrões afetados de sua irmã Marisa. 14
  • 15. 4 O mundo de Marisa era cercado de reis e rainhas, presidentes, artistas de Hollywood. Não importava o fato de ela nunca ter encontrado com nenhum deles: em seu universo, construído com filmes , revistas e colunas sociais, era como se cada um fosse seu íntimo. Marisa abraçou um mundo inventado, cosmopolita, refinado - mas nunca teve iniciativa suficiente para persegui-lo em sua vida real. Ao invés disso, optou pelo caminho mais fácil: usar o casamento de Lígia, sua irmã, como trampolim para a projeção que sonhava. Marisa era a segunda de seis irmãs,mulheres ,das quais Lígia era a mais velha, seguida de Daisy, Cristina, Silvana e Leila. Dentre todas, Marisa se destacava não apenas pelos delírios megalomaníacos como também pela grande capacidade de manipulação, da qual a principal vítima foi a irmã Daisy, que até a morte de Marisa tornou-se uma espécie de escrava pessoal – e porta voz das malucas exigências de Marisa,Foi por isso impedida por Marisa de incluir quem quer que fosse em sua vida. Qualquer namorado estava “abaixo” dela, toda amiga era interesseira, todo contato era devidamente rebaixado e enxotado pela força de Marisa. Curiosamente, Daisy, que durante toda a vida de Marisa tinha sido uma mulher excepcionalmente doce com todos, com a morte de Marisa ,viria a ocupar seu lugar de megera de plantão, assumindo o pior da personalidade da irmã que a dominava. Na batalha que logo se instalou entre o lado mais simples da família de Antônio e o refinamento frívolo e afetado representado da família de Lígia, Marisa cedo se destacou como uma eminência parda no centro do conflito que dividia o casal. Para elas, não bastava que ele fosse um vencedor e acumulasse sucessos e vitórias. Tinha que se adequar ao padrão fantasioso de Marisa, corrigir seu português, buscar amizades interesseiras, freqüentadoras de frivolidades sociais, afastar-se de seus irmãos e origens - vistos como cafonas e grosseiros pelo lado de sua esposa. 15
  • 16. Nesta sede por uma legitimidade artificial, Lígia e Marisa acabaram inventando uma personagem para JR desde seus primeiros dias. Em seus planos, JR deveria ser educado para usar a fortuna acumulada por seu pai de forma a isolar seu ramo da família da simplicidade de Antônio e de seus irmãos, para valorizar toda a artificialidade e superficialidade que eles ignoravam.Seria ele “el vingador” das fracassadas. Não ocorria a elas que por trás desta aparente ingenuidade caipira de Antônio, com seu pragmatismo e objetividade, escondia-se o motor que tinha promovido seu sucesso – nem que a adesão cega a estes padrões destruiria a família e seu patrimônio. Antônio e seu irmão Affonso dividiam o mundo em duas partes: Os “amigos de nóis” e o resto. Aos amigos de nóis, tudo era permitido. Eram eles os parceiros que geravam negócios. Os amigos de nóis não precisavam ser chiques, sofisticados, educados ou intelectuais. Tinham que gostar de nóis como nós somos. Tinham que ficar ao nosso lado. Os amigos de nóis entendiam o complicado código de mentiras da família. Como estímulo, o lado paterno da família de Mariana adotava o que os americanos costumam chamar de White Lies, as mentiras inocentes que buscavam como motivar uns aos outros. Nos longos e fartos cafés da manhã que reuniam Antônio e seus irmãos, as pequenas mentiras inocentes preparavam uns aos outros para as lutas do dia.e os grandes momentos de dificuldade de qualquer espécie. “Fulana disse que você está mais magra”.que você era a mais bonita da festa... “Sicrana disse que você estava linda no Domingo”.e que seu ex namorado não tirava os olhos de você. “Beltrano disse que andam falando que você vai ser homenageado como empresário do ano”. Tenho certeza que este mês vamos faturar o dobro do mês passado...isto sem olhar a contabilidade só para alegrar o outro irmão Todos os irmãos participavam, fingiam acreditar e contavam suas próprias mentiras, já que um elogio pedia outro correspondente. Dos amigos de nóis era esperada a cumplicidade silenciosa e absoluta para cada uma destas mentiras massageadoras de ego. Os amigos de nóis eram quem compravam seus produtos e alimentavam o patrimônio que financiava a realização dos sonhos de Lígia e Marisa.Os amigos de nóis eram os que choravam com nóis nas horas díficeis e riam com nóis nas alegrias Pessoas que, como Antônio, valorizavam a amizade, a confiança, a honra, que desconfiavam da frieza bem educada e do desprezo dissimulado de gente como Marisa. Não importava a origem ou a cultura dos amigos de nóis. Um exemplo claro ocorreu quando um grupo de representantes da Arábia Saudita foi convidado para um jantar com a família, na sede das empresas que era o grande salão de festas de seu tempo até mesmo as festas oficiais. Antônio e seus irmãos logo perceberam que os enviados, embora nadando em 16
  • 17. dinheiro, não trariam nenhum negócio para eles nem para o Brasil. Quando convidados por um executivo do grupo a se unirem à mesa principal, Antônio respondeu “Fica lá com eles pela gente que nóis vai ficá aqui com o prefeito que é amigo de nóis” Foi escolhendo ao longo do caminho quem era qualificado para ser “amigo de nóis” que Antônio se tornou um vencedor. Como estas escolhas não coincidiam com as personagens que povoavam os delírios de grandeza de Marisa, ela e Lígia forjaram o vingador. E, de alguma forma, ao inventarem um papel para JR, criaram, por contraste, também um papel para Mariana. E neste processo, Mariana teve que procurar um refúgio para aportar sua sensibilidade, sua simpatia pelos valores autênticos ampliada pela rejeição do ramo sofisticado da família. O mesmo processo de criação que fez de JR o executivo implacável e mafioso fez de Mariana uma artista. Mesmo com esta aparente simplicidade, os irmãos Antônio e Affonso se vestiam muito bem – alternando seus ternos de casimira inglesa com os de tropical Antônio também apreciava as camisas de palha de seda com abotoaduras de ouro e sapatos de cromo alemão, impecavelmente engraxados. Exagerava um pouco no uso de seu lenço sempre perfumado e colocado no bolsinho superior de seus paletós, fazendo disso uma marca que o identificava de longe. Os irmãos não dispensavam ternos de linho 120 no verão, habilidosamente costurados pelos melhores alfaiates da cidade. Quando foi possível comprar o primeiro carro, optaram por um Cadillac 50 e contrataram um motorista para servir à família. Depois foram comprados carros para a família toda - e tudo o que era comprado para um, democraticamente era comprado para todos. Podia ser um conjunto de apartamentos no litoral paulista, as jóias para as esposas ou mesmo a série de mansões no bairro dos Jardins – a primeira para a mãe, depois para as irmãs e a última para o pai de Mariana, que morou em casa de aluguel até ela completar seus 15 anos Quem conhecia Antônio não o esquecia jamais. O modo simples que irritava Marisa e Lígia era inesquecível para quem cruzava seu caminho – qualquer que fosse o ambiente, impunha respeito tanto às pessoas mais simples quanto às autoridades e aos intelectuais, respeito conquistado não tanto pela capacidade de fazer fortuna, mas pela óbvia aura de sagacidade e sabedoria, que fizeram dele confidente e conselheiro de pessoas dos mais diversos estratos sociais. Muitos anos depois da morte do pai, Mariana encontrou um corretor de imóveis em um sofisticado clube de São Paulo. Quando soube quem era seu pai, contou a seguinte história: num certo domingo de verão estava de plantão para vender os apartamentos de um prédio na Avenida Rebouças. Estava desolado porque já eram sete horas (da noite? É bom esclarecer) e não havia vendido nada, quando chegaram os irmãos Antônio e Affonso,displicentemente O corretor, cansado e aborrecido, bem na hora em que ia encerrar o plantão, imaginou que além de não vender nada, ia perder tempo com um par de curiosos. 17
  • 18. Eles fizeram algumas poucas perguntas, disseram que tinham gostado da aparência e da localização do edifício e perguntaram quanto custava.cada apartamento. O corretor informou o preço. Eles perguntaram quantas unidades estavam disponíveis. O corretor disse que não havia vendido nada e que em caso de interesse eles podiam escolher qualquer umr. Os irmãos cochicharam entre eles e disseram a frase que quase infartou o corretor de imóveis: Pode passar amanhã no escritório que a gente vai ficar com o prédio inteiro. Tudo o que o corretor conseguiu dizer foi: “Sim, senhores”. Lígia não era exatamente o tipo de mãe que perderia tempo em contar histórias para qualquer criança nem mesmo para uma filha, mas Mariana encontrou em seus avós maternos - o avô George, um príncipe segundo ela, e sua avó Flor – contadores entusiasmados de histórias envolventes. De suas bocas brotavam histórias que remetiam a terras maravilhosas, que levavam Mariana para um Líbano parte real, parte recriado pela saudade; sempre usando o superlativo, diziam o Libano onde o ar estava impregnado dos mais doces perfumes, as frutas que nasciam de suas árvores transpiravam mel, as águas dos rios eram capazes de gelar uma melancia em poucos minutos, a ponto de rompê-la,uma cereja tinha o tamanho de um melão e por aí afora Mariana viajava naquelas histórias, embalada pela voz melódica de seu avô, que ainda enfeitava cada narrativa com canções típicas. Mariana teve três primos do lado materno : Paulo, filho de sua tia Cristina, Carlos e Renata, filhos de Silvana. Como havia muita diferença de idade entre Mariana e seus primos, ela os tratava como irmãozinhos menores, sempre lhes dando muito carinho, levando-os a viajar juntos nas férias, nos finais de semana e sempre lhes lascava um beijo gostoso como mais tarde faria com os próprios filhos. Renata tem todos os predicados de anjo: com o sorriso sincero e a fraternidade sempre estampados no lindo rosto, parece que nunca diz “não” e está de prontidão para responder com palavras doces a quem lhe conta um problema. É tão íntima de Mariana que elas se tratam por apelidos engraçados, Mariana chama Renata de “My Star” e Renata trata Mariana de “minha chéfala”, lembrança do tempo em que trabalharam juntas. A proximidade entre as duas é tão grande que Renata é capaz de imitar não só a voz de Mariana como também antecipar o que ela tem a dizer sobre diversos assuntos. Renata desenvolveu esta técnica a um nível tal de perfeição que consegue passar trotes nos próprios filhos de Mariana. Carlinhos, irmão de Renata, a quem Mariana também dedica muito amor, é seu cúmplice nas críticas, que não poupam ninguém e sempre são repletas de referências eruditas e bem humoradas. Quando estão filosofando, seus cônjuges precisam se afastar para não tirar a liberdade de eles voarem. Os dois primam um pouco pela distração quando estão em processo de criação. Certa vez Mariana recebeu sua conta com uma chamada de 57 minutos para um 18
  • 19. celular. Imaginando que o telefone estivesse sendo clonado, ligou para o número em busca de esclarecimentos. Atendeu uma voz de homem e Mariana lhe pediu que se identificasse. O outro ficou furioso e exigiu que ela se identificasse primeiro ,parece que os paulistas estão a tal ponto neuróticos com os golpes e assalto que têm medo até de dar seu nome ,e assim ficaram um tempo discutindo para saber quem era quem até que Mariana se adiantou e disse: “meu nome é Mariana e quero informá-lhe que já descobri que o senhor clonou meu celular e eu estou pagando altas contas telefônicas de ligações que o senhor tem feito” Do outro lado, a voz respondeu: “Oi, Mariana, sou eu, Carlinhos”. O constrangimento deu lugar às gargalhadas e a história se incorporou ao folclore que une os primos. Paulinho, seu outro primo, a quem Mariana amava muito e era por ela mimado em todos os sentidos, mesmo quando adulto e com mestrado em Boston, é uma nota triste em sua história. Paulinho era filho de sua tia Cristina, mulher de personalidade fraca e cuja vida foi sempre um mar de tristezas. Ela se casou por amor e teve este único filho. Certo dia, sem nenhum aviso, seu marido foi embora de casa enquanto ela estava num chá, sem sequer se despedir, para nunca mais voltar. Paulinho tinha 14 anos. O sofrimento de Cristina foi mortal, pois ela adorava o marido - que por sinal era querido pela família toda porque era uma excelente companhia, engraçado e bem disposto. O choque foi geral, todos compartilhavam a dor de Cristina e Paulinho, menos Marisa que sem a menor generosidade criticava a irmã por ter sido abandonada pelo marido. Paulinho cedo começou a trabalhar. Formou-se na Fundação Getúlio Vargas (FGV) e logo já se responsabilizou pela mãe, que era muito despreparada tanto para o trabalho quanto para as adversdidades da vida. O pai nunca mais voltou ou deu noticias, mas souberam que ele tinha se casado de novo e tivera outros filhos. Paulinho, que fez mestrado, era muito bonito, tinha cabelos dourados e uma simpatia imbatível. Com muito esforço e trabalho conseguiu juntar um razoável patrimônio. Aos 33 anos reencontrou o pai, que começou a extorquir seu dinheiro.a quem Carlinhos também não negou seu perdão e nem as necessidades do pai. No auge da vida e da carreira, assediado por lindas garotas, comprou uma moto. A pedido da família resolveu vendê-la e saiu para dar uma ultima volta e se despedir da moto. Foi a ultima volta de sua vida também, pois sofreu um grave acidente e morreu uma semana depois. A dor foi cruel como foi cruel a vida para Cristina. Para Mariana, foi como se um pedaço dela mesma tivesse ido embora, não havia como consolar Cristina. Todos os sobrinhos se desdobraram em lhe dar carinho, mas jamais conseguiriam apagar sua dor. Além disso, o ex-marido apareceu para pleitear sua parte na herança e até a moto em que o filho tinha morrido. Nesta hora Mariana e seu irmão JR agiram 19
  • 20. em rara consonância e mandaram a moto para o canalha. Cristina, maltratada pela vida, acabou morrendo precocemente e a família foi unânime em pensar que com a morte ela estaria num lugar lindo ao lado do filho. Ligia era profundamente má e especialista em magoar ainda mais quem já estava ferido. Cristina, sua irmã e mãe de Paulinho, sempre foi extremamente sensível. Com as dores pelas quais passou, primeiro com o abandono do marido depois com a dor incurável da perda de um filho, só lhe restava se apoiar nos braços das irmãs e sobrinhos e até mesmo em Lígia, que cobrava qualquer tipo de solidariedade com a maior crueldade possível. Tinha uma forte memória voltada para o mal e o passado na ponta da língua para jogar sobre qualquer pessoa a qualquer hora – só poupando a JR ,seu filho idolatrado Várias vezes dizia a Cristina que a havia a ajudado financeiramente, quando seu marido a abandonara. A mais cruel cobrança, no entanto, era sobre o pagamento do enterro de Paulinho, pois como ele trabalhava na firma administrada por JR, aparentemente por praxe ou direito o enterro é pago pela empresa, assim como as providencias funerárias. Pois Lígia tinha a coragem de repetir para Cristina: “Coitado do meu filho - até o enterro do seu foi ele que pagou”. Cristina era incapaz de responder qualquer coisa, pois no fundo tinha medo até de perder uma irmã malvada como esta. Mariana nunca deixou passar batido esta colocação da mãe, chegava a gritar mesmo com ela, brigar e tentar incutir um mínimo de humanidade naquela mulher. A cada vez que presenciava esta cena horrorosa, sentia além de tudo muita saudade de Paulinho e, o pior ,sua completa impotência para fazer sua mãe ter um pouco de compaixão Contudo, a vida é irônica e quando Lígia morreu – sem ter seu amado filho por perto – as despesas do funeral foram imediatamente assumidas por Luís, filho de Mariana, já que a empresa de JR estava sem caixa e o valor pago pelo neto nunca foi revelado a ninguém . 20
  • 21. 5 Com o tempo as torturas que Lígia infligia à filha se deslocaram do terreno físico para o emocional. É bastante comum que, tão logo as crianças submetidas a esse tipo de tratamentos ganhem a capacidade de denunciar os maus-tratos, ou mesmo de reagir, os abusos ganhem contornos mais sutis. Foi o que aconteceu na relação de Mariana com sua mãe. Ela já não podia fazer a filha passar fome como aos oito anos de idade, mas ainda podia fazê-la se sentir um estorvo naquela mansão, indesejada, inadequada, longe do modelo de perfeição que Lígia via no filho mais novo e que conspirava para que ele se tornasse progressivamente menos preparado para a vida, reagindo com agressividade à menor contrariedade. O consolo era recorrer às mães alternativas: o carinho das tias, principalmente das irmãs de Antônio – Leta, Joana e Dorô Tia Leta era o porto seguro, mulher solidária, bondosa e forte. Tia Dorô sempre foi vizinha de Mariana e seus quatro filhos herdaram dela a simpatia e a arte do acolhimento. O filho mais velho de Dorô, Wilson, mal podia esperar pelo final do jantar para atravessar a rua e encontrar o tio Antônio, a quem divertia com deliciosas histórias, que enfeitava a exaustão. Wilson se tornou um respeitado médico, construindo uma carreira respeitável e honrando o carinho e a amizade que Antônio lhe dedicava, um amor quase paternal e totalmente correspondido. Era como se Antônio projetasse nele o filho ideal que nunca conseguiu encontrar em JR. Por serem vizinhos muito próximos e morarem em um ambiente repleto de música, calor humano e alegria, era comum que suas portas estivessem sempre abertas para a prima. As trocas de visitas eram constantes e sempre deliciosas, especialmente aos domingos à noite, quando o marido de tia Dorô,tio Michel, preparava pessoalmente sua deliciosa receita de Kabab, que era desfrutada por todos. Ele próprio era o responsável por enrolar a carne assada no pão sírio e levar até cada membro da família, que nunca conseguia parar no primeiro, uma refeição cheia de sabor, risos, temperos e histórias e que envolvia a todos, 21
  • 22. menos Lígia, que se alheava à alegria coletiva, ensimesmada em seus pensamentos mórbidos. Joana era a mais sensível, artista. Foi através da convivência com Joana que Mariana encontrou o mais poderoso bálsamo para amainar a dor da rejeição materna: Descobriu que com lápis e papel podia desenhar mundos alternativos. Percebeu que tinha a habilidade de traçar paisagens, pessoas, animais e que aquele presente não podia ser tirado dela. Ao contrário de uma casa de bonecas, que podia ser incendiada, a arte se reforçava a cada mau-trato, a cada gesto de indiferença. Era o seu escudo, devolvendo beleza a cada agressão, respondendo com graça a cada insulto. Mas a arte, mesmo sendo um apoio poderoso, tinha um limite para proteger Mariana. Ela precisava se afastar de tudo aquilo, conquistar sua vida, materializar as esperanças e a liberdade que inventava com seus pincéis. O único caminho para uma menina recém-saída da adolescência naqueles anos conservadores era o casamento. Mariana tinha se apaixonado pela primeira vez aos doze anos de idade. Estava com Daizy em uma sorveteria e seus olhos cruzaram rapidamente com Júlio, um jovem pouco mais velho do que ela e membro de uma respeitada família da comunidade. Voltou para a casa com o coração sobressaltado – o que só piorou quando Júlio ligou para a casa dela. Morta de medo da reação do pai, pediu que ele não ligasse mais e pouco tempo depois o viu namorando uma garota mais velha. Foi assim que Mariana descobriu a reviravolta no estômago e o coração disparado que acompanham uma paixão. E foi ao não sentir nenhuma destas coisas que ela descobriu que Tiago não era a paixão de sua vida. Não que houvesse algo de errado com ele. Tiago era fino, bonito, alto, sofisticado. Mas faltava nele algo que provocasse o descompasso que Mariana tinha descoberto naquela primeira paixão de menina. Ainda assim, Tiago era um caminho para escapar da casa onde nunca tinha sido bem-vinda. E, com o sentimento de baixa estima incutido pelo tratamento da mãe, Mariana nem se sentia digna de um amor como aquele da sorveteria, como ela se lembraria daquele fugaz encontro com Júlio. O casamento de Mariana teve tudo digno de um conto de fadas – festas, recepções, lua de mel internacional... Como nem tudo é perfeito, faltou apenas o “foram felizes para sempre...” Mariana se casou aos dezessete anos, sem conhecer nada da vida, isolada do mundo tanto pela rigidez do pai quanto pelo sentimento de inadequação meticulosamente cultivado pela mãe. Nestas condições, Tiago parecia a melhor alternativa para fugir de um lar opressivo e se descobrir como indivíduo, escapando das garras de sua mãe e de seu irmão. O fato de perceber que estava “usando” Tiago como passaporte para a liberdade criou um sentimento de culpa que a transformou na mais devotada das esposas, um esforço compensatório. 22
  • 23. Tiago vinha de uma família na qual o refinamento freqüentemente se confundia com a hipocrisia. Era uma família desacostumada com demonstrações de afetividade, onde tudo era tratado em voz baixa, os problemas nunca eram abordados de frente e os conflitos, ao invés de serem resolvidos, eram abafados. O casamento, que já partiu de um sentimento morno, não iria melhorar com o tempo. A festa, entretanto, contrastando com a falta de emoção, foi excepcionalmente suntuosa; afinal, era um acontecimento o enlace dos filhos de duas das mais respeitadas famílias da comunidade, que reuniu a elite financeira e política nacional, já que o pai de Mariana estava no meio de seu mandato como deputado federal e contava com o respeito de quem exercia o poder do país. A família de Tiago representava o lado fino da comunidade, uma família com ares imperiais, para a qual a finesse morava na fronteira da frieza. A de Mariana, por sua vez, representava a força do trabalho, a força do capital. A dupla comemoração De tempos em tempos, Mariana recebia presentes muito caros de pessoas que nem ela nem a mãe conseguiam identificar. Só na festa, ao recepcionar os convidados, elas entenderam que Antônio e tio Affonso haviam “falsificado” convites para mandar para os “Amigos de nóis”, parceiros de negócios afluentes e fora do radar da lista VIP elaborada pela ala materna da família. Estes convidados, pessoas simples que tinham progredido com esforço e ao lado das quais Antônio se sentia muito mais à vontade, contribuíram muito para injetar vida na festa. Foi mais uma das muitas peças que Antônio e o irmão Affonso costumavam aprontar em absoluta cumplicidade e silêncio. Houve outros episódios, que se incorporaram ao folclore familiar. O “causo dos colchões” foi um deles. Anos atrás, quando administravam sua loja de armarinhos em uma cidade com 5000 habitantes, os irmãos receberam cerca de 200 colchões como pagamento de uma dívida. Sem ter o que fazer com este elefante branco, Antônio atravessou a rua e ofereceu os colchões para o Seu Renato, dono de uma loja concorrente. Seu Renato respondeu que vendia no máximo um ou dois colchões por ano – e que não tinha nenhum interesse em adquirir 200 unidades. Foi quando a dupla Antônio e Affonso se reuniu para arquitetar um plano de marketing. Pediram aos amigos para parar na loja do Seu Renato e perguntar se ele tinha colchões para vender. O esquema durou alguns dias ,e finalmente Antônio voltou à loja de Seu Renato para repetir a oferta. Impressionado com o súbito aumento de demanda, Seu Renato concordou em arrematar o lote. Muitos anos depois, Mariana voltaria à loja do Seu Renato,na pequena cidade já com seus filhos . Ele a reconheceu e recebeu com todo carinho, brincou com suas crianças e convidou a todos para o acompanharem até o sótão. Lá 23
  • 24. dentro,para susto de todos mostrou uns 180 colchões;era, o saldo daquela história. Mariana e seus filhos muito sem graça ,sairam segurando os risos e acabaram dando gargalhadas na praça em frente. Aquela estratégia ingênua, mas muito sagaz , bem armada pelo pai e pelo tio que jamais frequentaram uma escola de marketing. era mesmo digna de muita admiração,e a graça era a feição patética de seu Renato que já convivia com aquela montanha de colchões há mais de 30 anos. Voltando para casa, os filhos de Mariana cercaram o avô, que os presenteou com detalhes da operação “colchões” e outras divertidas histórias, que tornavam seus laços ainda mais estreitos e carinhosos. Outra história clássica dos irmãos, muito parecida com a do casamento de Mariana, foi a recepção a um grupo de empresários estrangeiros em visita às empresas do grupo. Como era hábito, encomendou-se ao buffett uma quantidade enorme de comida, um exército de garçons – quando finalmente perceberam que o grupo convidado era muito pequeno. Sem que ninguém soubesse, os irmãos decidiram que não ia faltar gente na festa: foram até à rádio local, onde tinham muitos amigos, e inventaram uma festa comemorativa para a qual toda a população estava convidada. Em pouco tempo, as imediações da indústria estavam lotadas de pessoas simples, usando as melhores roupas que tinham em seus armários. Subitamente, o problema de falta de convidados transformou-se em outro, ainda pior: como alimentar o que parecia ser metade da cidade. A solução veio mais uma vez da inventividade dos irmãos: a entrada foi servida para um grupo mais seleto, o prato principal para os convidados ao centro e as sobremesas para matar a fome dos convidados de última hora. Todos foram servidos ao mesmo tempo graças a estratégia dos garçons e maîtres e os convidados meio confusos nem ousaram imaginar o quê se passara achando isto sim que aquele jeito de servir era a mais moderna e extravagante do momento Como a festa foi muito bonita, contando com um luxuoso show de um dos mais famosos empresários da noite e a presença de uma miss em via de se tornar uma das mais importantes atrizes do país, tudo acabou virando festa e risos. – e Antônio e Affonso quietinhos num canto como dois moleques travessos fingiram não saber de nada,mas para a familia que sempre esperava qualquer coisa dos irmãos imprevisíveis reconheceram em suas expressões a peça que haviam aprontado. Felizmente, no casamento de Mariana os convidados inesperados não foram problema nenhum. Um dos irmãos de Antônio, Alfredo, afetado por problemas de alcoolismo, mas extremamente doce, saiu de manhã, já um pouco alto e eufórico com o pedido da sobrinha para ser seu padrinho de casamento,Ele era habitualmente convidado para padrinho de casamentos no interior de onde nunca saiu,seus presentes sempre foram carneiros,porcos peru bem a moda da roça. Inesperadamente voltou mais tarde trazendo um carro 0Km como presente de 24
  • 25. última hora – um Karman Ghia vermelho ano 63.o qual nem a sobrinha podia dirigir pois tinha apenas 17 anos,mas para alegria de todos o belo carro ficou ali estacionado na frente da casa alimentando o orgulho de tio Alfredo que pela primeira vez deixou de presentear alguém com os porcos e carneiros da faz fazendas Um dos aspectos mais constrangedores para Mariana – mas que infelizmente eram parte da tradição – foi a exposição dos presentes de casamento –numa ala da casa dedicada a exibir os presentes recebidos pelos noivos, incluindo muitas jóias.pratarias,objetos de arte e os Grandes presentes dos amigos de nós que sempre eram maiores no tamanho e nos valores. O constrangimento de Mariana com aquele museu dos presentes fora ultrapassado apenas por um evento anterior: a exposição do enxoval completo, incluindo a “camisola do dia”, em um chá oferecido para a fina flor das mulheres da sociedade, que se enchiam de quitutes diante do espetáculo da intimidade devassada da noiva embaraçada – calcinhas combinando com lençóis combinando com toalhas de banho combinando com fronhas, em uma sucessão infindável, em meio aos mordomos uniformizados servindo doces e bebidas quentes nas mais finas louças e pratarias.A patrocinadora deste evento foi tia Dorô que não concebia deixar por menos aquilo que a primeira sobrinha que se casava levava na sua grande bagagem de futura esposa.Tia Dorô também era muito leve e este gosto era mais criativo do que protocolar. Era difícil para Mariana imaginar, mesmo nas tribos mais primitivas, algum rito de passagem que exibisse, com toda pompa e circunstância, o traje com o qual uma de suas virgens seria iniciada, mas aparentemente, desde que a camisola fosse da grife de uma grande bordadeira, a sociedade da época considerava a exposição normal. Mariana já começava a manifestar a rebeldia que o tratamento materno alimentara e que a tornaria cada vez mais avessa às formalidades sociais convencionais; aquela exposição, devassando sua privacidade, embora habitual, já lhe provocava mais estranheza do que o orgulho comum às noivas de seu círculo social. A principal lembrança que Mariana guardaria da lua de mel foi do tempo em que ficou chorando escondida de Tiago.por ter assumido uma responsabilidade tão grande com sua tenra idade Para ele,ao contrário que vinha de uma família respeitada, mas sem a mesma condição econômica tão grande como a de Mariana, colocar seu sobrenome na filha mais velha de Antônio era um feito considerável. Com o casamento, rompeu-se a discrição imposta pelo código de sua família e vieram a visibilidade, a possibilidade de gastar seu dinheiro com aquilo que quisesse, o acesso às festas de alta sociedade – que Mariana apenas tolerava – e mesmo um cargo de destaque na empresa. 25
  • 26. Mariana começou a se acomodar com aquilo que ela imaginava seria sua vida sentimental: uma relação sem grandes arrebatamentos afetivos ou sexuais, sem grandes emoções, estável e vagamente chata. Vieram os três filhos – Cássia, Luís e André – que deram a Mariana todas as razões para achar que seu casamento tinha valido a pena. Paralelamente, sua carreira como artista plástica começava a decolar. A arte de Mariana nunca teve um propósito claramente comercial, era, antes e acima de tudo, um meio de expressão de suas convicções e estética Foi neste processo que seus trabalhos foram descobertos meio que acidentalmente . Ela estava decorando sua casa com um grupo de arquitetos do Rio de Janeiro. Um deles viu, vários quadros encostados na parede acanhadamente e logo quis saber de quem era a autoria daquelas obras .Mariana assumiu a maternidade dos quadros. Rapidamente este grupo, com grande visibilidade e trânsito no meio cultural do Rio, provocou sua primeira exposição individual de destaque. No dia da abertura da exposição, Mariana tentava chegar ao espaço da vernissage e intuiu que seria um fracasso: a rua em Ipanema onde ficava a galeria estava intransitável e ela imaginou que ninguém enfrentaria aquele trânsito para ver os quadros de uma artista desconhecida. Quando finalmente entrou na galeria, assustou-se ao perceber que o trânsito tinha sido provocado por ela mesma: eram as pessoas interessadas em seu trabalho que estavam congestionando a rua que dava acesso à galeria. O trabalho de relações públicas, desenvolvido por seus descobridores, resultara em uma nota dos mais influentes colunistas sociais da cidade, bem como uma boa acolhida dos críticos de arte, provocando assim um enorme interesse por sua obra ; conseqüência ; uma galeria lotada.pela charmosa sociedade carioca. Antônio, na época já doente e impossibilitado de ir ao Rio para a vernissage, atuou nos bastidores e, sem que ela soubesse, estimulou alguns dos amigos de nóis a comprar seus trabalhos, dando um impulso comercial importante para sua carreira. Neste processo, por meio de sua arte – e não das realizações de sua família – Mariana começou a se tornar mais conhecida na mídia. Tiago percebeu, mesmo com a projeção que o casamento lhe proporcionara, que ainda havia novas esferas sociais a serem conquistadas e as pinturas de sua esposa eram uma nova carta de trânsito. De repente, Mariana e Tiago foram convidados para festas, recepções, cruzavam com figuras do meio artístico, rostos que até então só tinham visto em colunas sociais. Era um mundo do qual Mariana podia ter desfrutado desde sempre, mas pelo qual nunca tinha se interessado, e que agora corria atrás dela em função da visibilidade de sua arte, cobrando sua presença. Seu deslumbramento com aquilo era nenhum – estava feliz com o reconhecimento de seu trabalho, mas nunca tinha perdido a perspectiva do fato de que ela permanecia sua mais rigorosa crítica – e a opinião positiva dos outros era, no limite, um reforço agradável. 26
  • 27. Esta situação a expôs não apenas como artista, mas também como mulher. Finalmente madura - afetiva, sexual e artisticamente - Mariana mais do que nunca começava a atrair outras pessoas. Uma dessas pessoas foi um jornalista contatado para dar em São Paulo o mesmo impulso que os jornais cariocas tinham dado a sua carreira no Rio. Este jornalista, bastante influente, começou a assediá-la mais agressivamente. Não que ele fosse especialmente atraente, principalmente comparado à beleza clássica de um homem como Tiago. Mas, como alguns homens que sabem não serem especialmente bonitos, ele tinha desenvolvido um charme excepcional, uma capacidade de dizer exatamente o que uma mulher quer ouvir, de elogiar exatamente o que uma mulher quer ver valorizado. Enfim – um profissional da sedução, cuja prova mais evidente era a beleza excepcional de sua esposa. O cerco a Mariana começou de forma sutil: alguns elogios, um abraço um pouco mais apertado do que o normal, gestos que ficavam em uma zona nebulosa entre a corte e a gentileza. Progressivamente a sutileza foi deixada de lado e as intenções do jornalista começaram a se tornar mais óbvias. Gracejos sussurrados no ouvido. Uma mão boba em um jantar com a presença dos cônjuges de ambos. Telefonemas no meio da tarde. A reação inicial de Mariana foi de medo: tão logo o jornalista se mostrou mais agressivo, ela imediatamente dividiu com Tiago o que estava acontecendo.Afinal Tiago foi praticamente seu primeiro namorado e ela não tinha a menor experiência em se desvencilhar deste tipo de situação Foi quando Mariana percebeu o poder que a maternidade tem de dessexualizar uma mulher. Tiago desdenhou daquele flerte, interpretando-o como parte do jogo de cena social – aos seus olhos, era como se fosse impossível alguém se interessar por uma dona de casa como a mulher dele. Em outras palavras, ele já tinha perdido a capacidade de ver nela um ser sexuado, atraente – Mariana, embora no auge de seu poder de atração, era para ele apenas a mãe de seus três filhos e ele não estava disposto a abrir mão da presença nas festinhas da sociedade em função deste assédio que ela vinha sofrendo, nem sequer abdicar da companhia do jornalista que, afinal, era a principal fonte de convites para estas festas. Subitamente, a culpa que a amarrava ao casamento começou a se desintegrar e se transformar em indignação. Todo o empenho que ela tinha colocado para se tornar a esposa perfeita tinha de alguma forma conspirado para criar um cenário nelson-rodrigueano, aquele no qual parece uma tara desejar sexualmente a mãe dos próprios filhos. Mariana resistiu ao assédio insistente do jornalista – e de outros que vieram no caminho. Mas entendeu que seu casamento tinha morrido. 27
  • 28. 6 Mesmo reconhecendo as limitações afetivas dos laços que a ligavam a Tiago, Mariana sabia que o casamento era um abrigo seguro para o jogo insano que sua mãe e seu irmão continuavam mantendo. O fato de Tiago ter sido escolhido para um alto cargo executivo na empresa familiar realimentava sua proximidade com a banda doentia da família. A precariedade da saúde de Antônio, sempre uma carta certa para abalar Mariana – e que Lígia tinha aprendido a colocar na mesa desde cedo - continuava a ser usada como um elemento opressor. Todos sabiam que Antônio era cardiopata e diabético – e aquilo, nas palavras de Lígia, eram razões para que ele trabalhasse menos – não para se preservar, mas para minar sua escalada. E Mariana era chantageada para levar até ele estes apelos de redução do ritmo de trabalho – arcando ainda com o ônus de não ser ouvida e, ao fracassar, ser cúmplice no programa de suicídio que ele, na visão de Lígia, estava envolvido. Quando solteira, Mariana chegava a passar horas ao seu lado, observando sua respiração ritmada, desesperada com a perspectiva de que a qualquer momento ela poderia testemunhar seu último suspiro. Antônio era levado aos mais diferentes médicos que se contradiziam entre si impondo sofridas restrições que comprometiam sua alegria de viver. Pão, sal, doces, frutas. Tudo o que era prazeroso ,era cortado da vida dele. Com o endosso dos médicos, Lígia se fortalecia como dona da situação e transformava sua casa em um campo de concentração. Mariana, sem voz ativa, agia às escondidas, contrabandeando alimentos gostosos para o pai, contando suas mentirinhas, lendo o jornal e cercando-o de atenção e carinho toda vez que a mãe saía de casa.Tio Affonso também era diabético;,tudo que o pai e o tio gostavam Mariana lhes oferecia,era cética sobre as opiniões médicas assim como desacreditava em Lígia e JR e suas boas intenções.Ela sempre soube que seus mimos ao pai e tio queridos eram dados com tanto amor que não interfeririam na glicose de ambos.Ela acreditava que era o amor que curava . Antônio, fragilizado pela doença, ficava à mercê da tirania da esposa e da 28
  • 29. crueldade do filho, que não o poupavam e criavam tratamentos inúteis e sofridos para “o seu bem”, relembrando Mariana das noites em que passava fome, também para “o seu bem”. Um dos pequenos consolos de Mariana ao ver o pai naquele estado era saber que ela podia, de vez em quando, levar escondido um bom arroz doce, seu doce predileto, sabendo que não era esse pequeno prazer que ia piorar seu estado. Com a pressão psicológica de Lígia, Mariana passou seus 32 primeiros anos de vida esperando pela morte de Antônio e tendo que enfrentar a possibilidade da perda brutal de seu único norte. Os efeitos da atitude repressora de Lígia sobre a filha eram tão fortes que Mariana não se lembra de ter gargalhado até a idade de 30 anos. Conversando com um divertido grupo de amigos cariocas, ela se surpreendeu gargalhando gostosamente para então se dar conta de que até então suas manifestações de alegria eram os sorrisos contidos e envergonhados típicos de uma mulher reprimida.Aquela noite quente no Rio foi mais um marco inesquecível em sua vida Às vezes, durante os últimos anos de vida de Antônio, Mariana se surpreendia pedindo a Deus que acabasse logo com aquela angústia – e que já que era inevitável que ela tivesse que encarar o enorme vazio deixado pela falta de seu pai, que fosse logo, que esperar pelo pior era sofrer em câmera lenta e que seria melhor mergulhar logo no abismo, poupando seu pai querido de tanto sofrimento. A morte, que Lígia sadicamente gostava de antecipar para Mariana, acabou acontecendo em 1978, quando Antônio tinha 70 anos. Mariana dependia profundamente do amor de Antônio para ancorar um mínimo de auto-estima. Era o amor dele que fazia com que ela encontrasse algum valor na sua vida, o contraponto para a rejeição de Lígia. Por isso, Mariana tentava se preparar para o momento da despedida, que sabia inevitável, da melhor forma que pudesse. O coração de Antônio resistia, mas estava cansado. Mariana se lembraria para sempre de uma de suas últimas conversas com o pai, quando ele tomou as mãos dela nas suas e confessou: “Seu irmão está me matando”.foram palavras que ela não compreendeu naquele momento. As crises histéricas, a violência e a prepotência de JR seguramente deixavam suas marcas não apenas no pai, mas em toda a família. A única a não acusar o golpe era Lígia – afinal, o filho estava apenas cumprindo o papel para o qual ela o preparara a vida inteira. Quando finalmente chegou a hora da despedida para a qual Mariana tinha se preparado sua vida inteira, percebeu que suas precárias medidas para aquele momento não tinham servido para nada. A dor real era ainda pior do que a dor que a mãe a fizera imaginar desde criança. A visão do pai morto, do herói que a fazia se sentir aceita, amada e 29
  • 30. minimamente bem-vinda em sua própria casa era um impacto ainda maior do que ele podia antecipar em seus piores pesadelos. Desta vez não haveria Mentex, não haveria mala com vestidos rosas. Desta vez não haveria volta. O maior engano de Mariana foi o de pensar que aquela seria a pior dor que ela iria viver . Dos três filhos que constituíram o saldo mais positivo de seu casamento com Tiago, um deles iria cobrar o preço emocional mais alto com que ela teria que arcar em sua vida. Mas isso ocorreria muitos anos mais tarde e naquele momento parecia, para Mariana, que nunca haveria nenhuma outra experiência capaz de reprisar a sufocante e devastadora emoção daquele momento. Antônio foi um homem admirado, mas também amado – dois adjetivos que raramente se encontram. Seus amigos, seus funcionários, seus irmãos, seus eleitores – foram muitos os que choraram a morte de um homem simples sem ser simplório, determinado sem ser impiedoso, vitorioso sem ser indiferente. A cerimônia foi coberta de pompa e de honras, como era de se esperar no enterro de um grande homem. Mas havia uma corrente subterrânea de dor legítima, de perda real que contagiava todos os presentes. Mas ninguém choraria por tanto tempo quanto Mariana, que experimentava uma solidão avassaladora ao lado da sepultura do pai. Nem mesmo a lembrança das coisas positivas deixadas por seu pai – como o grande legado da abertura do crédito feminino através de seu banco, um passo histórico na luta pela emancipação feminina – servia como consolo. Desamparada, aquela jovem formada no Sacré Coeur de Marie, educada em francês para sempre agir com feminilidade, finesse e savoir faire, teria que abdicar daquele padrão ultrapassado de comportamento frágil para enfrentar de frente a truculência dos que imaginavam dominá-la, dos que pensavam que aquele recolhimento podia ser confundido com conformismo. 30
  • 31. 7 Mariana costumava pensar que nossa sensibilidade e astúcia sempre se desenvolvem na direta proporção dos desafios que enfrentamos. Os americanos costumam dizer “It’s always something ...” - há sempre alguma coisa, quando não é saúde é dinheiro, quando não é dinheiro é a vida afetiva. Certamente, o tamanho dos desafios e a qualidade das respostas que damos a eles variam enormemente, mas o que Mariana tinha aprendido ao longo da vida é que não há fórmula para se preservar da inventividade do destino em nos oferecer reviravoltas. Alguns parecem querer contornar os problemas, adiar seu enfrentamento, como se isto os preservasse de reencontrá-los no futuro. Mariana, marcada pelo confronto com a crueldade da mãe, não tinha tido opção senão a de encarar os problemas e, sempre que possível, encontrar uma forma de manter o senso de humor, sempre a melhor vingança. Quando seu pai morreu, o relacionamento com o irmão JR já estava longe de ser perfeito. Mariana sabia que ele tinha um gênio péssimo, uma predisposição natural para a crueldade e para a violência, mas curiosamente nunca tinha desconfiado de sua honestidade. Seu narcisismo e sua relação edipiana nunca resolvida com a mãe só se confirmaram com a mulher que ele escolheu para casar. A esposa de JR, Rogéria, era uma mulher lindíssima, a típica esposa-troféu que um herdeiro e empreendedor como ele deveria exibir para a sociedade. Mulher ambiciosa, exibicionista e, como muitas na sociedade, capaz de listar todas as casas de alta- costura de Paris e nenhum livro que tivesse lido ao longo da vida. Havia uma humilhação sutil (e talvez involuntária) no fato de ela – mesmo altíssima – sempre usar saltos altos que a deixavam muito maior que JR, mas aparentemente Mariana era a única a perceber. 31
  • 32. O problema da esposa-troféu é que ela deve ser admirada - mas sempre superficialmente. Mariana se espantava com o fato de parecer faltar nelas justamente a substância capaz de alimentar as grandes paixões, o elemento humano que torna um ser humano capaz de encantar em outro nível que não o meramente físico e externo Mariana, com o distanciamento auto-imposto das cerimônias sociais, via com uma perspectiva privilegiada como esta falta de “alma” destas esposas-troféu típicas cria um padrão de comportamento recorrente na sociedade: os agrupamentos de machos-alfa com suas fêmeas ocas, núcleos extremamente unidos e resistentes a “misturas”, quase impermeáveis, com direito assegurado aos machos a flertes com fêmeas de padrão “inferior” – secretárias, assistentes etc - e mesmo as ocasionais prostitutas de luxo. Este comportamento permissivo faz deles seres doentiamente possessivos e ciumentos com seus troféus, talvez pelo temor de que elas em algum momento os desafiem com o mesmo tipo de atitude. A possibilidade de ser traído, alimentada pela negligência contumaz dos deveres conjugais, domésticos só é menos pior do que a de perder dinheiro. É óbvio que mesmo entre estes grupinhos de machos-alfa existe uma disputa para ver quem é o maior – e os parâmetros da disputa devem ser os mais óbvios, superficiais e mensuráveis possíveis – Quem viaja mais, quem mora melhor, quem tem o maior iate, quem gasta mais para adornar a esposa-troféu, quem tem mais amantes, quem saiu com a capa da Playboy naquele mês. Mariana observava divertida como, para alguns homens, a disputa para ver quem tem o maior pênis nunca acaba nos vestiários do pré-primário e esta relação doentia, ao invés de repugná-los com sua infantilidade, cria uma relação de co-dependência que os aprisiona em um universo de artificialidade e brinquedos caros e inúteis. Os critérios de amizade são sempre subordinados às regras inflexíveis deste jogo – ao contrário das amizades verdadeiras, construídas com base na solidariedade, nos interesses comuns e nas compatibilidades, estas são embasadas exclusivamente no “jogo”. Existe uma ânsia secreta em ver o outro cair – e qualquer ajuda neste momento é vista como crédito extra (“além de ter o maior jatinho, ainda dei uma grana para o fulaninho, que perdeu tudo” pode se gabar o macho-alfa na reunião seguinte, enquanto sorri para o colunista social). Mariana, mesmo pertencendo àquela classe social, lembrava-se dos livros de Scott Fitzgerald nos quais tinha lido que os muito ricos são diferentes do resto. Um antropólogo talvez se encantasse com as particularidades desta tribo. Lígia reconhecia em Rogéria, esposa de JR, justamente o modelo de brinquedo que ele deveria ter “comprado” para perpetuar sua prole. Mais de uma vez, enquanto JR usava o dinheiro que tinha roubado de Mariana para decorar seu troféu com griffes e jóias – além das plásticas e personal trainers ocasionais que evitavam a deterioração de seu investimento – sua mãe sugeria que Mariana a usasse como referência!!! (“Veja como a mulher do seu 32
  • 33. irmão está cada dia mais linda” era a frase-chave de sua relação com a mãe, especialmente em momentos de maior depressão.) Como este jogo aprisiona seus participantes, qualquer atitude – roubar, jogar, mentir, destruir vidas – tudo é aceitável. O único demérito é perder. O filósofo alemão Arthur Schopenhauer dizia que a compaixão era a base de toda a moralidade. Talvez sua mãe, ao subtrair desde cedo de JR a possibilidade do aprendizado de qualquer nível de empatia, tivesse selado para sempre o destino de sua noção de moral. 8 Rogéria ,a cunhada de Mariana nasceu em uma família rica que perdeu tudo. O pai, Cezar, era um jogador compulsivo e a mãe, Irene, talvez estabelecendo os critérios que orientaram a formação de uma nova geração de autênticas esposas-troféu, tinha abandonado o marido e as duas filhas para morar com um médico no interior de São Paulo, Otavio Quando Otavio decidiu se mudar para São Paulo, todos passaram a morar na mesma casa – as duas filhas do primeiro casamento, o ex-marido, o novo marido e Irene, dona da última casa que tinha restado como patrimônio familiar. No jogo da alta roda, perder ou ganhar posição é comum e um fenômeno que Mariana observou foi que, com freqüência, a perda de dinheiro torna as pessoas ainda mais esnobes – como se elas se agarrassem, desesperadas, ao último elo do universo que habitavam. A família pouco usual de Rogéria, esposa de JR, não era exceção à regra. Mesmo que aquele lar com duas figuras paternas não fosse exatamente um lar tradicional, nem por isso eles deixavam de olhar para seus pares com uma atitude superior, que não poupava nem mesmo Antônio, seu bilhete de primeira classe de volta para o status econômico perdido. Contra a vontade de seu pai, JR casou com seu troféu e Mariana foi a encarregada de organizar a festa. O presente do lado da noiva veio em etapas: todas as contas relativas à roupa da noiva, da mãe da noiva, da irmã mais nova, da mãe do pai do padastro etc. A família de Rogéria se esmerou – em um prazo recorde – em gastar o máximo possível, quase que se vingando do período de privação que tinham experimentado. O casamento foi a desculpa ideal para repor em seus guarda- roupas os trabalhos dos costureiros famosos que antes pareciam tão inacessíveis, as jóias que tinham desaparecido do cofre em tempos difíceis. 33
  • 34. Movido por seu senso de honra old fashion e não querendo ser um fator de discórdia no início da vida de casado se seu filho, Antônio se calou e assumiu todas as despesas dos novos agregados. Durante os encontros familiares, era quase cômico ver como aquelas pessoas, ainda que vestindo as roupas compradas por Antônio, se esforçavam para disfarçar o desprezo por sua simplicidade caipira. Já para Lígia estava tudo bem. Se o dinheiro da família tinha que ser usado para patrocinar uma princesa para seu filho, não havia problema. JR tinha encontrado uma mulher bonita o suficiente para seu status social – e vazia o suficiente para não ameaçar sua posição de domínio do filho. Era o que bastava para ela. Para Antônio, entretanto, a conta da festa seria apenas a primeira parcela da escolha excepcionalmente cara de seu filho. JR, que com seu destempero habitual, obrigou o pai a comprar a casa de um famoso empresário do ramo das comunicações para substituir a já luxuosa mansão com a qual ele o tinha presenteado. Infelizmente, se JR não tinha herdado a simplicidade e modéstia de Antônio, também não herdou sua habilidade para os negócios – e a maior parte dos terrenos agregados à propriedade foram mais tarde penhorados por bancos. Apesar de todas os indícios acumulados ao longo de sua vida, que vinham desde antes do incêndio de sua casa de bonecas, Mariana ingenuamente não desconfiava da honestidade de JR Ele foi o padrinho de sua filha Cássia e mesmo depois do rompimento definitivo entre os irmãos, esta foi uma função da qual ele nunca abdicou, exercendo-o com surpreendentes carinho e responsabilidade. Antônio, seu pai, enquanto vivo parecia funcionar como um freio moral para JR e as famílias dos dois irmãos mantinham uma certa funcionabilidade, o que incluía programas comuns, viagens em grupo, festas... O principal ponto de discórdia era o papel de Tiago na empresa, que por sua posição,era permanentemente confrontado por Jr e até pelo estilo de seu pai. Tiago se via como a força capaz de renovar o estilo administrativo da empresa, um ponto de equilíbrio entre a administração “antiga” de Antônio e a impetuosidade suicida de JR. Esta visão de “talento administrativo” não era compartilhada por mais ninguém na empresa, nem dentro nem fora da família, e Tiago seguia pregando no deserto suas idéias salvadoras. Um dos problemas com Tiago era sua incapacidade de penetrar no código das mentiras brancas de Antônio e seus irmãos. Era típico, nos momentos de desânimo, Affonso aparecer na sala do irmão com um papel na mão e anunciar vitorioso “Ô, Antônio, hoje a gente tem 2 milhão para receber...” Tiago imediatamente entrava com o balde de água fria “É, pessoal, mas a folha de pagamento é de 2,3 milhões...” “Você tinha que lembrar isso” reclamava Affonso com um muxoxo. É óbvio que 34
  • 35. nenhum deles ignorava o tamanho das despesas. O que eles queriam era se contaminar mutuamente, ainda que por um breve minuto, com o lado positivo dos negócios – benefício que Tiago estava sempre disposto a negar, talvez em um esforço para valorizar suas sempre ignoradas idéias para a administração. A morte de Antônio liberou Mariana para encerrar um casamento sem amor no qual tinha entrado principalmente para usá-lo como passaporte para a liberdade. Mas a morte do pai também serviu para que JR pudesse liberar seu lado negro com maior desenvoltura. Livre da sombra do pai, JR agora podia abraçar o poder que, Lígia lhe ensinara desde criança,que era apenas seu – não importa quem tivesse que ser atropelado por causa disso. 9 Quando , Mariana se sentiu finalmente livre para se tornar dona de sua vida e se separar ,não que ela quisesse buscar outra pessoa para sua vida – ela apenas entendia que cumprira um ciclo – conseguira sair da casa dos pais, encontrar respeito como artista plástica e tinha três filhos crescidos que amava, fruto daquele casamento.todavia não via mais sentido em amarrar Tiago a uma relação sem amor e decidiu aprofundar sua independência e usar o tempo livre para trabalhar ainda mais a sua arte e para respirar. Neste processo de solidão, Vera, uma amiga, insistiu para que Mariana integrasse o seu grupo para sair de casa, ir a restaurantes. Sempre inimiga de frivolidades, em um primeiro momento não estava disposta a sair de seu bunker. Queria mais, era usar todo o tempo livre para mergulhar em si mesma, se descobrir como pessoa – já que estava sozinha pela primeira vez e podia desfrutar de uma embriagadora sensação de liberdade. Neste tempo, mais do que nunca, sua grande companheira e amante foi sua arte. Mariana costuma dizer que não vive da arte, mas para a arte. Isto é verdadeiro em sua vida desde que começou a pintar em um pedaço de gangorra quebrada em seu jardim.aos 7 anos de idade Desde bem pequena, Mariana acompanhava tia Joana aos estúdios de arte, de escultura de cerâmica e exposições. Tinha menos de 6 anos e estes já eram seus melhores momentos de infância. Mariana acompanhou na mais tenrra idade, com atenção de adulta, todas as transações da doação que seu pai fez ao Museu de Arte de São Paulo (Masp) de um quadro de Cèzanne. Ela ia e vinha com seu pai para ver o quadro, sua chegada, sua colocação e, quando ninguém olhava, passava as mãozinhas nos 35
  • 36. seus contornos, hipnotizada por aquele universo emoldurado que a transportava para aquele outro mundo paralelo. Certa vez sua mãe recebeu como propaganda do perfume Fleur de Rocaille de Marcel Rochas um cartão de papel poroso perfumado com o perfume divino e impresso nele um quadro de Renoir com bailarinas. O cartão caiu em suas mãos e passou a fazer parte de sua vida, o cartão se combinando com aquele perfume delicioso e com as bailarinas de Renoir, tinha um efeito inebriante. Ele foi colocado em seu diário – e transportado para cada uma de suas novas versões até o perfume desaparecer e as figuras desbotarem. Tudo que poderia afastá-la de seu caminho artístico foi severamente rejeitado: festinhas, literatura fútil e mesmo as matinês dos sábados à tarde com as amigas – e agora, tinha todo o tempo e liberdade do mundo para mergulhar em telas e pincéis. Como sua mãe sempre se colocava contra qualquer coisa que lhe desse um mínimo de alegria na vida, também assim foi com a pintura. Achava que ela devia se ocupar de coisas mais “sérias”, como economia, para ajudar nos negócios de família – os mesmos negócios que anos mais tarde ela ajudaria a colocar exclusivamente nas mãos do filho. Mas o chamado da arte foi mais forte que as objeções da mãe e Mariana cada vez mais se envolvia com o mundo que ela criava nas telas. Proibida pela mãe de pintar em casa, Mariana descobriu uma professora de pintura que se prontificou a ensiná-la aos sábados, fora de seu horário habitual. Mariana se lembra com emoção da primeira visita a uma loja de artigos para pintura no centro de São Paulo ;de como entrou lá sem saber muito bem o que deveria comprar; de como as vendedoras a apoiaram, recomendando telas, pincéis e tintas, além de sua pioneira caixa de pintura, caixa esta que ela iria “sujar” com grande orgulho; e por fim que cada mancha de tinta seria um troféu adicional em sua escalada de artista. Seus primeiros trabalhos, totalmente abstratos, não demoraram a aparecer e, mesmo com a falta de apoio da mãe, Mariana decidiu dividir com ela os primeiros resultados de sua arte. Lígia reagiu com desdém ao trabalho da filha e reforçou a proibição, desta vez baseada na recente morte de sua tia Joana, a outra artista da família , fonte de inspiração para Mariana, cujo diagnóstico da causa mortis tinha sido intoxicação por tinta. Mariana também ficou traumatizada com o episódio até que sua professora alemã sugeriu que ela trocasse a tinta a óleo pela aquarela. Não era bem o que ela queria – afinal, os grandes pintores trabalhavam com óleo – mas entre a aquarela e se afastar da arte, a primeira alternativa era a menos ruim. Enquanto Lígia pensava que a filha seguia o caminho tradicional da juventude de sua geração – um cinema à tarde na Rua Augusta, seguido de um hot dog e um hot fudge nut – Mariana estava escondida com sua professora, descobrindo cores e traços. O dinheiro para pagar as aulas Mariana arrumava com seu pai ou com o tio Affonso, sem precisar dar nenhuma explicação – para eles, bastava saber que 36
  • 37. Mariana estava feliz - desde que dentro dos rigorosos padrões de comportamento de uma moça de boa família da época. Esse era um lado do pai com o qual ela tinha de conviver – de um lado o político liberal, o banqueiro responsável pelo pioneiro crédito para as mulheres, de outro o pai de família arquiconservador. Já tio Affonso era mais liberal e, portanto, confidente de Mariana, fazendo o filtro do que deveria ou não chegar até os ouvidos do pai. Mariana, já com treze anos, se realizava com os primeiros passos de sua arte quando surgiu um conflito com sua professora. Ela estava trabalhando em um quadro de orquídeas rotineiro, um exercício que nem de longe estava exigindo o melhor dela. A pintura ficou incompleta e, uma semana depois, quando Mariana voltou para a aula, sua professora tinha uma surpresa: terminara o trabalho por ela. Mariana se encheu de brios e disse para a professora que jamais se toca no trabalho de outro artista. Isto dito, passou a mão em seu trabalho e nunca mais voltou para as aulas. A partir daí, surgiu a precoce autodidata, disposta a percorrer com total liberdade os caminhos da criação e que agora, sozinha pela primeira vez em sua vida, voltava a explorar com alegria juvenil. Como toda artista Mariana tinha suas crises. Volta e meia se deparava com dúvidas sobre seu trabalho. Ser artista implica em criar,pintar e criar mais e se expressar mais ,se distanciar um pouco dos deveres maternais,além de ficar à mercê da boa vontade dos críticos e especialistas ,além dos marchands Consolava-a a história de Van Gogh, o atormentado artista que nunca vendeu uma obra sequer durante a vida. Ou a reação de Picasso, quando um crítico disse que qualquer criança poderia pintar seus quadros e ele respondeu orgulhosamente, dizendo que tinha levado a vida inteira para aprender justamente a pintar como uma criança. Enfim – ser artista consiste em se blindar contra a rejeição e tolerar os eventuais atentados à auto-estima. Mas, mesmo nos seus momentos de maior insegurança, surgiam coincidências que a colocavam de novo na rota. Como a vez em que um colunável, dono de uma faculdade, comparecera a uma de suas exposições e comprado um quadro. Quando a obra foi entregue, o grosseiro milionário disse que não tinha comprado nada e mandou devolver ,Tinha feito aquela compra fictícia apenas para registrar sua presença naquele ambiente sofisticado. Mariana ficou arrasada com a reação e colocou-o de volta na exposição Pouco tempo depois, uma deliciosa visita do professor Bardi ,responsável pelo melhor museu de arte do Brasil o MASP, se encantou com o mesmo quadro rejeitado por aquele bossal e decidiu incorporá-lo ao acervo do museu , onde está exposto orgulhosamente ao lado de alguns dos mestres da pintura mundial. Outra coincidência aconteceu quando de sua primeira exposição individual nos 37
  • 38. EUA, no Museum of Art de Orlando. Mariana estava ansiosa e intimidada pela fama de severidade dos curadores do museu. Ao chegar,para a primeira entrevista sua amiga Sol apresentou-a à uma moça que estava na recepção, Sol foi logo falando ela é carioca!. Tímida e compenetrada, Mariana cumprimentou a compatriota e aguardou a chamada do board da instituição. Com eles, passou por um crivo meticuloso que resultou em um convite para uma série de exposições. Aliviada e feliz com a reação dos curadores, Mariana saiu e atendeu ao pedido da recepcionista para ver seu arquivo fotográfico de trabalhos. A moça passava os olhos pelos trabalhos e fazia elogios gentis, até que paralisou-se diante de um trabalho. Com lágrimas nos olhos, a moça virou-se para Mariana e disse: “Esta é minha mãe”. Mariana não entendeu o que estava havendo e foi ver do que ela estava falando. A imagem que a tinha comovido era uma colagem tipicamente carioca, pintada em seu apartamento em frente ao Bar Garota de Ipanema, toda azulada trazendo ao fundo o Pão de Açúcar e recortes de jornal repintados com camadas de velaturas brancas. Um dos recortes era da coluna do Zózimo no JB, para Mariana a essência do Rio. Neste recorte a menina reconheceu a foto da mãe, uma das locomotivas da sociedade carioca, morta havia dois anos. Foi uma emoção muito forte, levar para tão longe uma lembrança daquela mãe ausente, e uma coincidência que reforçava o poder de comoção de sua obra. Mariana ainda em dúvida precisou usar uma lupa para ler melhor o nome daquela bela mulher ,Maria Inês Piano como dissera Taís. Comovida mandou fazer uma grande gravura do quadro e presenteou a nova amiga.Isto as uniu bastante a ponto de passarem juntas as comemorações natalinas ,Thanks Given e aniversários Outra história envolvendo sua arte teve como palco a cidade de Paris. Entre os árabes e seus descendentes existe uma comunhão imediata que os une em qualquer parte do mundo. A hospitalidade dos árabes é célebre e uma característica que passa de pai para filho há gerações. Quando um árabe convida outro para visitá-lo em sua casa, ele logo diz AH LAU SALA. Em uma tradução mais simples, quer dizer “bem-vindo”. Mas a frase tem um caráter muito mais abrangente – significa que o visitante deve se sentir como se estivesse em sua própria casa, que será recebido como se estivesse no seio de sua própria família, com todo carinho e fartura dignos de um filho querido. Este sentido de comunhão e aceitação foi fundamental quando os primeiros imigrantes chegaram ao Brasil e foram acolhidos pelos pioneiros com o mesmo AH LAU SALA que ouviam em sua terra natal. Na década de 1990, Mariana estava participando de uma exposição coletiva de gravuras em Paris. Como é comum em coletivas, parte dos trabalhos não foi vendida. Mariana pediu ao marchand que os trabalhos não vendidos não fossem 38
  • 39. encaminhados de volta para o Brasil, já que a alfândega local é extremamente rigorosa com trabalhos de arte e os taxa severamente – o que é irônico quando se pensa que o país assume que qualquer obra de arte realizada por um brasileiro é patrimônio nacional. Mariana decidiu passar no marchand para recolher ela própria suas obras e não tinham sido vendidas. Na mesma época, na Rive Gauche, ao lado da Sorbone, estava sendo aberto Le Musée du Monde Arabe, uma construção suntuosa que abrigava todas as grandes contribuições dos árabes para a cultura mundial – mapas, poemas, quadros, músicas... Mariana passou na galeria, abraçou o marchand e colocou seus trabalhos em um tubo de transporte. Era outono e fazia um frio violento, o céu estava cinza e as pessoas vestidas com muito charme. Um cheirinho gostoso de pão quente a envolveu e a levou até uma barraquinha tipicamente parisiense que vendia sanduíches na baguete acompanhados com copos de vinho tinto. Enquanto comia as delícias oferecidas por aquela barraca ao ar livre, um francês começou a puxar conversa. Perguntou o que Mariana levava naquele tubo, ela contou que era uma artista plástica brasileira de descendência árabe e descobriu que seu interlocutor também era artista plástico e descendente de árabes. Entre os dois instalou-se imediatamente um clima de AH LAU SALA e ele contou a ela que no recém inaugurado museu do mundo árabe estava se realizando uma exposição com obras de descendentes de libaneses radicados na França com o tema” Pela Paz.” Ele a incentivou a ir até lá mostrar as gravuras que tinha em suas mãos e se apresentar ao curador como artista e tentar participar da exposição. O diretor ficou emocionado com sua adesão e como era brasileira, foi colocada em uma categoria Hors Concours. Deu a ela o endereço de um amigo para enquadrar as gravuras em caráter de emergência, de forma que as obras foram incorporadas à exposição no mesmo dia. A vernissage estava repleta de pessoas muito bem vestidas, algumas com vestidos longos adamascados e muitas jóias. Foi também servido um delicioso jantar, com música ao fundo, porque onde há uma comemoração entre árabes não faltam a música e a dança, típica que pode ser a belly dance ou um dabque, uma popular dança folclórica em grupo sempre puxada por um homem com um lenço branco na mão incentivando os animados movimentos. Voltando ao hotel, Mariana recebeu uma ligação de sua mãe. Ligia estava cobrando a visita da filha ao novo museu sobre o qual ela tinha lido nos jornais brasileiros. Mariana respondeu que não apenas já conhecia o museu como quatro de suas obras já estavam exposta lá. Mariana é uma artista que não foge ao padrão daqueles que criam arte. A mesma sensibilidade que os atrai para a arte os faz constantemente duvidar da qualidade de seu trabalho. Leonardo da Vinci, quase ao final da vida, costumava dizer ”Ofendi a Deus e à humanidade porque meu trabalho não alcançou o nível 39
  • 40. de qualidade que deveria”. No livro “Cartas a um jovem poeta” Rainer Maria Rilke, que além de filósofo foi marchand de Rodin, em uma de suas cartas ao jovem que estava em dúvida se deveria ser mesmo poeta ou seguir a carreira militar, dizia: “Se você sentir que não escrever desperta em você a mesma sensação da falta de oxigênio ou de água, se de seu coração brotar uma chama que te impele a escrever, não tenha dúvidas: seja um poeta, do contrário, seja um soldado”. Mas sempre que as inseguranças a dominavam, esses reforços faziam-nas desaparecer, quase como se a arte mandasse pequenos recados à artista. E foi em razão do enorme apelo da arte que ela seguiu firmemente em sua decisão de, nos meses que se seguiram ao fim de seu casamento, nunca mais colocar ninguém em sua vida e viver exclusivamente para a pintura. Quando finalmente decidiu “voltar ao mundo dos vivos”, foi para ajudar a amiga Vera a conhecer, em um ambiente seguro e livre de pressões, um cobiçado arquiteto chamado Diogo. A idéia era oferecer uma reunião para a qual o arquiteto fosse convidado e Vera aproveitasse para tentar atraí-lo sem a pressão de um encontro ou de um single’s bar. Meio a contragosto, Mariana aceitou o papel de cupido que Vera tinha lhe proposto como um primeiro passo de volta à vida social. Mas quando Mariana conheceu Diogo, seu propósito de se tornar uma freira enclausurada sem hábito caiu por terra. As três pessoas envolvidas naquela armadilha perceberam a mesma coisa: Diogo não tinha o menor interesse por Vera e havia um clima no ar entre ele e Mariana. Mariana viu em Diogo exatamente o que faltava em Tiago: charme, brilho próprio, uma carreira de sucesso, o início humilde superado com talento e um lado heróico que no, conjunto, formava um todo irresistível. Diogo tinha sua assinatura em importantes obras na cidade de São Paulo. Como todo grande artista de seu tempo, foi preso pela ditadura e torturado. Recém-saída de uma relação e ainda lidando com a morte do pai, a primeira reação de Mariana foi fugir daquilo. Por mais que tivesse amadurecido nesta sua fase solo, ainda lhe parecia muito distante a perspectiva de embarcar em um novo romance, por mais atraente que fosse a idéia. Mas novos telefonemas e convites de Diogo mostraram que era inútil – para não dizer estúpido – abrir mão das possibilidades daquele relacionamento. Mariana procurou Vera – sua amiga originalmente interessada no arquiteto - e disse que ele a havia convidado para jantar, mas que não iria se ela ainda estivesse interessada nele. Vera foi gentil, disse que havia percebido a atração entre os dois e que estava deixando o caminho livre. Logo depois deste gesto de grandeza, Vera fez chegar a todas as pessoas relacionadas com Mariana – incluindo sua mãe, ex-marido e JR – a informação de que ela estava se envolvendo com um notório comunista (mesmo que para ela isto fosse OK). Enfim – o fato de Mariana ser mulher não a impedia de reconhecer a verdade da 40